De tez escura e traços negróides, possivelmente núbio, Iker, “o excelente”, deve ter combatido nas fileiras do governador de Tebas que foi coroado rei do Alto e Baixo Egipto depois de vencer a guerra civil contra o Norte. Foi sepultado há quatro mil anos com os seus bastões de comando, arcos e flechas em Dra Abu el-Naga, na orla ocidental de Lucsor. Recentemente, arqueólogos espanhóis encontraram a sua sepultura intacta, o que nos permite perscrutar uma época pouco conhecida da história do Egipto. 

Tebas, capital do Alto Egipto, cerca do ano 1470 a.C. Djehuti, supervisor do tesouro e dos artesãos no reinado de Hatchepsut, desejoso de construir para si uma “morada para a eternidade” que despertasse a atenção, ordenou a ampliação da fachada talhada na rocha da colina de Dra Abu el-Naga com blocos de pedra calcária até ultrapassar os cinco metros de altura. Além disso, aumentou o tamanho do pátio de entrada, alargando-o até aos 34 metros de comprimento.

Para esboçarem um pátio tão amplo, os trabalhadores foram tirando da frente da fachada as lascas de pedra resultantes da rocha picada para construir o interior do túmulo-capela, com o propósito de nivelar a inclinação natural da encosta e desse modo obter uma maior superfície horizontal. No processo, de maneira consciente ou inconscientemente, taparam sepulturas anteriores, cinco séculos mais antigas, datadas de cerca de 2000 a.C., que assim ficaram ocultas e protegidas até aos nossos dias. 

No dia 14 de Fevereiro de 2007, à distância de 22 metros atrás da fachada, descobrimos um caixão cuja base assentava sobre a rocha-mãe, apenas um metro abaixo do nível do “piso falso” do pátio de Djehuti. Tinha sido simplesmente tapado com terra e, por não dispor de qualquer tipo de protecção, as sucessivas infiltrações de água acumularam grande quantidade de barro no interior do sarcófago. A sua proprietária, a quem chamámos Valentina, tinha sido uma mulher com mais de 50 anos cujo único adorno era um leve colar de contas de faiança. O seu tesouro funerário resumia-se a duas pequenas vasilhas de barro.

No slideshow, diversos pormenores do caixão de Iker:


No ano seguinte, descobrimos nessa mesma zona uma segunda sepultura, na qual o caixão fora empurrado até ao interior de uma pequena cavidade na rocha-mãe, imediatamente encerrada com grandes pedras. Os indícios fornecidos por esta sepultura permitiram a descoberta prévia de uma bandeja de barro que ficara de fora, à entrada da cavidade, para fazer as libações de despedida do defunto depois de este ser enterrado.

Ao lado do caixão, junto ao sector onde a cabeça repousava, havia cinco flechas fabricadas com canas e madeira de acácia. Apesar de também ter corrido água no interior do abrigo rochoso, estavam em bom estado e conservavam algumas plumas de ave na sua extremidade posterior.
As flechas tinham sido intencionalmente partidas para que não pudessem ser utilizadas contra o defunto, por artes mágicas, no Além. Ao contrário do caixão anterior, este estava pintado de vermelho, com uma tira branca que percorria as quatro faces laterais e a tampa fora inscrita com signos hieroglíficos policromados ingénuos, uma característica da XI dinastia, que dominou todo o Egipto a partir de 2040 a.C.

 A título de curiosidade, o escriba, com a mesma intenção que levara à quebra das flechas, cortou o pescoço à figura da víbora (correspondente à letra f) para que esta não ganhasse vida e atacasse o defunto.
As inscrições invocam as divindades da necrópole, Osíris, Anúbis e Hathor, e pedem-lhes para outorgar ao proprietário um bom enterro e todo o tipo de oferendas. O seu nome, Iker, que significa “o excelente”, surge escrito uma única vez nos pés do caixão.

Apesar dos traços negróides de Iker, a máscara funerária com que foi enterrado imortalizou-o com a tez amarelada e uma barba incipiente. Fotografia: José Miguel Parra.


Depositaram-no de costas e olhando para leste, para o nascer do Sol. Assim, todas as manhãs, Iker poderia ver o astro através de dois grandes olhos pintados desse lado. Envolveram-lhe o corpo num sudário, e a cabeça e o tronco foram cobertos com uma máscara funerária de cartonagem pintada com cores vivas.

