autismo

Luke Zenda, de 19 anos, acaricia a bochecha com o bocal de um aspirador na estação de lavagem de carros Rising Tide Car Wash, na Florida. Tom D’Eri montou o negócio com o pai para dar emprego ao irmão e a outras pessoas autistas. As empresas familiares que ajudam adultos autistas são cada vez mais comuns.

“Malta! Não se esqueçam: do pescoço para cima! Vai, força.”

Estamos a praticar mecanismos de elogiar o outro no Campo para Namoros PEERS, um programa para adolescentes e adultos com necessidades especiais que têm  esperança  de encontrar  o amor. A maioria dos participantes, muitos dos quais com autismo, já passaram a barreira dos 20 anos, mas parecem bastante mais novos. Vieram sozinhos ou acompanhados pelos pais ou cuidadores ou, por vezes, por um irmão ou irmã. Quase todos vivem com as respectivas famílias. Vêem-se muitos pêlos faciais mal semeados, T-shirts de bandas musicais obscuras, auriculares de protecção contra ruído para os que sofrem de sensibilidade auditiva e porta-chaves de peluche pendurados nas mochilas.

A interpretação de pistas sociais é difícil para os indivíduos com perturbações do espectro autista. Por isso, todos os presentes querem aprender as regras. E nos encontros românticos há mesmo regras. Treinadores de namoro, alguns dos quais alunos de doutoramento e outros responsáveis pelo programa de neurociências da Universidade da Califórnia, estão a tentar explicá-las.


Um homem franzino franze o sobrolho enquanto inspecciona uma treinadora de namoro, em busca de alguma pista. O seu rosto ilumina-se ao reparar numa tatuagem que ela tem no tornozelo. “Olha! Estou a ver que tens um lambda. Gostas de biofísica? Eu também!”

“Do pescoço para cima, foi o que eu disse. Mas sim, estiveste bem!”, encoraja o treinador que conduz o exercício. “Isso foi muito bom. Descobriste um interesse em comum.”

O jovem faz um sorriso resplandecente.

O treinador vira-se para um homem com cara de bebé, com uma bonita camisa abotoada até ao colarinho e pede-lhe que tente elogiar a treinadora. Ela faz-lhe um sorriso encorajador. Ele desata a suar, com os nervos. Por fim, as palavras irrompem: “Eu. Hã. Eu… gosto da maneira como os teus brincos brilham contra a tua pele pálida.”

“Poético!”, exclama o treinador. “Mas, por enquanto, queremos evitar referências a cor de pele, raça, religião ou etnia. Percebes?” O homem, de pele castanha, concordou, acenando com a cabeça, e tomou nota. Contudo, mostrou-se ansioso por explicar. “Se ela for muito pálida, isso quer dizer que não anda ao sol o dia inteiro, a trabalhar nos campos. É como se fosse da realeza.”

Não melhorou muito. Mas, mesmo assim, conquistavas-me o coração.

É difícil a transiçãopara adulto, mas, para quem tem perturbações do espectro autista, essa transição é ainda mais difícil. O autismo é uma perturbação complexa do foro neurológico que diminui as capacidades de interacção social, de linguagem e comunicação, provocando comportamentos rígidos e repetitivos. O leque de incapacidades (e aptidões) é enorme, razão pela qual é classificada como perturbação “de espectro”, e o número de indivíduos afectados tem vindo a aumentar.

Num estudo publicado em 2018 pelos Centros de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA, verificou-se que a prevalência era de 1 em cada 59 crianças com 8 anos de idade, um aumento  de 15% em dois anos. Qual a causa? Eis um tema que suscita discussão. Uma coisa é certa, porém: a população de adultos com autismo está a crescer rapidamente. Segundo Paul Shattuck, da Universidade Drexel, mais de 700 mil atingirão a idade adulta até 2030 nos Estados Unidos. Os serviços de apoio a autistas adultos tornam-se quase inexistentes depois dos 21 anos de idade. O que irão estas pessoas fazer no seu quotidiano?

