Uma escavação arqueológica revelou indícios do passado glorioso de Mértola, documentando uma viagem ao tempo de um novo culto romano na vila.
Ex digito gigas. Pelo dedo se vê o gigante – referia a velha alocução latina. Talvez ninguém tenha pensado nessas palavras nos primeiros instantes, mas havia uma correspondência divertida entre o velho ditado romano e o achado que brotava agora do solo numa tarde de Verão em Mértola.
Protegida do calor escaldante pelas paredes da velha Casa Cor de Rosa da vila, uma equipa do Campo Arqueológico de Mértola (CAM) produziu uma descoberta peculiar. Nos alicerces desta velha propriedade de um comerciante mertolense do início do século XX, antepassado da família Allen Gomes, surgiu uma sandália de mármore. Era um pé de dimensão considerável, vestígio evidente de uma estátua há muito removida do seu pedestal. “Ficámos contentes, naturalmente”, conta Virgílio Lopes, coordenador da escavação. “Até a comparámos com uma estátua exposta na Casa Romana do Museu de Mértola, mas não havia correspondência.”
A sandália tem uma simbologia muito própria em Mértola. Ibn Qasi, líder sufista de Mértola à época da reconquista cristã, tem uma estátua equestre ao lado do Castelo e foi autor de um curioso tratado intitulado “Vamos Apertar as Sandálias” precisamente sobre questões religiosas.
“A forma como se aperta ou desaperta as sandálias entre as tribos berberes formaliza a união ou a desunião entre tribos”, lembra o arqueólogo Cláudio Torres, responsável do CAM. “Teve uma certa graça que o primeiro vestígio romano encontrado nesta escavação fosse uma sandália onze séculos anterior a Ibn Qasi.”
Nos dias seguintes, porém, a equipa continuaria a maravilhar-se com as descobertas sucessivas. Em breve, a sandália passaria para segundo plano. Quatro metros abaixo da superfície, numa cova artificial, surgiram fragmentos de grande dimensão de estatuária nobre. Um deles destacou-se dos demais. De torso nu e profusamente decorado com animais reais e ficcionais, registava, só por si, dimensões colossais. Virado para o solo, como se se escondesse, mostrava as costas. Com um resquício de malandrice, mal pôde, Virgílio Lopes esgueirou a mão por um cavidade no solo até tactear relevos que deverão fazer parte de uma couraça. Quando esta figura musculada foi limpa, um nome brotou de imediato na boca de Cláudio Torres: Augusto. Estaria um mistério com mais de um século finalmente resolvido?
Devem-se a um frade dominicano muitas das primeiras notícias arqueológicas do Alentejo. No século XVI, o eborense André de Resende visitou compulsivamente cidades e vilas. O seu gosto por antiguidades era conhecido e representantes das populações levavam-lhe informações dispersas sobre o que ia aparecendo. Mértola não foi excepção. Em data desconhecida, Resende terá estado na vila. Ali soube que, anos antes (a imprecisão é do próprio), os “habitantes de Mértola permitiram que levassem dali oito ou dez estátuas, escavadas da terra, artisticamente esculpidas mas sem cabeça, admitindo-se que as cabeças fossem de bronze e inseridas nos corpos e que tivessem mesmo sido arrancadas para outro uso”.
Quase pela mesma altura, Frei Amador Arrais testemunhou a descoberta de cinco estátuas de mármore quando se fizeram obras nos alicerces da Igreja da Misericórdia da vila, lembrando que eram ali conhecidas colunas, estátuas e inscrições romanas.
O Jogo das Peças
O acervo escultórico sobrevivente proveniente de Mértola incluía três togados sem cabeça e dois bustos – de Augusto e talvez de Cibele ou Fortuna – , dispersos entre o Museu Nacional de Arqueologia e a Casa Romana do Museu de Mértola.
Este material reafirmou a importância de Mértola e a possibilidade da existência de um forum comercial nesta zona da vila, decorado por várias estátuas. Grande parte do material escultórico apareceu no centro da vila.
Fotografias de António Cunha no museu nacional de arqueologia e na casa romana do museu de Mértola.