A tez foi representada de amarelo e foi ainda pintada uma barba incipiente. Um amplo colar de contas de faiança foi colocado sobre o peito. Quatro bastões de comando e dois arcos quase com a altura da múmia foram colocados sobre esta. Iker media 1,57 metros e deve ter morrido com cerca de 40 anos. Segundo parece indicar o seu crânio, era de tipo negróide e sofreu um golpe forte no malar esquerdo na adolescência, ficando com o osso deformado. Além disso, deveria sofrer de dores nas costas, como atesta uma lesão na quinta vértebra lombar. 


Arcos e flechas - No exterior do caixão, junto à cabeça do defunto, foram depositadas cinco flechas que milagrosamente conservaram parte das plumas de ave coladas à extremidade posterior(em cima). As flechas medem cerca de 82 centímetros e são de junco, com uma vara de acácia no interior que sobressai numa das extremidades para tornar a ponta mais pesada e resistente. Fotografia Jose Latova. Quatro bastões de comando com pouco mais de um metro de altura e dois arcos com 1,52 e 1,62 metros foram colocados sobre a múmia de Iker, no interior do caixão. Foram talhados em madeira de acácia e tamarisco. As extremidades dos arcos conservam os nós do tensor, feitos a partir de intestino de animal (em baixo).

A egiptóloga Salima Ikram, da Universidade Americana do Cairo, especifica que “a sepultura intacta de Iker é uma das descobertas arqueológicas mais excitantes da Tebas antiga. Cada particularidade do conjunto funerário é um autêntico tesouro de informação, desde o sarcófago pintado à pressa [assim o sugerem os borrões de tinta vermelha que mancham a tira branca e os signos hieroglíficos da inscrição, previamente pintados], até aos insectos que proliferaram no seu corpo humildemente mumificado”. 

É possível que Iker fosse um dos guerreiros núbios utilizados como mercenários por Mentuhotep II, o primeiro governante de Tebas que conseguiu fazer-se coroar rei do Alto e Baixo Egipto, aproximadamente em 2040 a.C., durante a XI dinastia. Devido ao desgaste provocado pela guerra civil contra os reis do Norte, o líder rebelde decidira reforçar o seu exército com soldados estrangeiros e muitos deles, depois de arrasarem Heracleópolis, fixaram-se na nova capital do reino, Tebas, mantendo-se ao serviço do novo soberano. O exército convertera-se num meio viável para imigrar e integrar a sociedade egípcia e Iker pode ter sido um bom exemplo desta estratégia. A carreira militar era então um modo rápido e eficaz de ascensão social.

A carreira militar era então um modo rápido e eficaz de ascensão social.

Mentuhotep II, unificador do país, transformou-se no faraó tebano por excelência, e a sua memória perdurou durante muitos séculos entre os monarcas egípcios. Quinhentos anos mais tarde, a rainha Hatchepsut tentou associar-se a ele, construindo o seu próprio templo funerário em Deir el-Bahari. Por outro lado, os artistas e escribas da rainha, como Djehuti, classificaram aquela época como período clássico e procuraram nesse passado modelos e inspiração para desenvolver as suas criações.

O transporte do sarcófago de Iker do local onde foi sepultado revelou-se uma tarefa difícil: parte do tecto da cavidade encontrava-se meio metro abaixo do muro lateral de adobe do pátio de entrada do túmulo-capela de Djehuti, que nesse ponto alcançava três metros de altura e cuja estabilidade não devíamos debilitar. A água que no passado se infiltrou no caixão estragou parte da máscara de cartão e do sudário; no seu exterior, permitiu que terra utilizada para enterrá-lo se incrustasse parcialmente na pintura. 

O transporte do sarcófago de Iker do local onde foi sepultado revelou-se uma tarefa difícil.

A sua limpeza e consolidação foram realizadas durante as quatro campanhas seguintes no interior do monumento de Djehuti. Em Maio de 2012, Iker foi por fim trasladado para o Museu de Lucsor, onde se encontra actualmente em exposição, acompanhado pelos seus inseparáveis arcos, flechas e bastões de comando.

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