Diante de um grande túmulo de uma colina sagrada perto de Lucsor, arqueólogos espanhóis descobriram um jardim funerário, o primeiro conhecido no Antigo Egipto até à data.

Construiu-se para mim um túmulo de pedra, no meio dos túmulos. Os construtores prepararam o terreno, os desenhadores criaram-no, os talhadores esculpiram-no e o mestre-de-obras do cemitério dirigiu a construção. O tesouro foi organizado e depositado na câmara. Foi-me dispensado o serviço funerário e um jardim […].”

Cerca de 1900 a.C., seria enterrado “como um magnata principal”, graças aos favores concedidos pelo faraó Senuseret I.

Assim termina o relato literário da vida de Sinuhe, um alto funcionário egípcio que, após um longo périplo no estrangeiro, regressou ao Egipto. Cerca de 1900 a.C., seria enterrado “como um magnata principal”, graças aos favores concedidos pelo faraó Senuseret I. De acordo com a descrição do texto, o seu túmulo, com dimensões consideráveis, dispunha de um jardim ou horto em frente, capaz de assegurar o aprovisionamento necessário à realização das oferendas funerárias. Conhecem-se muitos túmulos como o mencionado neste célebre papiro, escrito há cerca de quatro mil anos, no início da XII dinastia, durante o Império Médio egípcio e depois recopiado durante séculos. 
No entanto, até agora nunca fora encontrado um jardim associado a um túmulo, em parte devido à pouca atenção que os egiptólogos prestavam às escavações no exterior das sepulturas no passado recente. Foi precisamente isso que a equipa arqueológica hispano-egípcia do Projecto Djehuti descobriu durante a última campanha de 2017, financiada por Técnicas Reunidas e Indra. É uma descoberta sem precedentes que produzirá mais conhecimento sobre os jardins funerários no Antigo Egipto.


O arqueólogo David García, junto de Gamal, durante as tarefas de escavação do jardim funerário (em cima). Uma reconstituição do mesmo (em baixo) mostra a localização do tamarisco, do qual permanece em pé um fragmento do tronco. O estudo das sementes encontradas nos quadrados da retícula permitirá identificar as flores e plantas que cresciam no jardim ou horta.

Janeiro de 2007. Sob o olhar atento dos inspectores do Serviço de Antiguidades, a povoação de Dra Abu el-Naga é literalmente varrida pelos bulldozers. No âmbito de uma acção governamental que pretende despejar a zona, as casas ficam reduzidas a montículos de adobe e a antiga necrópole recupera o seu silêncio original. Os habitantes, alguns dos quais empregados nas nossas campanhas anuais de escavação, foram previamente realojados numa povoação vizinha, Nova Gurna.
A troca até foi vantajosa: receberam novas casas equipadas com água corrente, luz eléctrica e um terreno pequeno onde podem plantar vegetais e criar algumas cabras e galinhas, elementos essenciais do seu sustento diário.
No ano seguinte, a troco da remoção dos escombros da zona, conseguimos autorização oficial para ampliar o nosso sítio em 50 metros para sudoeste do pátio de entrada no túmulo de Djehuti, o supervisor do tesouro durante o reinado da rainha Hatchepsut no ano 1470 a.C. aproximadamente. Djehuti fora protagonista das primeiras etapas do nosso projecto, iniciado há 16 anos.
A partir de Janeiro de 2011, começámos a escavar na área previamente ocupada por parte da aldeia. Três metros abaixo da casa de Mursi, o ancião que fornecia água à nossa equipa durante a campanha, descobrimos um depósito de cerâmica com mais de dois mil recipientes datados de 1600 a 1500 a.C. Dispunham-se na proximidade dos túmulos de membros da família real da mesma época, da XVII dinastia, e continham inscrições, figuras de madeira e peças de linho escritas.

No interior, não existia sarcófago nem espólio funerário. Dos primeiros ocupantes, que devem ter vivido e morrido aproximadamente no ano 2000 a.C., só encontrámos uma boneca de madeira pintada.