Alguns destes materiais foram levados para Montemor-o-Novo e ali se dispersaram. Em 1678, Manoel Faria y Sousa já dava conta de que alguma estatuária fora destruída para produzir gesso. Outras esculturas terão sido destruídas pela erosão e pela exposição aos elementos, mas chegaram ao nosso tempo peças notáveis de escultura romana do século I. No século XIX, o arqueólogo Estácio da Veiga teve o mérito de recolher algumas dessas peças e de as conduzir ao Museu do Algarve, de onde depois seriam requisitadas para o futuro Museu Nacional de Arqueologia (MNA). O visconde de Amoreira da Torre ofereceu outras ao MNA em 1902. E uma permaneceu em Mértola, no acervo da Casa Romana do Museu de Mértola.
Há ainda a questão do busto de Augusto. O acervo do MNA não tem registo concreto da entrada desta extraordinária cabeça de mármore, com 51 centímetros de altura, que representa seguramente o imperador Augusto. Sabe-se que, em 1915, já lá estava e, durante parte do século XX, foi associada a um dos dorsos decapitados, colado pelo zelo desconcertante dos conservadores, apesar da proporção entre uma e outra não fazer sentido. Terá vindo de Mértola em data incerta. Durante mais de cem anos, foi tema de artigos e dissertações – onde estaria o corpo correspondente a este busto e que templo seria suficientemente digno para acolher uma estátua de três a quatro metros do novo imperador?
A escavação da Casa Cor de Rosa pode resolver, finalmente, o enigma: a cabeça de Augusto poderá encaixar no dorso agora descoberto (a thoracata, ou estátua couraçada). Conheciam-se dois precedentes de thoracata em Portugal (uma no Museu da Guarda e outra na posse de um coleccionador privado, em Arraiolos), mas nenhuma com as dimensões e perfeição deste dorso de Mértola.
A escultura apareceu nas fundações de um templo de grandes dimensões, numa colina de Mértola virada para o Guadiana, se nos conseguirmos abstrair de uma primeira fileira de casas que tapam actualmente a perspectiva ribeirinha.
“Parecem muito diferentes, mas os tempos não mudaram assim tanto”, diz Cláudio Torres.
“O culto do novo deus-imperador começava a impor-se no século I e, como seria de esperar, foi mais facilmente adoptado na periferia do império do que em Roma, onde já existiam muitos deuses e muita oposição.” Apontando com graça para os cartazes publicitários do mais recente acto eleitoral, o arqueólogo prossegue: “Hoje, como na Antiguidade, quando um candidato queria promover-se e dar a conhecer o seu rosto e as suas virtudes, expunha-se na praça pública. As estátuas são os outdoors da Antiguidade.” Neste caso, Augusto figuraria num pedestal externo, visível pelas embarcações que chegavam ao porto. “Deveria ser uma imagem de propaganda fortíssima – quatro metros de mármore, em traje militar, pairando sobre a cidade.”
O edifício que assenta sobre o sítio arqueológico regista uma considerável volumetria porque apoia--se sobre alicerces robustos previamente existentes. “Encontrámos paredes com dois metros de espessura que delimitam pelo menos oitenta metros quadrados de superfície”, explica Virgílio Lopes. “Suportariam um edifício maior do que esta casa de dois pisos moderna.” Nos níveis correspondentes à Antiguidade, encontrou-se igualmente uma camada de areia exógena, trazida certamente de fora. “Só se transporta areia e mármore do estrangeiro quando está em curso uma obra de regime – creio, de facto, que encontrámos o sítio onde se posicionou o templo romano de Mértola.”
A restante estatuária associada a um monumento nobre erguido na vila é sugestiva. Existe igualmente a hipótese de correspondência entre outro busto guardado no MNA e um dos togados agora encontrados. Em quatro décadas de escavações do CAM na vila, encontraram-se regularmente pedaços de mármore ou outros materiais nobres reutilizados em contexto habitacional e é muito provável que os blocos mais monumentais tenham servido de embasamento para as residências da zona. Na própria memória de Mértola, persiste a recordação de uso como pedreira do local onde o comerciante ergueu a sua casa no século XX.
