Quando entrou na antecâmara do túmulo do faraó, no Vale dos Reis, Howard Carter ficou espantado com a enorme quantidade de objetos que viu. No entanto, aquilo que mais chamou a sua atenção foram as duas figuras que representavam a faraó e que, tal como sentinelas, flanqueavam a entrada selada da câmara funerária do rei.

Entre a enorme quantidade de objectos de todo o género amontados na antecâmara do túmulo de Tutankhamon, no Vale dos Reis, um assombrado Carter, o afortunado egiptólogo britânico que descobriu o túmulo em 1922, não conseguiu deixar de se fixar nas duas estátuas, de tamanho pouco maior do que o real, que flanqueavam aquilo que parecia uma porta selada numa das paredes de divisão. “Duas estátuas chamaram e obtiveram a nossa atenção: duas figuras negras, em tamanho real, de um rei, uma em frente à outra, como sentinelas”, com uma saia e sandálias de ouro, armados com um malho e um baco, e com a cobra sagrada como proteção sobre a testa […]. Eram figuras estranhas e impressionantes, até na forma como as vimos, meio escondidas entre os objetos que as rodeavam”, descreveu Carter.

Estas figuras, que tanto intrigaram os arqueólogos quando as viram pela primeira vez, representavam o proprietário do túmulo do faraó, Tutankhamon, e a sua função parecia, sem sombra de dúvida, ser a de sentinelas da câmara funerária do rei, oculta atrás daquela parede selada. As estátuas eram de madeira revestida a gesso pintado de negro com elementos dourados. São muito parecidas, representando se em pé com a perna esquerda avançada, na postura masculina típica de caminhar, e segurando um báculo de papiro com a mão esquerda e um malho com a direita. No entanto, embora sejam muito parecidas à primeira vista, existem diferenças substanciais entre elas.

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As estátuas guardiãs tal como estavam dispostas na entrada da câmara funerária de Tutankhamon. Fotografia de Cordon Press.

Semelhanças e diferenças

Antes de analisarmos as diferenças entre ambas as estátuas, talvez devêssemos frisar algumas das suas semelhanças. Com efeito, ambas mostram o faraó com um grande colar sobre o peito, rematado por uma corrente decorada com um escaravelho alado. Têm pulseiras e braceletes e estão vestidas com uma elaborada saia em linho até aos joelhos, com a parte da frente engomada em forma trapezoidal e calçam umas sandálias simples. Os olhos são de obsidiana e pedra calcária cristalina e têm, sobre a testa, o ureu – a cobra protectora da realeza. Segundo alguns estudiosos, a cor negra da pele pode representar o lodo deixado pelo Nilo após uma cheia, sendo uma referência à fertilidade e ao renascimento.

Em que se diferenciam então? A principal diferença entre as duas estátuas do faraó reside nos seus respectivos toucados. Uma tem o típico nemes, um tecido às riscas que caía sobre os ombros e se atava à cintura com uma trança. Ao longo da história egípcia, muitas estátuas de faraós foram representadas com este toucado cerimonial associado ao deus solar Ré na sua acepção de Khepri, o escaravelho representa o Sol ao amanhecer. Também se pensa que associa o rei ao deus falcão Hórus, filho de Osíris, senhor do submundo.

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Estátua khat de Tutankhamon na sua vitrina no Museu Egípcio do Cairo. Fotografia de Marie Thérèse Hébert & Jean Robert Thibault / CC-BY-SA-2.0.

A outra estátua tem o afnet, ou khat, uma peruca em forma de “mala”, uma coroa com um significado tipicamente funerário (só foi documentado neste tipo de contextos) e que está, aparentemente, relacionado com a noite e a viagem do defunto para o além. Os especialistas consideram que a presença destes toucados em ambas as estátuas poderia representar a viagem nocturna do deus sol Ré (simbolizado pelo toucado khat) que renasce a cada amanhecer (simbolizado pelo toucado nemes).

O faraó e os deuses

As duas estátuas têm textos inscritos sobre elas. A estátua do khat tem uma inscrição na saia que a identifica como “o ka de Horakhty, o Osíris, rei, senhor das Duas Terras, Nebhkheperure, da voz verdadeira”. O rei defunto era sempre associado ao Deus Osíris e o epíteto “da voz verdadeira” ou “justificado” era uma referência aos mortos. Deste modo, esta estátua seria uma representação do ka, uma das cinco componentes do espírito humano possivelmente a mais importante) do faraó falecido.

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Howard Carter e a sua equipa embalam uma das estátuas de Tutankhamon para a mudança. Fotografia de Cordon Press.

A inscrição da estátua do nemes real identifica-a como “o bom deus Nebkheperure, filho de Ré, Tutankhamon governador do lunu meridional, dotado de vida eterna, como Ré, durante todos os dias”. Todas estas referências incluindo a de “lunu meridional”, nome pelo qual era conhecida a cidade de Heliópolis, a sede do grande templo dedicado ao deus Ré, têm uma conotação solar.

Por toda a parte o brilho do ouro

Quanto ao banho dourado (a cor do Sol e da carne dos deuses) visível em ambas as estátuas, nas saias, nas sandálias, nos toucados, nos peitorais, nas pulseiras, nos malhos, nos báculos e no perfil dos olhos e das sobrancelhas, os especialistas crêem que acentua a ligação de Tutankhamon com o deus solar Ré enquanto vigia, com zelo, a entrada da câmara funerária – o espaço mais importante e sagrado do túmulo.

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Arthur Mace e Alfred Lucas, colaboradores de Howard Carter, examinam uma das estátuas do túmulo de Tutankhamon. Fotografia de Cordon Press.

Embora não sejam as únicas estátuas com estas características encontradas em túmulos reais, são as mais bem conservadas e as mais completas. São também as únicas do seu género que apresentam um banho de ouro tão intenso. Com efeito, isto acontece com muita frequência noutras estátuas rituais de Tutankhamon e numa grande quantidade de objectos encontrados no túmulo. Este uso extensivo do ouro foi deslumbrante para os descobridores do túmulo do faraó, como o próprio Carter descreveu no seu livro sobre o sensacional achado: “No início, não conseguia ver nada porque o ar quente que saía da câmara fazia a chama da vela tremeluzir, mas pouco depois, quando os meus olhos se acostumaram à luz, os pormenores do interior da divisão emergiram lentamente das trevas: animais estranhos, estátuas e ouro, por toda a parte o brilho do ouro…”

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