Há mais de quinhentos anos, o povo Chimu, que viveu no actual Peru, sacrificou 260 rapazes e raparigas em rituais arrepiantes. As causas deste massacre ainda são um mistério.

A vítima jaz numa sepultura pouco profunda num lote desocupado, cheio de lixo.
É Sexta-Feira Santa e estamos em Huanchaquito, uma aldeia da costa setentrional do Peru. 

O ritmo da música de dança, que se eleva a partir dos cafés vizinhos, soa assombrosamente como um coração a pulsar. Vem acompanhado do ruído suave das pás utilizadas pelos operários para remover vidro partido, garrafas de plástico e cartuchos de caçadeira usados, revelando assim os contornos de um minúsculo poço de sepultamento escavado numa camada antiga de lama.

Dois estudantes universitários deitam-se de barriga para baixo, um de cada lado da sepultura, e começam a escavar. São arqueólogos ainda em formação. Vestem batas e máscaras hospitalares.

Do solo, acaba por aparecer a calota de um crânio infantil. Trocando as espátulas por trinchas, os escavadores varrem a areia solta, pondo a descoberto o resto do crânio e revelando os ossos do ombro a perfurar o fardo de algodão áspero que o envolve. Por fim, acabam por surgir os restos mortais de um minúsculo lama de pêlo dourado, enrolado ao lado da criança. 

Gabriel Prieto, professor de arqueologia na Universidade Nacional de Trujillo, espreita para o interior da sepultura e faz um sinal de assentimento com a cabeça. “Noventa e cinco”, anuncia. O investigador está a contar o número de vítimas e esta, identificada com a etiqueta E95, é a 95.ª escavada desde que ele começou a investigar este local de sepultamento colectivo em 2011. Esta triste contagem, feita aqui e num segundo local de sacrifícios nas imediações, contabilizou três adultos e 269 crianças, com idades compreendidas entre 5 e 14 anos. Todas as vítimas pereceram há mais de quinhentos anos, na sequência de actos cuidadosamente encenados de um sacrifício ritual que talvez não tenha precedentes na história mundial.

“Este achado é completamente inesperado”, exclama Gabriel Prieto, abanando a cabeça em sinal de perplexidade. Estas palavras tornaram-se uma espécie de mantra para este arqueólogo que tenta compreender o achado tenebroso no sítio arqueológico de Huanchaquito-Las Llamas. Nos nossos tempos e na nossa cultura, a morte violenta de uma única criança faz abalar o coração mais empedernido e o espectro de uma matança colectiva causa horror a qualquer mente saudável. Por isso, fazemos a pergunta: que circunstâncias desesperadas poderiam justificar um acto inimaginável?

Os arqueólogos têm descoberto vestígios de sacrifícios humanos em todas as regiões do mundo. As vítimas podem atingir as centenas e, muitas vezes, são consideradas prisioneiros de guerra, baixas provocadas por combates rituais ou vassalos abatidos após a morte de um chefe ou após a construção de um edifício sagrado. Os textos antigos, incluindo a Bíblia dos Hebreus, documentam a prática do sacrifício infantil, mas as provas de assassínios colectivos são raras no registo arqueológico. Até à descoberta de Huanchaquito, a maior matança colectiva de crianças conhecida no continente americano – e possivelmente no mundo inteiro – era a do Templo Mayor da capital azteca de Tenochtitlán (a actual Cidade do México), onde 42 crianças foram mortas no século XV.

Gabriel Prieto cresceu em Huanchaco, a cidade mais próxima da aldeia de Huanchaquito. Lembra--se de passar tardes inteiras no limite sul da cidade, a explorar as ruínas dos edifícios de adobe de Chan Chan, a antiga capital dos chimu. No seu apogeu, durante o século XV, Chan Chan foi uma das maiores cidades do continente americano, a sede de um império que abrangia cerca de quinhentos quilómetros de extensão ao longo da costa peruana. 

A matança de crianças e jovens lamas (bens muito preciosos para o reino) talvez fosse uma tentativa de persuadir os deuses a travarem as chuvas que tinham provocado o caos entre os chimu.