Os dados sobre o emprego variam significativamente, mas pensa-se que mais de 8 em cada 10 adultos autistas se encontrem em situação de desemprego ou subemprego. Os estudos mostram também que um número idêntico deseja ter um parceiro romântico, mas só cerca de um terço a metade têm efectivamente um parceiro e muito menos chegam a casar. Se Freud tinha razão ao afirmar que o trabalho e o amor são os alicerces da humanidade, precisamos de melhorar a situa��ão. Estas questões são muito pessoais para mim.


O meu filho autista, Gus, acabou de fazer 18 anos. É a pessoa mais bondosa que se possa imaginar, com uma combinação inexplicável de pontos fortes e pontos fracos que não me permite adivinhar se alguma vez conseguirá viver autonomamente. Porque será que toca piano tão bem, mas não é capaz de cortar a comida no prato? Porque será que adora as redes sociais, mas não consegue evitar ser amigo de toda a gente, de tal forma que o seu círculo abrange “Sex Worker Aboud” e um número de “amigos” suspeitos suficientemente grande para ser incluído na lista de pessoas vigiadas pelo FBI? Já que falamos nisso, como consegue ele andar com tanta facilidade pela cidade de Nova Iorque, mas não lhe podemos confiar dinheiro porque o dá a qualquer pessoa que lho peça?

Passo muito tempo a pensar sobre o que será preciso para tornar o meu filho independente. Há dias em que não penso noutra coisa. Não sou a única. Estima-se que existam quatro milhões de autistas nos EUA e há certamente muito mais de quatro milhões de pessoas neurotípicas que os amam.

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Calvin Clark (à direita) inicia um comportamento de stimming (movimentos repetitivos de auto-estimulação), inspirando um amigo, Bennett Solomond, a dançar. Os rapazes frequentavam o Campo Terapêutico Quest, em Pittsburgh, na Pensilvânia.  Calvin, de 12 anos, foi alvo de bullying e, por vezes, sofre de explosões violentas.

À medida que o Gus se vai aproximando da idade adulta, a lista dos desafios que me preocupam vai crescendo. Mas as duas perguntas que me tiram o sono são as seguintes: encontrará um dia o amor e conseguirá um trabalho que lhe interesse e lhe permita sustentar-se, pelo menos parcialmente? Parti em busca daquilo que poderia aprender.

cercadeumano, mandaram-me um bilhete. Era de uma professora da escola do Gus. Eu tinha acabado de publicar “To Siri with Love”, um livro sobre a educação de uma criança do espectro “médio” do autismo, e acho que revelei muitas apreensões. “Não percebo o que tentou dizer”, escreveu a professora. “O Gus vai conseguir arranjar um emprego! Não vai precisar da caridade de ninguém.”

Foi o melhor bilhete que alguma vez recebi.

É verdade que há um número cada vez maior de empresas que reconhecem os talentos especiais, por vezes extraordinários, das pessoas autistas. Algumas criaram departamentos especiais de recrutamento. A Microsoft e a HP organizam eventos de vários dias para recrutar engenheiros e cientistas autistas. Os bancos JPMorgan Chase e Deutsche Bank também constataram as enormes vantagens de contratar pessoas com capacidades sociais possivelmente insuficientes, ou mesmo inexistentes, mas tecnicamente dotadas. Isto é maravilhoso, mas estes génios representam apenas um pequeno subgrupo.


O que dizer dos autistas comuns?

