Falta uma semana para o início do Verão de 1951. Em Portugal continental, os jornais noticiam o reinício da actividade vulcânica na ilha do Fogo. Não é uma novidade na longa história de sonos e despertares do gigante cabo-verdiano, mas, desta vez, há um homem da ciência que quer compreender os mecanismos de acção vulcânica em território (então) nacional. Esse homem é Orlando Ribeiro, pai da geografia portuguesa moderna.
Orlando Ribeiro não é geólogo, mas substitui o conhecimento de causa por um entusiasmo juvenil pelos fenómenos naturais.
Ninguém mais se oferece para uma viagem-relâmpago ao arquipélago de Cabo Verde. A ilha do Fogo é remota, a vulcanologia ainda está sob a égide do Serviço Meteorológico Nacional e há muita tendência, nos assuntos coloniais, para a geologia de gabinete. Orlando Ribeiro não é geólogo, mas substitui o conhecimento de causa por um entusiasmo juvenil pelos fenómenos naturais. Com bons contactos, persuade ministros e secretários de Estado. Garantem-lhe meios aéreos, que depois não serão disponibilizados. Nas malhas da burocracia, o geógrafo perde oito dias importantes do início da erupção, ansioso e desterrado no Sal, a aguardar transporte marítimo para o centro eruptivo.
Com sentido de modernidade, Orlando Ribeiro convidara Salvador Fernandes, operador de cinema, para o acompanhar. Diz-lhe com franqueza que não sabe se haverá dinheiro para lhe pagar, mas o operador partilha o sentido de aventura (e de loucura) do cientista. Chegam a São Filipe na noite de 27 de Junho. No dia 28, já no Fogo, correm para o ponto de erupção lávica e constatam, eufóricos, que “as lavas ainda corriam”. Filmam o que podem, e a lava líquida imobiliza-se nessa mesma noite, mantendo-se as projecções incandescentes. São as primeiras imagens em movimento de uma erupção activa em território nacional.
Perante o avanço rápido das escoadas de lava, pouco restava à população da aldeia de Portela para lá da observação do fenómeno. Cerca de 1.200 pessoas foram evacuadas da caldeira do vulcão, num esforço bem sucedido de protecção civil.
Como crianças, não querem abandonar o centro explosivo. Passam ali cinco horas. Dormem os oito dias seguintes numa casa das proximidades, onde “se guardava ricínio”, a 1.700 metros de altitude, observando as projecções incandescentes e o ribombar contínuo do gigante rochoso. Passam frio e calor, mas a aventura é inesquecível. Acabam por partir 21 dias depois – uma vez mais, por força da burocracia. Orlando Ribeiro tinha de vir a Lisboa fazer exames e o governador do arquipélago precisava do navio Santa Maria para serviço da província. Pouco importa. É no Fogo que Orlando Ribeiro assina o prefácio do livro da vulcanologia portuguesa que terá um capítulo nobre na memória geológica dos Capelinhos, na ilha do Faial em 1957/58, com Raquel Soeiro de Brito, outra geógrafa que inovou nesta disciplina.
“Vulcões que não fazem mortandade ficam rapidamente esquecidos.”
“Vulcões que não fazem mortandade ficam rapidamente esquecidos.” A frase é de Victor Hugo Forjaz, presidente do Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores, e culmina uma vida inteira de estudo de vulcões na Islândia, em Itália, no Japão, na Indonésia e nos Açores. É a voz da experiência acumulada, e o lamento ecoa a tristeza da oportunidade perdida pela ciência portuguesa. “As universidades portuguesas demoraram muito tempo a responder à emergência”, conta. Por burocracia, asfixia financeira ou ausência de convite formal das autoridades locais, seis décadas depois da erupção de 1951, os meios científicos de ponta não chegaram logo onde poderiam fazer a diferença. Ironicamente, chegaram primeiro ao Fogo as equipas científicas espanholas e as turísticas italianas de volcano watching, tecnicamente bem apoiadas.
“Aprendi com o geólogo Haroun Tazieff que se deve passar horas a observar como o ‘monstro’, a fera terrestre, se exibe, como se fosse uma sessão circense.” Os primeiros dias são fundamentais: “É preciso perceber os seus feitiços, as suas zonas neutras e fiáveis, para planear uma aproximação quase segura. É a fase mais apaixonante da ‘conquista de um vulcão, seja nos Capelinhos, como eu, jovem atónito, o vi fazer em 1957, seja no Sakurajima (baía japonesa de Kagoshima de São Francisco Xavier), onde também o vi fazer e aconselhar, já como jovem vulcanólogo.”
