O tesouro funerário da rainha Ah-hotep viajou até à capital francesa para ser exibido na Exposição Universal de 1867 e esteve prestes a não regressar ao Egipto. Actualmente guardadas em Lucsor e no Cairo, as jóias falam-nos sobre uma mulher que regeu os destinos do país num momento crucial da sua história.

São dez horas da manhã de um dia frio mas soalheiro de Dezembro em Lucsor. Para lá da vitrine de vidro de uma das salas do prestigiado Museu das Antiguidades Egípcias, observo com assombro e incredulidade uma jóia de extraordinária beleza: um colar de ouro, composto por uma corrente com três pendentes que representam três moscas, insígnia com a qual os antigos egípcios condecoravam a bravura em combate.

As moscas, extremamente estilizadas, foram fabricadas com uma lâmina muito fina de ouro. Com nove centímetros de comprimento cada, as asas são grandes e lisas e, dos seus delicados corpos, sobressaem olhos protuberantes. Não é a primeira vez que contemplo esta jóia. Como egiptóloga, já visitei Lucsor em várias ocasiões e, de vez em quando, venho parar a esta sala para observar uma das minhas peças favoritas de ourivesaria.

Aproxima-se de mim Sanaa Ali, directora dos Museus do Alto Egipto, que me recebe com um sorriso caloroso e comenta com suavidade: “It’s amazing!” (É uma maravilha!”), acrescentando que esta é apenas uma das jóias da rainha Ah-hotep e que as restantes se encontram no Museu Egípcio do Cairo. Até 2005, o “colar das moscas” esteve exposto numa das salas do famoso museu da capital egípcia, mas foi decidido realojar parte do tesouro funerário da rainha no Museu de Lucsor, de forma a juntar essas peças a outra colecção com a mesma temática militar.

“Ora, as moscas não têm de estar necessariamente associadas à guerra, já que poderiam relacionar-se com outro tipo de ritual ou celebração, como a festa de coroação do faraó ou a festa Sed, o ritual de rejuvenescimento e renovação do poder cósmico dos soberanos do Antigo Egipto que se celebrava a cada 30 anos de governo”, explica Sanaa Ali. “Temos de continuar a investigar”. A minha interlocutora sabe seguramente do que fala e as suas palavras transmitem certezas e paixão pela egiptologia.

Avançamos até outra vitrine onde se exibe uma elegante adaga cerimonial com uma bainha de ouro, também pertencente a Ah-hotep. A lâmina de ouro foi ricamente decorada com signos hieroglíficos que transcrevem o nome e os títulos do faraó Ahmés, seguidos de uma decoração com motivos florais gravados sobre uma placa de niel (substância negra obtida através da fusão de chumbo, cobre e enxofre). O pomo e o punho são de ouro, electro (liga de ouro e prata), niel, pedras semipreciosas (cornalina e lápis-lazúli) e madeira de cedro. Duas cabeças de touro ligam a empunhadura à lâmina e o pomo está decorado com quatro cabeças femininas. A bainha, feita com duas folhas de ouro sem decoração, revela grande sobriedade em contraste com a decoração exuberante da requintada adaga. “Outra maravilha.”

Estas peças, juntamente com as que se encontram no Museu Egípcio do Cairo, foram descobertas em 1859 na localidade de Dra Abu el-Naga, na extremidade ocidental da actual cidade de Lucsor. Os trabalhadores do Serviço de Antiguidades do Egipto, na altura sob a direcção do egiptólogo francês Auguste Mariette, encontraram um poço de cinco metros de profundidade.

No interior, jazia um sarcófago antropomórfico dourado com uma peruca tripartida e a representação da deusa serpente Uadjit na área frontal. No interior, descansava a múmia e um sumptuoso tesouro funerário.

Por infortúnio, durante os trabalhos, a múmia foi irremediavelmente danificada. O tesouro, porém, chegou praticamente intacto aos dias de hoje. Composto por belos objectos de ouro e prata (braceletes, correntes de ouro, pendentes e adagas cerimoniais, entre outros) e pesando quase dois quilogramas, é conhecido sobretudo pela corrente de ouro com um escaravelho igualmente de ouro e lápis-lazúli. Para os antigos egípcios, o escaravelho representava Khepri, o deus que encarnava o Sol nascente, um símbolo de eterno renascimento e um poderoso amuleto.

