O filósofo Kwame Anthony Appiah perguntou em tempos por que algumas pessoas sentem necessidade de acreditar num passado mais igualitário para imaginarem um futuro mais igualitário.
Muitos de nós olham para o desconforto causado pela opressão de género das nossas sociedades e interrogam-se se terá havido uma altura em que os homens não tivessem tanto poder, em que a feminilidade e a masculinidade não significassem o que significam agora. Quando procuramos mulheres poderosas na história antiga, quando tentamos identificar precedentes de igualdade num passado distante, talvez estejamos a revelar o nosso anseio por uma alternativa num mundo no qual tememos que ela não exista.
O patriarcado – que entrega o poder e autoridade ao pai – pode, por vezes, parecer uma enorme conspiração que se perde nas lonjuras do tempo. O próprio mundo tornou-se devastadoramente monolítico, abrangendo todas as formas em que o mundo das mulheres, das raparigas e das pessoas não-binárias sofrem abusos e são tratadas injustamente, desde violência doméstica e violação, disparidade salarial entre géneros e duplicidade de critérios morais. Tudo parece fora do nosso controlo. Mas quão antiga e universal será na verdade?
Historiadores, antropólogos, arqueólogos e feministas sentem grande fascínio por esta questão – enquanto jornalista especializada em ciência, penso nisto há anos. Em 1973 o sociólogo Steven Goldberg publicou The Inevitability of Patriarchy, um livro que defendia que as diferenças biológicas fundamentais entre homens e mulheres são tão profundas que, em cada versão da sociedade humana, um sistema patriarcal seria sempre vencedor. Independentemente da forma como a “tarte” fosse cortada, os homens – que, no seu entender, são naturalmente mais fortes e agressivos - ficariam sempre com a fatia maior.
O problema deste raciocínio é que o domínio masculino não é universal. Em todo o mundo, existem muitas sociedades matrilineares, organizadas em função das mães e não dos pais e nas quais o nome e a propriedade são transmitidos de mãe para filha. Em algumas regiões, pensa-se que as tradições matrilineares remontem há milhares de anos.
Há décadas que os académicos ocidentais inventam teorias para explicar a existência destas sociedades. Alguns afirmam que o matriarcado sobrevive apenas entre caçadores-recolectores ou agricultores simples e não em sociedades mais complexas. Outros dizem que funciona melhor quando os homens estão frequentemente longe, na guerra, deixando a casa entregue às mulheres. Outros ainda argumentam que o matriarcado acaba assim que as pessoas começam a criar gado porque os homens querem controlar estes recursos – associando o patriarcado à propriedade e à terra.
As sociedades matriarcais são sempre consideradas casos invulgares, “assoladas por tensões específicas, frágeis e raras e possivelmente condenadas à extinção”, como diz Linda Stone, antropóloga da Universidade Estadual de Washington. Nos círculos académicos, o problema é conhecido como o enigma matriarcal. O patriarcado, por outro lado, parece não carecer de explicação. Limita-se a existir.
Em 2019, investigadores da Universidade de Vanderbilt tentaram resolver este enigma analisando comunidades matriarcais em busca de um ponto comum. A nível global conhecem-se 590 sociedades tradicionalmente patrilineares, 362 bilaterais (reconhecendo a descendência de ambos os progenitores) e 160 matrilineares. A bióloga Nicole Creanza, que participou no estudo, diz que a equipa testou teorias populares sobre o matriarcado, como as expostas acima, mas nenhuma se verificou em todos os casos.
Um dos factores que parece levar uma sociedade a afastar-se do matriarcado, diz Creanza, surge “quando as populações tinham propriedades não em termos de terra, mas riqueza móvel e transmissível; quando os descendentes poderiam ter uma vida melhor se herdassem os bens dos pais”. No entanto, nem sempre era assim. Uma sociedade é demasiado complexa para ser reduzida a factores simples, sejam eles biológicos, ambientais ou outros. “Até onde conseguimos ampliar a nossa visão”, diz, “encontramos cada vez mais complexidade”.
Os antropólogos insistem que não existem matriarcados liderados por mulheres, se entendermos o matriarcado como o oposto do patriarcado. No seu texto Patriarcha, de 1680, o especialista em teoria política inglês Sir Robert Filmer definiu o patriarcado como o papel natural de um pai sobre a sua família e de um rei sobre o seu estado. No entanto, aquilo que é habitual ver nas sociedades matriarcais é uma partilha de poder entre homens e mulheres. Mesmo quando irmãos e tios detêm uma autoridade significativa, essa autoridade costuma depender das circunstâncias ou ser um poder mais difuso do que absoluto.
Aquilo que caracteriza as sociedades matrilineares, escreve Stone, é “uma variação considerável”, na “autoridade, poder e influência entre homens e mulheres”. A variação seria ainda maior no passado. Na pré-história, as normas sociais estavam em constante mudança. Aquilo que, de um ponto de vista, pode parecer uma instabilidade a resolver-se sozinha – uma mudança do matriarcado para o patriarcado, por exemplo – pode também parecer uma mudança de um estado relativamente estável para outro, explica Creanza.
As pessoas sempre quiseram que as suas sociedades tivessem estruturas diferentes, que os oprimidos tivessem mais liberdades ou privilégios. “Toda a gente, tendo essa oportunidade, prefere igualdade e justiça a desigualdade e injustiça”, escreve a especialista em teoria política Anne Phillips. “A subserviência não ocorre naturalmente nas pessoas.”
O argumento do sociólogo Steven Goldberg defendia que, se um padrão de comportamento for universal, tem provavelmente uma base biológica, e dado o pouco poder político das mulheres, elas devem sentir-se naturalmente subordinadas. No entanto, como Phillips explica, as mulheres nunca entregam o poder aos homens sem lutar. Há séculos que lutam por mais direitos e privilégios, desde os EUA ao Irão. Vendo as coisas desta forma, podemos perguntar por que razão as sociedades matriarcais ainda são, geralmente, consideradas instáveis. A nível global, campanhas fervorosas pela igualdade de género – por vezes inclinando-se para a violência – indicam que o patriarcado também não é tão estável como parece. Talvez o verdadeiro enigma matrilinear não seja a existência de algumas sociedades focadas no feminino, mas a bizarra preponderância das sociedades focadas no masculino.
“Vejo a opressão das mulheres como um sistema”, diz a socióloga Christine Delphy. “Uma instituição que exista hoje não pode ser explicada pelo simples facto de ter existido no passado… mesmo que esse passado seja recente.”
Se nos recusarmos a aceitar a nossa responsabilidade, justificando-a com a nossa natureza, estaremos a desistir de perceber como as coisas aconteceram. Quando explicamos o patriarcado com algo tão simples como uma diferença biológica, mesmo que as evidências apontem para uma realidade muito mais complexa e contingente, perdemos a capacidade de reconhecer quão frágil poderá ser. Deixamos de nos interrogar sobre como funciona a desigualdade ou as formas como está a ser reinventada.
O aspecto mais perigoso de qualquer forma de opressão humana é que pode convencer as pessoas de que não existem alternativas. Isto é visível nas velhas falácias da raça, castas e classes. A questão subjacente a qualquer teoria de domínio masculino é saber por que esta forma de desigualdade deve ser tratada como uma excepção.
Especializada em ciência, a jornalista Angela Saini é a autora dos livros Superior e Inferior, sobre sexismo o racismo na ciência. Este ensaio foi extraído do seu novo livro, The Patriarchs: How Men Came to Rule.