Muitas empresas familiares estão a preencher este nicho, geralmente fundadas por um progenitor com vocação empresarial e com um filho, ou filha, autista. Todos os dias ouço falar em empresas novas deste tipo. A Good Reasons, na cidade de North Salem, é uma empresa de tratamento de cães que ajuda as pessoas autistas a desenvolver o seu “pata-encial”. A Coletta Collections, em Washington, vende peças baratas de joalharia e lenços tingidos à mão, apresentando os artesãos no seu website. O Gus fez um estágio na Luv Michael, empresa produtora de uma granola orgânica sem glúten e sem frutos secos, baptizada com o nome do filho autista dos seus fundadores, Lisa Liberatore e Dimitri Kessaris. Gus, que tem o paladar muito limitado das pessoas autistas, não gosta de granola. Mas adorou o cheque do ordenado. A Luv Michael e muitas pequenas empresas semelhantes são organizações sem fins lucrativos. Perguntei a mim própria se haveria empresas que contratassem preferencialmente pessoas do espectro autista, tentando, ainda assim, ganhar dinheiro. Fiquei a saber da existência da Rising Tide Car Wash de duas maneiras. Em primeiro lugar, através do seu vídeo viral. Nesse vídeo, jovens adultos lavam automóveis e combinam a atenção extrema pelo pormenor na lavagem com a dança! Depois, uma amiga que vive em Parkland, na Florida, que é sua cliente habitual, falou-me nela. “As pessoas não vão lá para ajudar os miúdos autistas”, disse-me. “Vão porque o carro sai de lá imaculado.” Tom D’Eri é o co-proprietário. O seu irmão  autista, Andrew, trabalha na oficina e inspirou-o. Em 2011, Tom e o pai, John, começaram a procurar uma empresa que pudesse ser lucrativa e dar trabalho a jovens adultos como Andrew, actualmente com 27 anos. A Rising Tide abriu em 2013. Uma segunda estação foi inaugurada quatro anos mais tarde.

Aquando da minha visita, Tom D’Eri pediu a vários trabalhadores para se reunirem na sala de descanso. Luke Zenda, de 19 anos, é um grande trabalhador e não tem filtro. E esta afirmação não é apenas uma conjectura fundamentada.

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Na escola Celebrate the Children, em Denville, um aluno usa um capacete de realidade virtual controlado por um professor. A escola, com alunos entre os 3  e os 21 anos, esforça-se por ajudá-los a desenvolver capacidades de raciocínio, criatividade e flexibilidade, para conseguirem gerir as situações da vida que comportam desafios.

“Sou mesmo bom nisto e não tenho filtro,” diz, com alegria, em tom de cumprimento. Qual a sua parte preferida do trabalho? “Às vezes, os intervalos; noutras ocasiões, a chuva; e noutras vezes, as pessoas. Há coisas que acontecem e nos fazem questionar a vida.”

Tive receio de lhe perguntar o que queria dizer, mas não precisei de o fazer. Há sempre um cliente estranho. “Uma vez uma cliente só trazia vestido o sutiã e as calças.” Certa vez, “encontrei um preservativo usado lá dentro.”

“O que fazes no teu tempo livre?”, interrompo. “Depois de trabalhar aqui, quero dormir e não tratar dos carros”, responde, usando um qualificativo para os carros que exprime, em simultâneo, o exaspero e o orgulho de um trabalhador.

Ao início, Tom não ficou muito entusiasma do com a ideia. “Não me sentia à vontade com a ideia de dar emprego a pessoas com autismo”, conta. “Assustava-me imenso.” Descrevendo-se a si próprio como um tipo de gestor obstinado, teve de aprender a ouvir com atenção os seus colaboradores para conseguir compreendê-los. “Penso no exemplo do Melvin: a princípio, pensava que teria de despedi-lo e não conseguia imaginar um mundo no qual ele fosse capaz de ser um bom empregado. Hoje, este miúdo é uma estrela de rock. Quem me dera ter cem como ele.”

Jeff e Anthony irrompem porta adentro. Ambos têm 32 anos. Quando não está a limpar carros, Jeff está a aprender a fazer dobragens de voz. Também gosta de teatro de marionetas. Anthony tem um podcast intitulado “A-Log on the Airwaves”, no qual transmite canções divertidas em madmusic.com e também gosta de imitar vozes de famosos. Demonstra a sua imitação de Bernie Sanders e profere algumas frases impublicáveis com a voz de Bill Clinton. De seguida, ambos revelam as suas versões de Mr. T.