Entre os braceletes, um em especial chama a atenção por ter a forma da deusa-abutre Nekhbet, a divindade heráldica do Alto Egipto, de asas abertas. Cada garra do abutre segura o signo hieroglífico chen, símbolo da protecção. O bracelete está gravado em ouro e tem incrustações de lápis-lazúli, cornalina e turquesa que simulam as penas da ave. É uma jóia de concepção aparentemente simples, que atrai a atenção pelo seu jogo cromático azul, vermelho e turquesa, e um sistema de fecho formado por um gancho destacável.

O abutre não é meramente decorativo na arte egípcia: a pulseira revela aliás uma simbologia muito interessante, uma vez que esta ave necrófaga era igualmente o signo hieroglífico utilizado para escrever a palavra “mãe”. Não é de estranhar que uma mulher como a rainha Ah-hotep se enfeitasse com uma pulseira que proclamava a virtude da maternidade, pois alcançou grande poder como rainha-mãe regente.

Outros braceletes dispõem de engenhosos fechos gravados com signos hieroglíficos que só conseguem ler-se quando ambas as placas de ouro se unem para fechá-la, formando então cartelas com o nome de Ahmés, filho da rainha e fundador da XVIII dinastia, com a qual se inaugurou o Império Novo.

Mas quem foi efectivamente Ah-hotep? Como pôde a soberana dispor de um tesouro funerário de tamanha riqueza? Para encontrar as respostas, temos de transportar-nos até meados do século XVI a.C., ao ano 1550 antes da nossa era. Durante a transição da XVII dinastia (cerca de 1600 a.C.) para a XVIII dinastia (cerca de 1500 a.C.), o Antigo Egipto viveu um período de importância transcendental para a sua história, marcado pela excepcional proeminência das mulheres da realeza na gestão dos assuntos do Estado.

Com o rei ausente, grandes rainhas tebanas como Teticheri, Ahmés-Nefertari ou a própria Ah-hotep conquistaram um protagonismo político quase inédito e criaram o precedente das “rainhas com poder”, antecedendo as suas notáveis descendentes como Hatchepsut, Tié ou Nefertiti.

Ah-hotep viveu numa época de tensão e desempenhou um papel fundamental num momento da história do Egipto em que uma dinastia de “príncipes asiáticos”, os chamados hicsos, certamente de origem semita, tomou o poder. Enquanto o domínio dos hicsos se afirmava no delta do Nilo e no Egipto Médio, no Sul do país uma família de militares proveniente da cidade de Tebas alcançara glória e popularidade e oferecia a única resistência ao domínio estrangeiro, prometendo reunificar o território egípcio. As hostilidades entre os hicsos e os príncipes tebanos não tardaram a eclodir. Ah-hotep era mulher de um valente guerreiro, o rei Sekenenré Taá II, no qual os tebanos depositaram todas as suas esperanças e expectativas para enfrentar os hicsos com o objectivo de expulsá-los e unificar novamente o país.

Ah-hotep é apresentada como mulher enérgica, de espírito combativo, que não hesitou em incentivar o seu marido para que este enfrentasse a guerra que se avizinhava. No entanto, Sekenenré Taá II perdeu a vida no campo de batalha, morrendo jovem e antes de conseguir expulsar os hicsos. Sucedeu-se um período de confusão e instabilidade na linha dinástica até que finalmente subiu ao trono Ahmés, o filho mais novo de Sekenenré Taá II e Ah-hotep, um rapaz que deveria ter apenas 10 anos. Este facto impossibilitava o jovem faraó de assumir as responsabilidades de governação, razão pela qual a rainha-mãe assumiu o papel de regente do país. Durante o reinado do seu filho e em seu nome, Ah-hotep teve de combater em diversas frentes e expulsar definitivamente os hicsos, restabelecendo a hegemonia e a glória do país.