“Chegámos a pensar que Mértola fosse só uma zona portuária da Antiguidade, uma etapa antes de chegar a Beja, Castro Verde ou Mérida”, resume Cláudio Torres. “As descobertas da última década revelam que Mértola, fruto da proximidade das minas da região e da possibilidade de se chegar a este porto, de barco, a partir do Mediterrâneo, teria tido forte importância comercial e política. A monumentalidade desta nova estrutura, com forte ideário político e religioso, confirma essa afirmação.”
“É aos portos que chegam primeiro as modas”, diz Virgílio Lopes. “Chegam as novidades, as roupas novas, as novidades técnicas e os… cultos.” Navegável em qualquer altura do ano, ao contrário da travessia por Sagres que obrigaria a meses de pausa até os ventos mudarem, a travessia pelo Guadiana talvez ligasse Mértola a Tunes em pouco mais de oito dias. Alguns arqueólogos continuam a defender a tese do transporte terrestre como principal meio de comunicação de pessoas e bens na Península. Cláudio Torres contesta essa premissa: “Mértola era um prolongamento do Mediterrâneo. Nos mesmos oito dias que carros de bois demorariam a trazer para aqui alguns blocos de mármore da jazida mais próxima conhecida, um navio proveniente do Norte de África conseguiria trazer dez vezes mais carga.”
Cerâmica exótica, moeda cunhada a muitos quilómetros de distância e artefactos de adorno ou de luxo provenientes do estrangeiro abundam nas várias escavações da vila, onde se encontraram igualmente vestígios antigos de judaísmo. “Tudo se resume a poder. Num porto importante, fazem-se negócios, chega gente de locais distantes e circula muito dinheiro. É o dinheiro que paga as importações e as construções de maior monumentalidade”, diz Virgílio Lopes. “Faz sentido que uma certa linguagem de poder tenha sido usada num entreposto influente, impondo o culto recente de um novo deus no panteão romano.” De todas as representações escultóricas que se conhecem de Augusto, aliás, o busto do MNA é seguramente o retrato mais jovem.
A concentração de pelo menos quatro grandes estátuas decapitadas na mesma cova sugere um acto propositado de deposição e não uma catástrofe. Não é evidente igualmente se os bustos degradados terão sido resultado da erosão ou de um acto de vandalismo.
Sabe-se que as estátuas foram removidas ainda em período romano, numa das fases posteriores em que o culto de Augusto deixou de ser oportuno. Talvez a cabeça tenha sido removida previamente, com o reaproveitamento de corpos escultóricos para bustos dos novos soberanos. Quem sabe se a cabeça não rolou como símbolo da queda em desgraça de um deus?
A escavação prossegue, animada com o triunfo deste Verão. Augusto, que o cronista Suetónio descreveu como “de pequena estatura, mas com tal harmonia e proporção de membros que se não dava por isso”, permanece no imaginário da equipa. Alto, colossal, abençoando Mértola e dominando o horizonte.
Nota da redacção:
Enquanto a edição de Novembro entrava em impressão, as escavações na Casa Cor de Rosa de Mértola prosseguiam a bom ritmo e as novidades precipitavam-se. Em meados de Outubro, a equipa encontrou e escavou um busto feminino notável, quase integralmente conservado. Embora preliminar, poderá ser o retrato de uma das Agripinas.
A segunda surpresa surgiu quando foi possível levantar o dorso (ou thorocata) imperial. Este impressionante material escultórico estava profusamente decorado no peito, com um vasto programa decorativo imperial que será seguramente alvo de vasta investigação.
A hipótese inicial de compatabilidade deste dorso com o busto de Augusto (da colecção permanente do Museu Nacional de Arqueologia) permanece possível, mas nada impede que se trate da representação de outro imperador romano, como Trajano ou Diocleciano.
A comparação dos elementos decorativos com outras representações imperiais ajudará a deslindar o enigma.
As escavações prosseguirão em Mértola, mas parece agora evidente que a importância da vila durante o Império Romano foi flagrante. Voltaremos ao tema em 2018.