Essas experiências da infância inspiraram Gabriel Prieto a tornar-se arqueólogo. Após concluir o doutoramento em Yale, regressou à sua cidade natal para escavar um templo com 3500 anos. 

Foi então que, em 2011, o dono de uma loja de pizzas local trouxe notícias alarmantes: os seus filhos e os cães do bairro andavam a encontrar ossos humanos na areia de um terreno desocupado. O indivíduo implorou ao arqueólogo que investigasse a situação.

A princípio, Gabriel pensou que o sítio fosse simplesmente um cemitério há muito esquecido. No entanto, após recuperar os restos mortais de várias crianças envoltas em mortalhas (vestígios datados por radiocarbono de 1400 a 1450 d.C.), o arqueólogo compreendeu que tropeçara num achado muito mais importante. 

As sepulturas não eram típicas dos chimu. As crianças tinham sido enterradas em posições inusitadas – em decúbito dorsal, ou de lado, enroladas sobre si mesmas, em vez de sentadas, direitas, como era costume – e faltavam-lhes os adornos, objectos cerâmicos e outros artefactos funerários habitualmente encontrados em sepulturas desta cultura. 


 

sacrifício

Em vez disso, muitas tinham sido enterradas com lamas – e, possivelmente, alpacas – muito novos. Como fontes vitais de alimento, fibra e transporte, estes animais andinos encontravam--se entre os bens mais valiosos dos chimu. E, por fim, havia mais uma circunstância inusitada: muitas crianças e animais tinham marcas visíveis de cortes no esterno e nas costelas. 

Gabriel Prieto pediu ajuda a John Verano, especialista em antropologia forense da Universidade de Tulane. John acumula décadas de experiência na análise de provas físicas de violência ritual nos Andes, incluindo um massacre perpetrado pelos chimu no século XIII, de cerca de 200 homens e rapazes no sítio de Punta Lobos.

Após exame dos restos mortais de Huanchaquito, confirmou que as crianças e os animais tinham sido propositadamente assassinados da mesma maneira: com um golpe transversal ao esterno, provavelmente seguido da remoção do coração. Sentiu-se impressionado com a localização do corte, bem como com a inexistência de quaisquer “marcas de hesitação” (avanços-recuos da lâmina da faca) sobre os ossos. “Trata-se de uma matança ritual e é muito sistemática”, disse. 

A reconstituição dos acontecimentos em Huanchaquito é difícil, sobretudo porque os arqueólogos e os historiadores sabem pouco acerca dos chimu. O seu império poderá ser o maior de que alguma vez se ouviu falar, mas os manuais de história debruçam-se muito mais sobre as duas civilizações que ocupam um lugar mais importante na imaginação popular:
os moche, cujos impressionantes murais ilustram o sacrifício sangrento de prisioneiros de guerra, e os incas, que venceram os chimu por volta de 1470, e foram, por sua vez, conquistados pelos invasores espanhóis pouco mais de 60 anos depois.

Os chimu não deixaram fontes escritas e, por isso, além dos achados arqueológicos, o pouco que se sabe sobre eles é através das crónicas espanholas. Segundo estas, os incas sacrificavam centenas de crianças sempre que um rei subia ao trono ou morria – afirmação ainda não comprovada por qualquer prova arqueológica – mas não fornecem pistas sobre a prática de sacrifícios infantis de grande escala. “Até agora, não tínhamos qualquer ideia de os chimu fazerem algo parecido”, afirma John Verano, referindo-se ao número inaudito de vítimas. “É o sortilégio da arqueologia.”

Uma pista importante para os acontecimentos de Huanchaquito é a espessa e antiga camada de lama seca na qual as vítimas do sacrifício foram enterradas. Uma camada espessa de lama significa chuvadas torrenciais e, na costa árida da região setentrional do Peru, “essas chuvadas só ocorrem durante o El Niño”, explica Gabriel Prieto.

