A figura do eterno caminhante surge em numerosas lendas. Nas grandes religiões, são indivíduos condenados a uma deambulação perpétua, por terem proferido blasfémias ou desobedecido a Deus, como é o caso de Caim no judaísmo, de Píndola no budismo ou de al-Sameri no islão. O cristianismo criou a lenda do “judeu errante”.

O ponto de partida da história encontra-se no Evangelho de João, onde são referidas certas personagens que, ao assistirem ao suplício de Jesus, lhe negaram ajuda ou demonstraram desprezo. Noutra passagem, faz-se igualmente alusão a Malco, criado do sumo sacerdote de Jerusalém, que participou na detenção do Messias no Monte das Oliveiras. Baseando-se nestas referências, por volta de 1228 o beneditino inglês Mateus de Paris escreveu uma primeira versão da lenda. O seu protagonista era Cartáfilo, um porteiro do pretório romano que deveria executar a sentença da morte de Jesus. Quando Jesus caiu a caminho do Gólgota, Cartáfilo agrediu-o e forçou-o cruelmente a levantar-se e a prosseguir. Jesus olhou-o com severidade e advertiu-o de que ele estava a caminhar até à crucificação, mas que Cartáfilo caminharia, sem descanso, até ao dia do Juízo Final. Após a morte de Jesus, Cartáfilo, comovido, converteu-se ao cristianismo, adoptando o nome de José, e começou a sua deambulação eterna.

Judeu errante

Uma passagem do Evangelho de Mateus serviu de inspiração à lenda. Nela, Cristo declara: “Alguns dos que estão aqui presentes não hão-de experimentar a morte, antes de terem visto chegar o Filho do Homem com o Seu Reino.” Sob estas linhas, ilustração do poema Ahasvérus, de Edgar Quinet (1833).

Mensagem anti-semita

Desde o século XIII, outros relatos semelhantes disseminaram-se por toda a Itália, embora o nome do condenado mudasse, chamando-se por vezes Buttadeus, outras Juan Espera en Dios, ou Giovanni Servo di Dio. Eram personagens de grande diversidade social e não se caracterizavam pela sua condição hebraica.

Judeu errante

No século XIX, ainda se publicavam composições e panfletos com gravuras do judeu errante, contando a sua história. Nesta, à esquerda, o judeu explicava: “Tenho 1800 anos. Tinha 12 quando nasceu Jesus Cristo [...] Céus, quão penoso é o meu périplo. Dou a volta ao mundo pela quinta vez. Todos vão morrendo e eu continuo vivo.” Depois, confessa o pecado que cometeu, ao maltratar Cristo na cruz. Jean-Gilles Berizzi / Rmn-Grand Palais

Em contrapartida, a partir do século XVI a lenda insistiu em apresentar a personagem errante como um judeu. Esta nova identidade estava, sem dúvida, vinculada ao aparecimento do antijudaísmo de massas. Os judeus foram considerados causadores das desgraças sem fim acontecidas durante as crises de fome e as epidemias do século XIV. A desconfiança e suspeita conduziram à aparição sucessiva dos guetos nas grandes cidades italianas de Veneza e Roma, enquanto os judeus eram expulsos ou obrigados a converter-se na maioria dos reinos europeus. Em paralelo, desenvolveu-se a prática da via crucis, ou caminho da cruz, na qual os fiéis reviviam, com a máxima pungência, a morte de Cristo, pela qual culpavam, precisamente, os judeus. Foi assim que ganhou forma uma lenda do judeu errante de carácter abertamente anti-semita. Este mesmo adjetivo, “errante”, habitual desde finais do século XVII, sublinhava o paralelismo entre o protagonista da lenda e a experiência dos judeus da época, condenados a mudar-se de um país para outro.

Aparições

Durante o século XVI, começou a falar-se numa personagem chamada Ahasvero, que poderia aparecer em qualquer altura e lugar, e que era, na verdade, um judeu que sobrevivera desde a época de Jesus Cristo.