Mais abaixo, no sítio onde anteriormente estivera localizado o quarto principal da casa de um dos nossos trabalhadores, Abdu, acedemos através de um buraco a um túmulo enorme com um passadiço estreito lateral e uma espaçosa câmara sepulcral, muito bem talhada. No interior, não existia sarcófago nem espólio funerário. Dos primeiros ocupantes, que devem ter vivido e morrido aproximadamente no ano 2000 a.C., só encontrámos uma boneca de madeira pintada. Pelo tamanho e desenho complexo da morada funerária, deduzimos que deveria pertencer a um indivíduo importante da antiga Tebas de há cerca de quatro mil anos.
Apesar de o interior se encontrar completamente revolvido e conter papéis e plásticos ali deixados há mais de vinte anos pela família que habitou a casa imediatamente por cima, o exterior permanecera inalterado desde a Antiguidade. E era justamente ali que as surpresas nos aguardavam.
À medida que a escavação progredia, recuávamos no tempo. Os últimos dois metros até alcançarmos o estrato rochoso eram de areia fina e alaranjada. Por fim, os restos de cerâmica apresentavam uma cronologia homogénea, de cerca de 1600-1500 a.C., pertencentes à XVII dinastia ou início da XVIII, quando a cidade de Tebas deixou de ser a modesta capital da região meridional e se converteu na capital do reino unificado e do império egípcio, que reinava sobre a Núbia, a Palestina e o Sul da Síria. Num estrato inferior, começou a aparecer uma cerâmica diferente, da qual quase todas as peças estavam completas. 
A avaliar pela forma e materiais, tínhamos alcançado o nível da XIII dinastia, ou seja, estávamos perto do ano 1750 a.C.

À medida que retirávamos do interior a terra para ali arrastada pela chuva e pelo vento, foram surgindo três estelas, ou lápides calcárias apoiadas contra cada uma das três paredes.

À esquerda da entrada do grande túmulo, adossadas à rocha da fachada, emergiram dois espaços religiosos simples da XIII dinastia, construídos em adobe. Um tinha o tecto abobadado e media 50 centímetros de altura, 70 de largura e 55 de profundidade. À medida que retirávamos do interior a terra para ali arrastada pela chuva e pelo vento, foram surgindo três estelas, ou lápides calcárias apoiadas contra cada uma das três paredes. Uma estela conservava no sector superior restos da tela de linho que a cobrira, como uma cortina. Apesar de ser possível observar a olho nu que as três estavam pintadas, uma camada de barro incrustada sobre a superfície impedia-nos de observar os pormenores. No dia seguinte, a limpeza minuciosa efectuada por uma das restauradoras da equipa, Pía Rodríguez Frade, permitiu-nos apreciar as cores e os pormenores da decoração e ler as inscrições.
Mas o melhor estava para vir. Poucos centímetros abaixo do nível desses espaços religiosos, o arqueólogo David García e a sua equipa de escavadores começaram a expor o que parecia ser o tronco de uma pequena árvore. Não acreditávamos no que víamos: o tronco, com cerca de 40 centímetros, estava de pé, ainda erguido, com parte da raiz avançando até uma zona mais húmida que não conseguimos identificar. O estado de conservação da madeira era admirável. Os anéis visíveis permitiram-nos calcular que a árvore viveu pouco mais de vinte anos. Entre as possíveis árvores que cresciam na antiga Tebas, de forma natural ou plantadas intencionalmente pelo homem, pudemos deduzir que se tratava de um tamarisco, graças à ajuda prestada pela especialista de identificação de madeiras antigas, Mónica Martín-Lanuza.


Mapa: Fernando J. Sánchez/eogis.com

Este arbusto, ou árvore de pequeno porte, cresce em zonas semidesérticas e era comum no Egipto. Aliás, na entrada do hotel onde ficámos hospedados durante as campanhas de escavação, o Marsam, nas traseiras dos famosos colossos de Mémnon, há um grupo de tamariscos com mais de cinco metros de altura, provando que a espécie ainda prospera.
Continuámos a escavar e, junto da árvore, emergiu uma estrutura de adobe que pouco a pouco se definiu como uma retícula formada por quadrados aproximadamente do mesmo tamanho (30 por 30 centímetros) separados entre si por pequenos muros de adobe e restos de argamassa branquíssimos que conferiam maior consistência. A estrutura tinha cerca de três metros por dois. O egiptólogo Curro Borrego foi o primeiro a aperceber-se de que aquilo que estávamos a desenterrar talvez fosse um jardim.
No dia seguinte, depois de eu publicar algumas fotografias dos progressos da escavação no nosso diário dos trabalhos na página de Internet www.excavacionegipto.com, uma colega alemã de Heidelberg, Eva Hofmann, enviou-me uma mensagem de correio electrónico, contando que aquelas imagens lhe lembravam aquilo que entre os egiptólogos se conhece como heiliger Bezirk, um “espaço sagrado” diante do túmulo e que incluía um jardim funerário de carácter ritual.

As hortas ficavam a meio metro de altura do solo, para cada quadrado poder ser preenchido com solo fértil.