Localizada no Sotavento do arquipélago cabo-verdiano, a ilha do Fogo é mais facilmente atingível a partir de Santiago, a maior ilha e onde se encontra a capital Praia.
O lamento do primeiro catedrático de Vulcanologia do país tem uma motivação prática, para lá do mero estudo científico. “Nos três ou quatro primeiros dias, quando um vulcão stromboliano começa a desenhar o seu estilo, é por vezes possível planear o seu curso de lavas, desviá-las e poupar uma parte significativa dos povoados que o envolvem. Mas para isso é preciso lá estar.”
Dias depois da erupção, a Fundação para a Ciência e Tecnologia disponibilizou apoio financeiro à missão C4G (Colaboratório para as Geociências), um consórcio criado em 2014 por 11 instituições académicas e governamentais portuguesas para partilha de recursos. No final da primeira semana, encontravam-se por fim em Cabo Verde meios consideráveis de investigação.
Em 2010, o fotógrafo Pedro Narra subiu ao Pico do Fogo, admirando a paisagem desde o ponto mais alto, que se ergue a 2.829 metros. Lá em baixo, estendiam-se as vinhas, campos agrícolas, pastagens e as casas de duas populações – Portela e Chã das Caldeiras. Era arrepiante pensar no que o vulcão poderia fazer àquelas comunidades da caldeira no dia em que despertasse. “Quatro anos depois, vi nas notícias que a lava se aproximava do local”, conta. “Parti de imediato.”
No mês anterior, tinham-se registado abalos sísmicos de forte intensidade, sobretudo nos dias 20 e 22. As populações preparam-se, tal como já tinha acontecido em 1995, quando o vulcão despertara para dois meses de intensa actividade.
Na Portela, a actividade vulcânica, iniciada a 23 de Novembro, não surpreende. No mês anterior, tinham-se registado abalos sísmicos de forte intensidade, sobretudo nos dias 20 e 22. As populações preparam-se, tal como já tinha acontecido em 1995, quando o vulcão despertara para dois meses de intensa actividade.
Este desfecho é monitorizado pelas voluntariosas equipas cabo-verdianas e canarienses que se encontram no terreno. Segundo especialistas da equipa do Observatório Vulcanológico da Universidade de Cabo Verde e do involcan - Instituto Vulcanológico das Canárias, que esteve junto do vulcão nos últimos três meses, nas semanas precedentes à erupção ocorreram emissões anómalas de CO2. Entre Março e Agosto, verificara-se um acréscimo significativo de 330 toneladas de CO2 por dia, um sinal geoquímico precursor da erupção. É accionado o plano de emergência. Cerca de 1.200 pessoas são evacuadas. Algumas levam portas, janelas, sanitários, entre outros objectos, dificilmente substituíveis.
Sempre acompanhado por Zé António, incansável técnico do Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica de Cabo Verde, responsável pela rede de monitorização do vulcão do Fogo, Pedro Narra é dos poucos fotógrafos que acompanhou in loco as horas decisivas da definição do “monstro”.
Certa noite, os dois homens aproximam-se da fonte eruptiva. Atravessam um campo de lava solidificada procedente da erupção de 1995, trepando elevações sucessivas até chegarem ao topo. Deparam com um cenário impressionante, dantesco: “Era o verdadeiro ‘rio de lava’. A lava escorria, movimentava-se a uma velocidade impressionante, imparável”, diz o fotógrafo.