Judeu errante

O mito visto por Doré. Em 1856, Gustave Doré fez doze magníficas gravuras que ilustravam a lenda do judeu errante. Na imagem ao lado destas linhas, o judeu, vestido com farrapos, com um bastão numa das mãos e uma bolsa na outra, atravessa um cemitério cristão. Sobre o céu crepuscular, o artista representou a subida de Cristo ao Gólgota, carregando a Cruz às costas. A sombra do judeu projecta a mesma cena, como manifestação do pecado que cometeu durante a Paixão de Cristo e da culpa que o persegue desde então.

Os escassos viajantes europeus que, naqueles tempos, se aventuravam até à Palestina e a Jerusalém encontravam sempre, de uma ou outra forma, a misteriosa testemunha da Paixão. Na sua peregrinação à cidade santa, o nobre veneziano Carlo Soranzo explicou como foi abordado por um turco nas vielas de Jerusalém. Por uma módica soma, o turco ofereceu-se para o conduzir, em segredo, até um prisioneiro extravagante. Era um indivíduo alto, com armadura, confinado numa casa atrás de grossas portas de ferro. Fora condenado a ficar ali, sem comida nem bebida, até ao dia do Juízo Final. Passava os dias a caminhar, sem parar, de um lado para o outro do recinto, gemendo e batendo no peito. Era o judeu errante.

Na Europa, sucederam-se as aparições desta personagem. Em 1604, foi reconhecido em França por dois jovens gascões. Tratava-se de um sapateiro, cuja lenda era acompanhada de uma célebre quadra alegadamente recitada pelo viajante: «Quando contemplo o universo, / creio que Deus me faz servir de exemplo, / para testemunhar asua morte e paixão, / à espera da Ressurreição.” Em 1774, houve uma nova aparição diante dos burgueses de Brabante, aos quais se apresentou como Isaac Laquedem.

O judeu da ficção

A aparição mais contundente e com maior público ocorreu em Hamburgo em 1542, se dermos crédito ao testemunho de Paul von Eitzen (1521-1598), bispo de Schleswig. Von Eitzen já se mostrara interessado nestes fenómenos escatológicos. Por exemplo, compusera uma obra sobre a viagem de Cristo aos infernos, no decurso dos três dias que durou a sua morte. No seu relato sobre a aparição de 1542, destacou que Ahasvero fora visto por centenas de pessoas e relatou pormenores sombrios sobre os sofrimentos de Jesus e as iniquidades cometidas por Judas Iscariotes.

Um texto apresentava-o desta maneira: “Escutava o sermão com uma devoção extraordinária, com uma atenção insólita só interrompida quando o pregador proferia o nome de Jesus Cristo. Então, esta personagem inclinava-se, batia no peito e suspirava com força [...] Era um homem taciturno e reservado, de conversa piedosa, mas que não falava se não lhe dirigissem a palavra. Falava sempre na língua do país onde se encontrava, comia e bebia pouco e nunca o viam rir. Se lhe oferecessem dinheiro, aceitava apenas dois ou três soldos, dando-os imediatamente aos pobres. Muitas pessoas de diversos países deslocaram-se a Hamburgo para vê-lo, sendo formuladas várias opiniões. A mais comum, para todos, era que ele parecia ter um aspecto familiar, como se fosse um conhecido de outros tempos.”

No século XIX, o mito ganhou nova vida graças ao êxito alcançado em França pelo romance de Eugène Sue, O Judeu Errante (1845), que imaginava que esta personagem vivia condenada a transmitir a cólera durante as suas intermináveis viagens. Acrescentava ainda uma intriga da sua autoria: uma família francesa descendente da irmã do judeu errante viu-se obrigada apartir de França em finais do século XVII, devido à sua religião protestante. Antes disso, confiaram a sua riqueza a um judeu e combinaram encontrar-se para recuperá-la 150 anos depois. No entanto, tiveram de fazer frente a uma conspiração dos jesuítas que ansiavam apoderar-se das suas riquezas. Este folhetim transmitia uma imagem favorável dos judeus, mas foi plagiado e adaptado em muitos relatos e monografias posteriores que assumiram um tom anti-semita. Partes do livro foram incorporadas em Os Protocolos dos Sábios de Sião (1902), no qual o discurso anticlerical foi transformado num argumento racista contra os judeus, incentivando os pogroms na Europa do Leste.