Tom D’Eri interrompe-os com gentileza: “Cavalheiros, isto não é um concurso.”

Quando lhes pergunto de que gostam mais na lavagem de carros, Anthony responde sem hesitar: “A camaradagem. Ou seja, ver as mesmas caras e ter alguém com quem conversar quando estamos a trabalhar nos dias em que o trabalho se torna aborrecido, não é, Jeff?”


“Sim”, concorda Jeff. “Conversamos sobre o que nos vem à cabeça. E falamos com o coração.”

Essa desinibição preocupara Tom D’Eri, mas ele diz: “Temos muito mais problemas de comportamento com os empregados típicos.”

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Denise Resnik orienta o filho, Matt, de 27 anos, enquanto este faz a barba, seguindo as instruções num iPad. Para ajudá-lo a viver com autonomia, Denise, promotora imobiliária, criou a First Place, uma comunidade de vida independente com 55 unidades em Phoenix. Pessoal contratado presta assistência aos residentes, ajudando-os em tarefas quotidianas, como fazer compras, ensinando-lhes competências como usar a lavandaria, e encontrando-lhes empregos compatíveis com as capacidades e interesses de cada um.

Basta conhecermos as pessoas que trabalham para nós e os pequenos pormenores que podem criar problemas. “Quando conversamos sobre este assunto com outros empresários, dizemos-lhes que os nossos empregados com autismo são indivíduos que carecem de maior orientação”, explica Tom. “As necessidades deles são mais facilmente identificáveis do que as de um empregado típico. No entanto, aquilo de que precisam não é muito diferente daquilo que qualquer pessoa precisa. Mas é mais fácil de identificar.”

Sanders e profere algumas frases impublicáveis com a voz de Bill Clinton. De seguida, ambos revelam as suas versões de Mr. T.

Tom D’Eri interrompe-os com gentileza: “Cavalheiros, isto não é um concurso.”

Quando lhes pergunto de que gostam mais na lavagem de carros, Anthony responde sem hesitar: “A camaradagem. Ou seja, ver as mesmas caras e ter alguém com quem conversar quando estamos a trabalhar nos dias em que o trabalho se torna aborrecido, não é, Jeff?”

“Sim”, concorda Jeff. “Conversamos sobre o que nos vem à cabeça. E falamos com o coração.”

Essa desinibição preocupara Tom D’Eri, mas ele diz: “Temos muito mais problemas de comportamento com os empregados típicos.”

Basta conhecermos as pessoas que trabalham para nós e os pequenos pormenores que podem criar problemas. “Quando conversamos sobre este assunto com outros empresários, dizemos-lhes que os nossos empregados com autismo são indivíduos que carecem de maior orientação”, explica Tom. “As necessidades deles são mais facilmente identificáveis do que as de um empregado típico. No entanto, aquilo de que precisam não é muito diferente daquilo que qualquer pessoa precisa. Mas é mais fácil de identificar.”

“Eles são amigos”,afirma Steven Nesenman, com ênfase. Estamos a fingir que andamos apenas a passear descontraidamente por esta feira de rua em Lake Worth, na Florida, mas na verdade vamos caminhando com alguma velocidade. Steven tem um ar sério e determinado: não quer perder de vista a sua filha, Leah, nem por um segundo. Não é com medo de que se perca, mas porque ela está acompanhada pelo seu “amigo”, Brandon, e tudo pode acontecer. Talvez algo possa ter acontecido uma ou duas vezes, mas não sob o olhar atento do pai.