Diário de um vulcão - A ilha do Fogo corresponde à parte emergente de uma grande montanha vulcânica ainda em evolução e é coroada por uma impressionante caldeira de colapso, de abatimento, bem expressa na imagem de satélite. 1 e 2 - História milenar: Ao longo de milénios, o cone principal foi crescendo e conquistando altura à custa de sucessivas acumulações de materiais vulcânicos (lavas e piroclastos). Há poucos milénios, por motivos decerto tectónicos, a montanha perdeu equilíbrio e afundou-se, quase na vertical, deixando como testemunho o espantoso desnível de cerca de mil metros (entre 1 e 2); 3 - A primeira caldeira: Assim se gerou a primeira caldeira representada pela topografia quase aplanada do interior da depressão. Seguiu-se uma turbulenta reposição de um cone central (3) e de deslizamentos profundos rotacionais, em concha, afundando-se de poente para nascente (setas largas) e que justificam a assimetria topográfica da ilha, ou seja, quase metade oriental da montanha “mergulhou” no oceano!; 4, 5 e 6 - Erupções modernas: Megadeslizamentos desse estilo são conhecidos em muitos vulcões, incluindo os das Canárias (La Palma, Teide) e dos Açores (Pico, Furnas, Povoação). Nos últimos séculos, o interior da caldeira tem sido teatro de diversas erupções, semelhantes à de 1951 (6), de 1995 e de 2014-15 (fissuras eruptivas 4) acompanhadas de diversas efusões de lavas como as assinaladas (5). Texto Victor Hugo Forjaz (Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores). Imagem de satélite: Observatório da Terra, NASA, processada por Jesse Allen, e dados EO-1 ALI, cortesia da equipa NASA EO-1.
A noite acentua os tons alaranjados dos materiais vulcânicos. A escassos metros da corrente, esmagado pelo calor abrasador, Narra capta fotografias memoráveis até perceber, por insistentes sinais visuais, que têm de partir. No povoado da Portela, um drama começa a ganhar forma.
O dia começa a clarear e a frente da escoada de lava torna-se palpável: tem 1,5 a 10 metros de altura. Dista agora poucos metros das casas da Portela, onde Zé António também reside. No terreno, as forças armadas cabo-verdianas ajudam a população com todos os meios disponíveis. Não há perturbações da ordem, nem histeria. Apesar da inevitabilidade do que aí vem, a incredulidade é o sentimento dominante. O silêncio é quebrado apenas por um som seco, imemorial, daquele rolo compressor ardente. A lava toca a primeira casa. O ruído é inesquecível. Paredes de tijolo são consumidas como se fossem Legos. A nova sede do Parque Natural é engolida lentamente.
Protegidos pelas elevações onde há pouco se cultivou vinho, alguns indivíduos observam em silêncio a redefinição do território que lhes é familiar. A lava parece insaciável, devorando tudo à sua volta. Colheitas estragadas, casas consumidas. A prevenção e as características da erupção salvam vidas. Ficarão lições duradouras? “Vulcões que não fazem mortandade ficam rapidamente esquecidos.”
A lava parece insaciável, devorando tudo à sua volta. Colheitas estragadas, casas consumidas.
Das profundezas da alma cabo-verdiana, Pedro Narra ouve cânticos. Canta-se. Como outras gerações o fizeram no Fogo; como outras o farão da próxima vez. Há suspiros e o choro abafado de poucos. Alguns cães recusam abandonar as soleiras das portas. Famílias e vizinhos abraçam-se. Lentamente, de rostos fechados mas obstinados, alguns seres humanos transportam os últimos bens. Seguram-nos como podem: em braços ou apoiados na cabeça. Nesta competição injusta entre a obstinação da lava e a resiliência humana, o vulcão ganha, mas a última palavra não lhe pertence. Por toda a ilha, equipas científicas vão recolhendo dados, estudando, aprendendo.
Uma dessas equipas é o grupo C4G. Rui Fernandes, coordenador da equipa, não esquecerá tão cedo “o ruído da lava a quebrar, como se fosse cerâmica, em oposição ao silêncio total das populações”, conta. A sua equipa de quatro elementos filma e fotografa fases importantes da actividade do Fogo, na esteira do que Salvador Fernandes documentara também em 1951. A equipa recolhe dados para entender o comportamento dinâmico do vulcão durante a erupção: instala sete receptores GPS e nove sismómetros (em colaboração estreita com o Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica) e organiza recolhas de amostras de lavas para estudos geoquímicos. Ao abrigo da sua intervenção no local, o consórcio C4G analisa também a qualidade do ar e o seu impacte nas populações.
A equipa portuguesa do C4G instalou sete receptores GPS para a medição da deformação associada ao vulcão. Foram também posicionados nove sismómetros para registar a sismicidade associada à erupção.
Noutro ponto da caldeira vulcânica, a vulcanóloga Sónia Silva e a geoquímica Nadir Cardoso, da equipa internacional cabo-verdiana e canariense, realizam medições de gases e temperaturas. “Avaliamos a emissão de dióxido de enxofre e outros gases para a atmosfera através de plumas vulcânicas”, explica Sónia Silva.