Além de grandes jardins junto das suas casas, com fileiras de árvores em redor de um tanque para se divertirem e refrescarem, as classes influentes do Antigo Egipto também construíam jardins ou hortas com uma planta rectangular dividida em quadrados separados por muros de adobe. As hortas ficavam a meio metro de altura do solo, para cada quadrado poder ser preenchido com solo fértil. Num dos lados, foi construída uma escada com três degraus para os carregadores de água subirem comodamente e acederem às culturas situadas no centro.
Conhecemos todos estes pormenores graças às representações de cenas agrícolas com que os antigos egípcios decoraram os seus túmulos. Num muro da mastaba de Mereruka, em Sakara, cerca de 2200 a.C., por exemplo, é visível um grupo de hortelãos dirigindo-se a uma horta reticulada onde crescem frondosas alfaces. Cada um carrega jarros pendurados nas extremidades de um pau, pousado sobre os ombros. Quatrocentos anos mais tarde, em dois túmulos do cemitério de Beni Hassan, vê-se em pormenor a escada de um dos lados da horta. O desenho destas hortas, ou jardins, é exactamente igual à estrutura que escavámos.
Por outro lado, graças à decoração pormenorizada das paredes interiores dos túmulos, sabíamos que havia na entrada pequenos jardins que faziam parte da paisagem ideal da necrópole na altura do funeral. Do mesmo modo, no túmulo de Reneni, na localidade de El-Kab, 80 quilómetros a sul de Lucsor, está representado aquilo que pode considerar-se um enterro perfeito para um alto funcionário do ano 1500 a.C. Mesmo em frente dos espaços religiosos onde residem os deuses Anúbis e Osíris, no Além, há um rectângulo reticulado pintado de verde: um pequeno jardim ou horta (ver páginas 62-63), composição quase idêntica à do nosso achado e muito parecida com a que Sinuhe descreve por volta de 1900 a.C. no seu próprio túmulo. 

Por outro lado, graças à decoração pormenorizada das paredes interiores dos túmulos, sabíamos que havia na entrada pequenos jardins que faziam parte da paisagem ideal da necrópole na altura do funeral.

Escrevi a Richard Parkinson, professor de literatura egípcia da Universidade de Oxford, para lhe comunicar a descoberta do jardim. O académico britânico respondeu-me entusiasmado que esperava que fosse da XII dinastia, a época de Sinuhe, personalidade na qual é especialista. Quando lhe confirmei que a cerâmica sugeria uma datação desse período, a sua resposta não tardou a chegar: “Oh, fantástico, como o jardim de Sinuhe! Agora parece-me ainda mais belo.”
Deste modo, a arqueologia confirmava o que sabíamos graças à literatura e à iconografia. 
A descrição do relato e as pinturas das paredes não eram uma idealização da necrópole ou do funeral: diante dos túmulos das personalidades mais influentes, eram efectivamente construídos cultivados jardins rituais.
A escavação em redor do jardim produziu mais resultados: descobrimos uma taça com cinco tâmaras, agora secas, exactamente iguais às que se vendem no mercado de Lucsor e que os egípcios gostam de molhar em leite para as tornar mais sumarentas. 
Os copos e outros recipientes de cerâmica multiplicaram-se: descobrimos copos hes para libações e recipientes de argila margosa embranquecida com decoração incisa ou com protuberâncias na borda. Em conjunto, fornecem uma inscrição preliminar do jardim na XII dinastia, pouco depois do ano 2000 a.C.

Até agora conhecíamos os jardins funerários do Antigo Egipto unicamente através de textos literários e de algumas pinturas e relevos dos túmulos, como este, proveniente do túmulo de Reneni, em El-Kab. Diante dos deuses do Além, Osíris e Anúbis, vemos a retícula verde de um jardim-horta, situado junto de palmeiras que circundam um tanque, dois sicómoros e dois pequenos obeliscos que assinalam a entrada do “recinto sagrado”.

Quando David García e Gamal – um dos melhores escavadores que conheço e que trabalha connosco em Dra Abu el-Naga há quase 15 anos – começaram a escavar o interior da retícula, a terra tornou-se escura e começaram a aparecer sementes. Eram diferentes em cada quadrado e o seu estado de conservação era surpreendente. Geralmente, as sementes da Antiguidade escavadas pelos especialistas provêm de contextos de incêndio e estão carbonizadas, como no caso dos jardins pompeianos. Por isso, as do nosso jardim, com quatro mil anos de idade, eram um achado excepcional, como nos confirmou a arqueobotânica Leonor Peña.

Existe a possibilidade de as espécies corresponderem ao carácter simbólico que os antigos egípcios atribuíam a muitas plantas, frutos e flores.

