No ano de 1284, apareceu um homem muito estranho em Hamelin. Tinha uma capa com muitas cores […] e dizia que sabia como livrar a cidade de ratos e ratazanas a troco de determinada soma de dinheiro.” É assim que começa a lenda do flautista de Hamelin, cujo final é bem conhecido: como os habitantes da aldeia não lhe pagaram a soma acordada, o flautista voltou a aparecer a 26 de Junho, dessa vez com um aspecto horrível e um estranho gorro avermelhado (a forma como se representa o diabo em muitas lendas medievais); ao ritmo da sua melodia, levou todos os meninos e meninas da aldeia (130 no total), saindo com eles pela porta oriental da localidade e desaparecendo no interior de uma gruta. Salvaram-se apenas três rapazes: um muito pequeno, que regressou para ir buscar o seu casaco, um cego e outro mudo, que ficaram para trás, pois não foram capazes de relatar nada do que viram ou ouviram, embora a tradição oral refira a posterior aparição de todas as crianças na outra extremidade da região, na Transilvânia.

ATHANASIUS KIRCHER

O “pai” do conto. Athanasius Kircher (1602-1680), jesuíta famoso na sua época devido à vastidão dos seus interesses científicos, deslocou-se a Hamelin para averiguar os fundamentos da lenda do flautista. Na sua composição musical Musurgia universalis (1650), Kircher (num desenho da Biblioteca Ambrosiana de Milão) abordou as melodias do flautista e o seu possível efeito mágico.

Realidade ou ficção?

Haverá algum facto histórico oculto por detrás do conto que os irmãos Grimm popularizaram em 1816? Ou será o eco de uma tradição popular? As origens da lenda remontam à Idade Média. Aprimeira representação gráfica das crianças saindo de Hamelin foi feita em 1300 num dos vitrais da igreja do mercado, destruída no século XVII. Nela não apareciam ratazanas. Apenas um homem com um instrumento musical, seguido pelas crianças.

Aparecem as ratazanas

Foi apenas em 1565 que o conde suábio Froben von Zimmern descreveu, pela primeira vez, na sua crónica familiar, a praga de roedores. Estas pragas abundavam na Idade Média e, embora os animais ainda não fossem temidos como transmissores de doença, eram-no por acabarem com os cereais colhidos e era normal que houvesse indivíduos dedicados ao seu extermínio. Tal como os carrascos, ou os limpadores de latrinas, estas pessoas viviam à margem da sociedade devido às características da sua profissão, pois embora fossem necessários, ninguém queria partilhar a vida quotidiana com eles. Por essa razão, deslocavam-se de cidade em cidade, de aldeia em aldeia, sem terem qualquer direito de cidadania. O uso de armadilhas e venenos era um dos meios mais eficazes para combater os roedores. No entanto, a lenda descreve um método invulgar, mas cujo resultado foi igualmente eficaz: o som de uma flauta.

irmãos grimm

A rua sem ruído. Jacob e Wilhelm Grimm (retratados aqui pelo seu outro irmão, Ludwig) incluíram na sua obra Lendas Alemãs, publicada entre 1816 e 1818, a versão da história do flautista de Hamelin que todos conhecemos na actualidade. Os irmãos Grimm recolheram tradições orais ainda vivas na sua época, como a que dizia que a rua percorrida pelas crianças para saírem da aldeia chamava-se Bungelosenstrasse, “rua sem ruído”, pois nela não era permitido dançar nem ouvir música.

Foi esta combinação, entre dados precisos e elementos mais próprios do foro do irreal, que levou os historiadores a chegarem à conclusão de que existe um acontecimento histórico real por detrás da história do flautista de Hamelin, o qual, pouco a pouco, foi ganhando a forma de uma lenda e se fundiu com outras previamente existentes.

A fome de 1284

Nas actas municipais dos Conselhos da cidade de Hamelin, não se encontra documentado o facto de a cidade ter contratado alguém para livrar o município de uma praga de ratazanas.

No entanto, no ano mencionado na lenda, a cidade sofreu uma terrível fome provocada precisamente pelos roedores, queacabaramcom as colheitas de cereais.

flautista

A história do flautista, reconstituída no século XVI por Augustin von Moersperg, com base no vitral da igreja do mercado de Hamelin.

Também está documentado que, precisamente devido à crise de fome, muitos jovens emigraram da região onde se situa Hamelin (Baixa Saxónia) para participar na colonização do Leste, onde esperavam encontrar melhores condições de vida. Para esse efeito, responderam ao apelo de Ladislau IV de Hungria (1262-1290). O seu vasto reino estendia-se desde a actual Croácia até aos Cárpatos, um território com escassa densidade de habitantes e que o rei queria povoar com germânicos, aos quais prometia isenção de impostos e de serviço militar. A oferta, dada a conhecer nas aldeias por um locator – um povoador que se apresentava a cavalo com roupas chamativas e reunia as pessoas na praça através do som do seu apito – era mais do que atraente para os camponeses das margens do rio Weser, explorados pelos seus senhores e, em alguns casos, tratados como escravos.

A mulher que assistiu a tudo

O século XIII foi um momento decisivo no processo de colonização do Leste, razão pela qual o flautista talvez fosse um locator, mobilizando com o silvo do seu apito os jovens do lugar, que o seguiriam em busca de uma vida melhor. O acontecimento representou, evidentemente, a perda de toda uma geração para Hamelin, acontecimento traumático posteriormente justificado com recurso à lenda que não tardaria a ser construída e divulgada pelo folclore regional.

A Catena Aurea, uma colecção de lendas de inícios do século XV, contém a mais antiga versão conhecida da misteriosa história. É precisamente nela que aparece um dado que a relaciona com esta migração histórica, pois o texto menciona a existência de uma testemunha dos acontecimentos: “E a mãe do senhor decano Lüde viu as crianças partirem.” Segundo o livro de documentos notariais do arquivo histórico de Hamelin, a família Lüde foi uma das mais activas nos negócios da cidade, razão pela qual algum dos seus membros poderia perfeitamente ter presidido a uma corporação e, por conseguinte, ostentar, o título de decano. Este facto conferiria, portanto, uma natureza de realidade a uma história apoiada apenas no mundo da lenda.

flautista de hamelin

O flautista e as ratazanas numa ilustração de um livro infantil do século XIX. Leemage / Prisma Archivo

A pista transilvana

A teoria da migração dos jovens seria confirmada por outro facto decisivo: a toponímia da região de Siebenbürgen (“Sete Burgos”), na actual Transilvânia, assim denominada em alemão por conter sete grandes núcleos urbanos fundados por alemães.

Nesta zona, aparece o nome de Hamelspring (“o lugar onde nasce o Hamel”), embora não exista ali nenhum rio com esse nome. Isso corresponderia ao costume dos emigrantes de darem aos povoados por si fundados o mesmo nome dos seus lugares de origem. A história que hoje conhecemos é fruto do trabalho do jesuíta Athanasius Kircher que, no século XVII, também investigou o fundo histórico da lenda. No princípio do século seguinte, o erudito Johann Gottfried Gregorii difundiu a lenda no território de expressão germânica através dos seus livros populares de geografia. Foram estas as versões conhecidas por Goethe e outros autores românticos. Dois deles, Clemens Brentano e Achim von Arnim, entusiasmados com o acervo da poesia popular, encorajariam os irmãos Grimm a fixar por escrito as versões da prosa popular na sua antologia de lendas.

hamelin

Cidade medieval. Aspecto actual de uma viela da cidade antiga de Hamelin, na Baixa Saxónia, cenário da história do flautista.