Ah-hotep e a cidade de Tebas desempenharam um papel fundamental na resistência contra os invasores hicsos. O seu filho Ahmés, fundador da XVIII dinastia, mandou erigir, no templo de Karnak, uma estela em homenagem à rainha, descrevendo-a como “aquela que governa multidões e cuida do Egipto com sabedoria, a que se preocupou com o seu exército e velou por ele”.

Anos mais tarde, já adulto e rei de um Egipto reunificado, Ahmés quis comemorar as façanhas da mãe e deixar uma prova perene do reconhecimento do seu país. Por esta razão, mandou erigir uma grande estela gravada no templo de Karnak, na qual incluiu um parágrafo que exprimia o seu reconhecimento pela sua mãe, exaltando o trabalho por ela realizado durante a regência, a sua capacidade de comando e as suas proezas:

“[…] a que governa multidões e cuida do Egipto com sabedoria; ela, a que se preocupou com o seu exército; a que velou por ele; a que conseguiu a partida dos inimigos e reuniu os dissidentes;
a que pacificou o Alto e o Baixo Egipto e subjugou os rebeldes […]”.

A estela apresenta a rainha-mãe Ah-hotep como a autêntica e carismática protagonista que soube transmitir ao exército tebano a coragem suficiente para expulsar definitivamente os hicsos do Egipto, capaz de comandar tropas e igualmente dotada de grande capacidade de negociação. Graças ao trabalho de Ah-hotep, Ahmés governou um Egipto centralizado sob domínio de um único faraó, inaugurando a nova dinastia e deixando para trás as sombras de um período de instabilidade. Foi bem merecida a maior condecoração militar alguma vez atribuída no Egipto: um colar com três moscas de ouro.

Desde a descoberta do túmulo inviolado da rainha Ah-hotep em Dra Abu el-Naga, as suas jóias, incluindo o seu colar, passaram por múltiplas peripécias, de tal ordem que estiveram perto de desaparecer. A mais extravagante de todas talvez seja a que ocorreu quando parte das peças viajaram para Paris em 1867 para serem exibidas na Exposição Universal.

Na altura, a espanhola Eugenia de Montijo era a imperatriz consorte dos franceses, enquanto mulher de Napoleão III. Eugenia subiu ao trono impressionando a sociedade francesa. A sua beleza e elegância eram elogiadas e imitadas em toda a Europa, contribuindo significativamente para o fascínio europeu pelo regime imperial. Também sabemos que muitas das suas decisões viriam a desencadear vários conflitos e um deles ocorreu quando viu as jóias de Ah-hotep no pavilhão egípcio da Exposição, instalada no Campo de Marte da capital francesa.

Eugenia ficou fascinada e agarrou-se literalmente a elas, motivo pelo qual estas foram pedidas como presente ao vice-rei do Egipto. Estupefacto e incrédulo, Auguste Mariette, que dirigira os trabalhos de escavação, conseguiu retirar as jóias a tempo de França e tratou rapidamente do seu regresso ao Museu Egípcio do Cairo, para que ninguém, nem sequer uma poderosa imperatriz europeia, pudesse ficar com elas.

Na sombra das peças de joalharia da rainha Ah-hotep, estão implícitas muitas histórias entrecruzadas: a de uma rainha regente egípcia que viveu numa época conturbada e conseguiu expulsar aqueles que considerava seus inimigos; a descoberta de um túmulo real intacto em meados do século XIX na necrópole tebana de Dra Abu el-Naga; a de outra mulher cuja cobiça quase provocou um grave conflito diplomático entre dois países. E, por fim, a história dos ourives anónimos que viveram no Egipto há 3.500 anos e que utilizaram o metal mais nobre e inalterável, símbolo da incorruptibilidade e da vida eterna, legando-nos, com a sua perícia, um magnífico exemplo do elevado grau de requinte e perfeição alcançado pela arte da ourivesaria nas margens do Nilo. As jóias da rainha Ah-hotep continuam a ser admiradas e desejadas. Mas são intocáveis. E seguramente ainda darão que falar.