O que se plantou naquele jardim do Império Médio? Por um lado, existe a possibilidade de as espécies corresponderem ao carácter simbólico que os antigos egípcios atribuíam a muitas plantas, frutos e flores, como o arbusto do género persea, cujos ramos ornamentavam os funerais e entrançavam grinaldas para enfeitar o peito dos comensais nos banquetes funerários. 
Surgiu também a flor de lótus, uma alegoria do ciclo da morte e da ressurreição, pois fechava-se ao entardecer e voltava a abrir com os primeiros raios de sol da manhã seguinte; ou a alface espigada, que os antigos egípcios associavam à capacidade masculina de gerar vida.
O possível carácter simbólico das plantas do jardim adequar-se-ia bem à árvore que foi plantada e cresceu junto de uma das suas esquinas, pois, segundo os textos funerários da época, os egípcios imaginavam que a alma do defunto pousaria no ramo de um tamarisco ao sair do túmulo na alvorada para desfrutar as oferendas depositadas sobre um altar à entrada.

Geralmente, as sementes da Antiguidade escavadas pelos especialistas provêm de contextos de incêndio e estão carbonizadas, como no caso dos jardins pompeianos.

Por outro lado, o jardim também poderia ser uma horta em miniatura, na qual se plantariam os vegetais oferecidos naquela que os antigos egípcios chamavam “a Bela Festa do Vale” e noutras celebrações em honra de defuntos. Neste caso, a árvore talvez tivesse a simples função de proporcionar sombra nas horas de calor mais intenso.Um conjunto de sementes foi identificado com relativa facilidade como sementes de coentro. Mais tarde, soubemos que esta espécie também fora descrita num dos poucos jardins, ou hortas, conhecidos até à data, descoberto em Amarna, a cidade de Akhenaton e Nefertiti, por volta do ano 1350 a.C., escavado e meticulosamente documentado pela equipa dirigida por Barry Kemp, da Universidade de Cambridge.
Aparentemente, existem também no nosso jardim sementes de uma cucurbitácea, talvez melão ou pepino, mas será necessário um estudo aprofundado para confirmá-lo, tal como para as restantes sementes e fragmentos de flores que falta identificar.
Como se conservaram o jardim, as sementes e até o pequeno tronco de tamarisco, se esta zona da necrópole foi sucessivamente reutilizada até à época romana, ou seja, durante mais de dois milénios? Talvez a resposta esteja nos perfis da escavação do pátio do grande túmulo.


Uma das três estelas encontradas num espaço religioso junto da entrada do grande túmulo foi esculpida em homenagem “ao soldado Khememi, filho da dona de casa Satidenu” (em cima). A estela está gravada e pintada e ambos figuram nela sentados em frente de uma mesa de oferendas servida com todo o tipo de vitualhas e, por baixo, dois recipientes e, possivelmente, duas alfaces. Na vida eterna que os antigos egípcios esperavam desfrutar no Além, deveria sempre haver na mesa pão, cerveja, carne de vaca e de aves e vários tipos de vegetais. As duas peças de cerâmica foram descobertas junto do jardim funerário: um incensório da XIII dinastia (em baixo) e um recipiente decorado com motivos incisos da XII dinastia.

 

No corte do terreno produzido com a escavação, os geólogos Sergio Sánchez-Moral e Soledad Cuezva, do Museu Espanhol de Ciências Naturais, identificaram estratos de areia fina, como a da praia – consequência do arrastamento provocado por correntes de água fortes devido a episódios de chuva intensa. O pátio, incluindo o jardim e o tronco de árvore, foi soterrado por esta camada de areia que o desidratou e o manteve protegido. Além disso, a areia amorteceu o peso da terra e das pedras acumuladas com o tempo até alcançarem cinco metros de altura.

A partir da escavação de uma necrópole temos hoje a oportunidade de conhecer novos aspectos da vida dos antigos egípcios.

O estudo botânico do jardim, juntamente com o registo das chuvas nos estratos da escavação e do terreno, somado à grande quantidade e variedade de múmias de animais descobertas no interior dos túmulos do sítio arqueológico (íbis, falcões, peneireiros, abutres, águias, serpentes, musaranhos…), abrem-nos uma pequena janela para a jardinagem e o ecossistema da região de Tebas de há quatro mil anos e como os seus habitantes se adaptaram e utilizaram o ambiente para fins rituais.
Um belo paradoxo: a partir da escavação de uma necrópole temos hoje a oportunidade de conhecer novos aspectos da vida dos antigos egípcios, do meio físico em que viveram – e morreram – e de pôr em prática aquilo a que se chama arqueologia ambiental. 

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