O sustento da população de Chan Chan provinha de sistemas de irrigação cuidadosamente geridos e das pescarias costeiras: ambos poderiam ter sido prejudicados pela subida das temperaturas da água do mar e pelas chuvadas torrenciais associadas a este fenómeno climático. Um El Niño grave, segundo teorizam os investigadores, poderia ter abalado a estabilidade política e económica do reino chimu. Os seus sacerdotes e chefes poderão ter ordenado sacrifícios em massa como tentativa desesperada para persuadir os deuses a travar a chuva e o caos.

“Este número de crianças e de animais implicou necessariamente um gigantesco investimento em prol do Estado”, afirma Gabriel Prieto.

Jane Eva Baxter, especialista em história das crianças e da infância na Universidade DePaul, concorda que os chimu poderão ter considerado as crianças uma das oferendas mais valiosas que poderiam fazer aos deuses.

“Estavam a sacrificar o futuro e todo esse potencial”, afirma. “Toda a energia e todo o esforço que se investe na continuação da família, na continuação da sociedade no futuro. É isso que se elimina quando se elimina uma criança.”

A oferenda de crianças talvez represente também uma evolução da maneira como as sociedades pré-colombianas procuravam obter favores no mundo dos espíritos. Segundo Haagen Klaus, professor de antropologia na Universidade George Mason, o sacrifício infantil tornou-se mais comum na região após a queda dos moche (a cultura que precedeu a dos chimu) no século IX. Os moche sacrificaram um elevado número de guerreiros adultos capturados no seu Templo da Lua, a poucos quilómetros e poucos séculos de distância do local onde os chimu instalaram mais tarde o seu governo – Chan Chan. 

A necessidade de aplacar os espíritos e de pôr fim às chuvas pode ter sido urgente, mas o sacrifício em massa parece ter sido cuidadosamente encenado. Os jovens lamas (outro recurso importante, abatidos nas manadas colectivas) parecem ter sido especialmente escolhidos para este evento. 

Os arqueólogos têm encontrado indícios de sacrifícios humanos em todo o mundo, mas é raro encontrar provas de sacrifícios em massa de crianças, como as de Huanchaquito - Las Llamas.

Nicolas Goepfert, especialista em camelídeos do Centro Francês para a Investigação Científica, analisou a pelagem bem preservada das vítimas quadrúpedes. Apurou que os chimu seleccionaram provavelmente animais específicos para serem sacrificados em função da sua idade e cor. Lamas castanhos-escuros foram frequentemente enterrados ao lado de lamas castanhos--claros, por exemplo, ao passo que nenhum animal branco ou preto foi sacrificado. 

“Sabemos, a partir das crónicas espanholas, que os incas possuíam um código de cores para os lamas sacrificiais”, diz Nicolas Goepfert. “Talvez os chimu também os seleccionassem assim.” 

A forma como as crianças foram escolhidas continua a ser um mistério. Estudos científicos mostram que as crianças mortas em Huanchaquito eram rapazes e raparigas e que todas tinham sido bem tratadas, havendo escassos sinais de subnutrição ou doença. As análises isotópicas aos dentes sugerem que seriam originárias de muitas regiões do vasto império chimu. A região posterior dos crânios de algumas crianças é invulgarmente alongada, indício de uma modificação craniana propositada só praticada nas terras altas isoladas. 

Persistem várias perguntas sem resposta. Pertenceriam as crianças a famílias da elite ou a famílias pobres? Sem artefactos funerários, é impossível determiná-lo. Quantas famílias perderam filhos no sacrifício? Abdicaram deles de livre vontade, na iminência da catástrofe que se avizinhava, ou deixaram-nos ir sob coacção? Por enquanto, os arqueólogos não têm respostas, mas vários indícios reveladores e provas forenses estão a ajudá-los a reconstituir a sequência dos acontecimentos.

O padrão das pegadas e dos trilhos, preservados na lama seca, mostra ter-se realizado uma procissão formal até ao local do sacrifício. As marcas dos pequenos pés descalços, bem como dos quadrúpedes arrastados à força, levam Prieto e Verano a pensar que as vítimas foram conduzidas vivas até às suas sepulturas, onde foram então mortas. A inexistência de insectos junto aos restos mortais significa que as crianças foram cuidadosamente envoltas em mortalhas e rapidamente enterradas ao lado dos lamas.