Leah é uma rapariga amável, de formas bem torneadas e olhos verdes penetrantes. Pinta obsessivamente símbolos da paz, colecciona figurinhas de lagartos e de rãs e faz peças de joalharia com vidro. Trabalha na Chocolate Spectrum, uma loja de doces, outra empresa fundada pela progenitora de uma criança  autista.  Brandon  também é artista: pinta tiras de banda desenhada coloridas com minúsculos animais e flores e compõe diagramas de palavras. Vende o seu trabalho na Internet e na galeria dos Artistas com Autismo,  em Pompano Beach, criada pela sua mãe. Conheceram-se os dois há sete anos, numa aula de arte. Têm agora cerca de 25 anos.

“Nasci com um talento”, afirma Leah, quando os apanhamos. Não sabe como explicar, ao certo, a forma como escolhe o vidro, mas pega no seu colar e diz: “Gosto das cores. Faz-me sentir bem. É bonito. Gosto da cor verde.” Têm grande admiração pelo trabalho um do outro.

Nesse mesmo dia, algum tempo antes, eu fizera uma visita a Brandon, no pequeno e arejado apartamento que partilha com a mãe, Cynthia Drucker. Brandon é um rapaz corpulento e atraente, com um remoinho no cabelo e um sorriso rasgado. Na adolescência, era impulsivo e, embora nunca magoasse ninguém, batia com força nos objectos quando se zangava. Cynthia mandou encadernar todos os relatórios escolares de Brandon a partir do jardim de infância. Por vezes, folheia-os para se lembrar dos grandes progressos que o filho fez.

A incapacidade para discernir as intenções das pessoas, aliada ao facto de ser um jovem com os interesses amorosos próprios da sua idade, levou Brandon a meter-se em alguns problemas. Há cerca de dois ou três anos, Cynthia achou que Brandon estava pronto para ter um cartão de débito. Mais tarde apercebeu-se de que talvez se tivesse precipitado um pouco, quando viu que ele gastara mais de mil dólares num clube de strip-tease, valor este acrescido da taxa por ter excedido o saldo disponível. Um pouco mais tarde, trouxe para casa uma prostituta que procurava um sítio onde ficar durante algum tempo e a sua mãe concordou. (“Achei que ia salvar mais uma alma. O que hei-de eu dizer?”) Quando o dinheiro de Brandon acabou e a mulher não quis mais nada com ele, ele ficou traumatizado. Cynthia viu naquilo um lado positivo. “Como já teve a experiência, agora já sabe o que fazer. Ele só sabe o que é um preservativo porque teve aquela experiência com a prostituta”, afirma. “Algo de bom saiu daquilo. No entanto, ela fica atrapalhada quando Brandon fala com os amigos ao telefone sobre a experiência.” Cynthia Drucker é uma mãe, no mínimo, optimista.

Brandon mostra-se desejoso de falar sobre Leah e a vida que possam um dia partilhar. “Acho que íamos tomar conta um do outro e, quando ela estiver doente, por exemplo, eu dou-lhe os remédios”, diz. Ele também promete cozinhar e tratar da roupa. E isto abrange tudo? Talvez não, mas é um bom começo. Brandon também diz que quer viver com Leah e com Maria, outra namorada sua. Hum… bem… Com ou sem autismo, Brandon não será o primeiro homem a acalentar essas fantasias.

Quando converso com Leah sobre os seus sonhos relativos a uma relação amorosa, ela diz-me ter esperança de que seja um passo rumo à independência. Esta conversa deixa o pai desconfortável. Steven tem lutado para criar uma filha autista e confessa que isso teve consequências gravosas no seu casamento, conduzindo ao divórcio. Dificilmente me posso considerar ingénua, mas aquilo que vejo em Leah e Brandon é aquilo que desesperadamente anseio para o meu filho. Tento convencer Steven a preocupar-se apenas com aquilo que tem: uma filha criativa, que tem um emprego, que talvez precise de supervisão e que talvez não esteja à altura de tomar conta de filhos, mas que aparentemente tem boas possibilidades de ter um relacionamento e uma vida independente.

Steven não vê a questão da mesma maneira. Ela tem de facto um emprego, mas não é remunerado e não compreende bem o valor do dinheiro.