A taxa de emissão de gases vulcânicos reflecte o número, profundidade e conteúdo de magma volátil dentro de um sistema vulcânico e “é uma importante ferramenta de monitorização para elucidar as mudanças na actividade vulcânica”.
O problema? A monitorização tem de ser feita na proximidade das fontes eruptivas, onde o calor faz do terreno uma sauna.
Na base do cone vulcânico, as lavas arrefecem gradualmente; noutros pontos, chegam a atingir temperaturas de 500 e 600ºC.
Utilizando sensores ópticos remotos instalados em veículos, a equipa faz medições contínuas e realiza diariamente trajectos de 15 a 25 quilómetros. Mede a temperatura latente recorrendo a câmaras térmicas. Através do monitor, tudo parece artificial, como se estivéssemos a observar um programa na televisão. Na base do cone vulcânico, as lavas arrefecem gradualmente; noutros pontos, chegam a atingir temperaturas de 500 e 600ºC. A interpretação e transmissão destas medições para as autoridades de protecção civil permite reequacionar todos os dias as respostas à emergência.
Quase invisíveis a olho nu, as emissões gasosas atestam também a violência do fenómeno. Na primeira semana da erupção, os “resultados mostram que o valor médio da quantidade de dióxido de enxofre emitido para a atmosfera foi de 10.900 toneladas por dia”, diz Nadir Cardoso. “É um valor ligeiramente inferior às 14 mil toneladas/dia que são originadas normalmente na Europa como resultado da actividade humana. Aqui, porém, é um registo extraordinário.”
Até 1760, o vulcão central da ilha do Fogo registou uma actividade que se pode considerar quase contínua, traduzida por torrentes de lava, projecções ora incandescentes, ora de cinzas anegradas, emissão de gases, nuvens de vapor.
Até 1760, o vulcão central da ilha do Fogo registou uma actividade que se pode considerar quase contínua, traduzida por torrentes de lava, projecções ora incandescentes, ora de cinzas anegradas, emissão de gases, nuvens de vapor. Nas décadas seguintes, o sistema vulcânico local modificou-se. As erupções que conhecemos localizaram-se nas zonas mais altas e alguns derrames de lava atingiram o oceano, como sucedeu em 1785, 1799, 1847, 1852, 1857 e 1951. “Há referências igualmente a exalações submarinas mas elas são imprecisas”, explica Victor Hugo Forjaz, que ali se deslocou em 1995.
Há várias décadas que o vulcanólogo português Frederico Machado propôs um modelo de erupções sequenciais para designar os episódios de actividade no oceano Atlântico Central, caracterizado por uma sequência raramente quebrada de episódios nos Açores, seguidos de actividade nas Canárias e depois em Cabo Verde. Analisando o registo histórico, essa sequência ganha forma, começando em 1798 em Tenerife, 1799 no Fogo e 1808-11 em São Jorge, nos Açores; no século XX, encontra-se novo ritmo com o episódio de La Palma em 1949, a erupção do Fogo em 1951 e o vulcão dos Capelinhos em 1957-58. “Mais recentemente, tivemos actividade em 1971 em Teneguia, nas Canárias, em 1995 no Fogo e em 1998-2000 na Serreta, ao largo da ilha Terceira”, lembra Victor Hugo Forjaz.
A evacuação de pessoas e bens das aldeias nas proximidades da fonte eruptiva tornou-se dolorosamente necessária à medida que as escoadas de lava ganhavam volume.
“Já neste século, El Hierro, nas Canárias, começou a agitar-se em 2011, tivemos agora o episódio do Fogo de 2014-15 e, com alguma probabilidade, a próxima erupção deverá ser nos Açores”, diz. “Essa migração rotacional de erupções possivelmente relaciona-se com uma pluma de magma profundo que é excitada por marés terrestres, ou seja, marés da parte sólida e semi-sólida da crosta”, acrescenta.
As causas para a irregularidade da sequência, que pontualmente se antecipa, ainda dividem cientistas. A previsão da actividade vulcânica acompanha os maiores anseios da espécie humana desde a Antiguidade. “Não é uma questão de medo ou de alarme”, resume Victor Hugo Forjaz. “É uma questão de preparação, de aceitação do risco e da respectiva minimização.”