Essa tarefa aterradora deve ter sido realizada por duas mulheres adultas que foram abatidas com golpes na cabeça e sepultadas entre as crianças, na zona setentrional do sítio arqueológico. Ali perto foram encontrados os restos mortais de um homem adulto, deitado de costas sob uma pilha de pedras. A sua constituição física, invulgarmente robusta, leva os arqueólogos a imaginar que talvez fosse o carrasco.

Teria aquela custosa oferenda proporcionado algum alívio das chuvadas torrenciais? É impossível saber-se, mas o acontecimento perturbante poderá ser uma janela aberta sobre os últimos e desesperados anos de um império moribundo. 

Poucas décadas mais tarde, os guerreiros incas chegariam às muralhas de Chan Chan e derrubariam os chimu.

Meses depois de encerrar as escavações em Huanchaquito, Gabriel Prieto escreve-me, dizendo que encontrou mais crianças e lamas sacrificados num local chamado Pampa la Cruz. O novo sítio arqueológico é outro terreno vazio numa colina alta, com a diferença de ser encimado por um grande crucifixo de madeira – daí o seu nome. A cruz foi erigida há mais de um século por um pescador grato que sobreviveu a um afogamento quase certo. 

Um pouco mais a sul, ao longo da costa, um monumento novo erigido em homenagem às vítimas sacrificiais de Huanchaquito é composto por uma estátua de um rapaz e de um lama rodeados por palmeiras recém-plantadas, uma por cada vítima humana. Do cume de Pampa la Cruz, avista-se um panorama desimpedido até ao mar. Quando visito o sítio durante o Inverno peruano, alguns praticantes de surf arrojados desafiam as águas frias. Entretanto, Gabriel já escavou os restos mortais de mais 132 crianças chimu, na sua maioria executadas através da familiar incisão transversal ao esterno e envolvidas em mortalhas simples.
A contagem das vítimas descobertas nos dois sítios arqueológicos eleva-se actualmente a 269 crianças, três adultos e 466 lamas.

Entretanto, o investigador mostra-se perplexo com nove sepulturas agrupadas no topo da colina e escavadas nas ruínas de um santuário do período anterior, dos moche, viradas para o mar. Nestas sepulturas, encontram-se também crianças chimu, mas estas foram enterradas com túnicas e toucados complexos adornados com penas de papagaio e ornamentos de madeira entalhada. Nenhuma das vítimas ostenta as habituais marcas de corte no peito, mas o crânio de uma delas foi gravemente danificado por aquilo que certamente foi um golpe mortal desferido na cabeça. 

Durante a semana que permaneço no sítio, Gabriel escava uma enorme faca de cobre com um guiso na ponta que em nada se assemelha a qualquer objecto previamente descoberto por qualquer arqueólogo. “Meu Deus, o que é isto?” exclama. Poderá ser a faca utilizada para matar as crianças aqui enterradas? Esta possibilidade é, ao mesmo tempo, excitante e horrível.

Gabriel Prieto ainda se esforça por compreender o motivo e a lógica subjacentes aos assassínios em massa. Certa tarde, durante um intervalo para almoçar, conta-me uma história antiga que faz incidir uma luz mais benevolente sobre os chimu. As crónicas coloniais descrevem um acontecimento ocorrido após as conquistas dos incas e dos espanhóis, durante o qual Don Antonio Jaguar, chefe dos então acossados chimu, conduziu os novos senhores espanhóis ao esconderijo de um tesouro precioso.

Segundo Gabriel Prieto, reza a lenda que, em Huanchaco, Don Antonio lhes apontou para o peje chico (o tesouro menos importante) e que o peje grande ainda se encontra por descobrir. “Gostava de pensar que as crianças são o peje grande, que eram o que de mais precioso existia para os chimu”, diz Prieto, pensativo, empurrando o peixe de um lado para o outro com o garfo, sobre o prato. “As suas vidas valeriam certamente mais do que o ouro.”