Mas não se sente feliz por a sua filha ter encontrado um amor? “Não podemos chamar-lhe amor”, diz, com firmeza. “Pode ser apoio, sensação de segurança, saber o que será o amanhã. Esse é o desafio mais difícil nas pessoas autistas. Elas querem uma situação regular.”

Não posso ter pretensões a ser objectiva. Embora compreenda todas as suas preocupações, a sua atitude deu-me vontade de chorar. A pessoas autistas querem e precisam de regularidade, mas há algo errado em quererem também amor?

Franktrabalha a massa num estabelecimento de pizzas na Universidade de Rutgers. Tem um espectro grave de autismo e é predominantemente não-verbal. Quando Frank se tornou um dos primeiros participantes no programa do Centro Rutgers para Serviços de Autismo para Adultos, exibia dois comportamentos de maneira praticamente ininterrupta: cerrava os punhos e gritava com toda a força. Estes não eram bons prenúncios para um emprego remunerado. Porém, a equipa de Rutgers descobriu outra circunstância: Frank adorava livros e adorava ordem. A equipa conjecturou que ele iria adorar a biblioteca, mas num espaço que privilegia o silêncio os gritos não seriam bem-vindos. De forma notável, Frank aprendeu a murmurar os números das requisições enquanto arrumava os livros nas prateleiras e acabou por eliminar a motivação para berrar. Faltava resolver a questão dos punhos constantemente cerrados.

É por essa razão que Frank passa as tardes na pizaria. Com paciência, foi possível ensiná-lo a fazer massa e a moldá-la em pequenas rodelas, depois congeladas. Para quem faz pizzas, cerrar os punhos é um requisito – não um problema.

Christopher Manente, director-executivo do centro, observa Frank e o seu treinador com atenção. “O público tem uma ideia preconcebida acerca das pessoas autistas: ou as imagina como génios ou como indivíduos totalmente debilitados. No fundo, são dois extremos. Quando por vezes contacto uma empresa e peço que contratem uma das nossas pessoas, os meus interlocutores pensam no indivíduo apenas como um trabalhador suplementar. Mas é muito interessante ver como as coisas se podem compor.”

O programa de Rutgers investiga e ensina adultos autistas de todo o espectro e não apenas grupos específicos. O programa tem mais de doze alunos matriculados, mas espera atingir 60 inscrições. A ideia é criar uma comunidade que misture alunos de pós-graduação formados para trabalhar com adultos autistas, vivendo lado a lado com eles.

Christopher conduz-me numa volta à cidade universitária. A parte preferida do trabalho de Scott como empregado de mesa na cantina é enrolar guardanapos em volta dos talheres. Michael trabalha no elegante restaurante Rutgers Club, onde se queixa de que gostaria de receber os clientes, mas por enquanto concentra a sua atenção meticulosa a aspirar o pó. Stan, que gosta de aquários e de magia, trabalha na loja de informática da cidade universitária: tem algumas dificuldades no atendimento ao cliente porque gosta de comentar as notícias do dia de forma muito criteriosa. Todos os autistas têm as suas excentricidades.

Eles devem dar mais problemas do que valem enquanto empregados, certo?

Christopher Manente apresenta-me Sebastian Nieto, gerente do Rutgers Club, e entramos para o seu escritório. “Veja bem, somos uma universidade, muitas vezes estamos a proporcionar aos alunos ‘normais’ a sua primeira experiência de trabalho”, diz. “Investimos tempo e energia na sua formação. Então, por que motivo isto será tão diferente?” Nascido na Argentina, Sebastian encara o assunto na perspectiva de um imigrante. “Quem vem de outro país, não conhece a língua e não conhece os costumes”, diz. “Pode ser bom e pode ser péssimo. Mas alguém tem de apostar um pouco nessa pessoa, mesmo que isso signifique um esforço maior para que ela alcance aquilo que é preciso.” Conhecedor do trabalho realizado por Scott na cantina, Sebastian explica que ele enrola os guardanapos em volta dos talheres melhor e mais depressa do que qualquer outra pessoa já testada até ao momento e, além disso, gosta mesmo daquilo que faz. “Contratar pessoas autistas? Claro que sim. Nem há dúvidas”, diz.

O campo do namoro é a obra-primade Elizabeth Laugeson, professora do Instituto Semel para as Neurociências e o Comportamento Humano da UCLA. Muitos programas de capacitação social perdem eficácia após uma certa idade.

“A maioria dos programas centra-se em miúdos mais novos”, diz. “Mas será que as capacidades sociais de que uma pessoa precisa na escola primária são diferentes das que precisa na fase inicial, intermédia e final do ensino secundário e na idade adulta? São totalmente diferentes.”

Elizabeth chefia o campo durante todo o fim-de-semana e é bondosa, directa e imperturbável. A sua missão é descodificar o mundo social-romântico-sexual. “Não conseguimos namorar com toda a gente e nem toda a gente consegue namorar connosco”, diz, repetindo a frase como se fosse um mantra.

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Christian Golon, de 25 anos, brinca com o seu gato em casa, no estado da Virginia. Ele é gerente de uma loja de produtos para animais, onde acha que tem de lidar com menos expectativas sociais. Christian é altamente funcional. A sua mulher, Catherine Bettenbender, não pertence ao espectro.

Todas as possíveis facetas da aproximação a outra pessoa são examinadas a fundo e interpretadas ao vivo: namoriscar com os olhos (saber como olhar de relance e afastar o olhar, em comparação com nunca olhar ninguém nos olhos ou olhar fixamente como um zombie); entrar e sair suavemente de conversas (“tenho de ir à casa de banho” foi considerada uma estratégia de saída indesejável); a distância adequada a manter durante a conversa (foi dito a uma mulher que estava demasiado longe e ela mudou de sítio, posicionando-se a apenas 15 centímetros da cara do treinador).

O desleixo foi enfaticamente desencorajado: “É desrespeitoso para a pessoa com quem nos encontramos”, explica Elizabeth. Numa frase que considero um eufemismo cómico, ela refere-se assim às pessoas que não cuidam bem da sua higiene: “Raramente conseguem um encontro.”

As perguntas saíam velozmente. Os participantes querem respostas concretas neste domínio, o mais fluido dos palcos. Elizabeth tenta dá-las. Uma regra importante: se convidarmos alguém para sair connosco e essa pessoa não nos der uma resposta, podemos tentar mais uma vez, mas não mais do que uma. Uma mulher de pequena estatura levanta a mão. “Isso quer dizer… Duas mensagens por dia?” “Não. Duas mensagens”, diz Elizabeth. “Ou por semana?” “Não.” Tentando outra vez, a mulher pergunta, com voz melancólica: “Só duas mensagens por hora?” “Desculpa, mas não”, responde Elizabeth Laugeson.

Há regras que nem esta psicóloga é capaz de indicar, como a probabilidade de se obter um beijo de boa-noite num primeiro encontro. “Qual a percentagem de vezes que conseguimos o beijo?” pergunta um homem, fã da matemática.

Várias pessoas querem saber se devem, ou não, revelar o seu diagnóstico de autismo. Para esta situação, diz Elizabeth, não há regra. Para alguns,  é sim: já se assumiram publicamente e sentem-se orgulhosos. Para outros, é não. Mas se decidirem revelá-lo, diz, “não apresentem a situação como uma desvantagem. Digam o que significa para vocês.” Recomenda-lhes que contem todas as facetas positivas, como o facto de as pessoas com autismo tenderem a cumprir regras, a serem fiéis ou a dizerem tudo aquilo em que pensam.

Estes namoradeiros-em-formação estão esperançosos. Eu também. Por todos eles, pela nossa sociedade, pelo meu filho e, em particular, pelo jovem a meu lado, que acena com a cabeça e murmura em voz quase inaudível: “Eu consigo fazer isto. Posso ser um bom namorado.”