Este rolo de textos, mapas e desenhos gerou grande polémica acerca da sua autenticidade quando foi descoberto, há vinte anos.

De vez em quando, há um golpe de sorte que dá um verdadeiro empurrão à ciência e aumenta, de forma significativa, o conhecimento disponível até então. São achados especiais que nos fazem perceber que os acontecimentos nem sempre são como pensávamos, surgindo frequentemente envoltos em polémica.

Um destes grandes golpes de sorte aconteceu em finais da década de 1990, ao ser divulgada a existência de um objecto extraordinário, então propriedade de privados. Era um conjunto de vários fragmentos de uma secção com mais de 2,5 metros de comprimento de um único rolo de papiro, datado do início do século I d.C., com um conjunto de características nunca vistas.

Mapas e desenhos

Na parte da “face A” (ou recta), há dois novos textos geográficos escritos em grego: três colunas com um elogio da ciência geográfica, que o autor considera estar à altura da filosofia, e mais duas colunas com uma descrição da Península Ibérica. O seu início coincide com um fragmento identificado por um autor medieval, Constantino Porfirogénito, como tendo sido escrito pelo geógrafo grego Artemidoro de Éfeso, do século II a.C., cuja obra se perdeu na Antiguidade e da qual apenas se conhecem poucos fragmentos. Daí que o documento seja conhecido como Papiro de Artemidoro. Entre os dois textos há um mapa inacabado cuja interpretação é um mistério: há quem proponha tratar-se de uma região da Península Ibérica, ou talvez o delta do Nilo, ou até a Sicília ou Chipre. Seja como for, é o único exemplo de um mapa grego conservado em papiro e, além disso, mostra-nos que já havia mapas regionais no século I, algo que os investigadores sempre questionaram. A isto acrescentam-se dois conjuntos de desenhos. Nos espaços em branco existentes no lado direito, vê-se uma série de esboços de pés, mãos e cabeças humanas em diversas posições, enquanto na “face B”, ou verso, há cerca de quarenta figuras de animais, que representam provavelmente a fauna exótica da periferia do mundo, acompanhadas por legendas com os seus nomes.

papiro Artemidoro

Nunca dantes se encontrara um papiro com tal mistura de textos e conjuntos gráficos. Surgiu, então, a necessidade de explicar por que razão confluíam nele elementos tão diferentes. Uma conclusão parecia certa: o papiro passara por várias fases de utilização (várias “vidas”), algo que já fora deixado claro pelos primeiros estudos realizados por dois eminentes papirólogos, Claudio Gallazzi e Bärbel Kramer, respectivamente das universidades de Milão e Triers.

Em 2004, o papiro foi vendido à Fondazione per l’Arte della Compagnia di San Paolo pela astronómica quantia de 2,75 milhões de euros – o mais elevado preço alguma vez pago por um único papiro. Em 2005, após alguns trabalhos de conservação, foi mostrado ao público pela primeira vez no âmbito de uma exposição precisamente intitulada As três vidas do papiro de Artemidoro, em cuja organização participou Salvatore Settis.

Settis é uma eminente figura da cultura italiana, historiador da arte, arqueólogo e, na altura, director da Escola Normal de Pisa.

Quais eram essas “três vidas”? Segundo esta hipótese, o papiro nascera como parte de uma edição de luxo da obra geográfica de Artemidoro, mais especificamente no início do Livro II, onde as secções de texto eram ilustradas pela inserção de mapas. Este projecto original fora abandonado por motivos desconhecidos e o seu vasto verso em branco fora aproveitado para representar uma série de figuras de animais exóticos que talvez servissem de repertório para a elaboração de frescos ou mosaicos. A confirmar-se, isto revelaria a existência de repertórios de modelos na arte antiga, algo de que se suspeitava, mas não se podia demonstrar.

papiro Artemidoro

O Papiro de Artemidoro foi reciclado como elemento do revestimento, ou do recheio, de uma múmia. Pelos textos encontrados em redor, pensa-se poderá ter vindo de Antaiopolis ou talvez de Alexandria. Foi restaurado pelo Instituto de Papirologia da Universidade de Milão.

Quando o repertório caiu em desuso, os vastos espaços em branco remanescentes na “face A” teriam servido de suporte a esboços do que parecem ser modelos de gesso ou partes de estátuas.

Rebenta a polémica

Após a apresentação do papiro, o professor italiano Luciano Canfora, da Universidade de Bari, questionou esta explicação. Por um lado, Canfora salientou que havia discrepâncias de estilo entre os dois blocos de texto: uma prosa retórica e palavrosa no “Elogio da Geografia”, face a um estilo directo e sem adornos na “Descrição da Ibéria”. Acima de tudo, Canfora considerava existirem algumas anomalias no texto da coluna IV – que lhe tinham permitido relacioná-lo com Artemidoro. Canfora concluiu que o papiro era uma falsificação, feita por Constantino Simonidis, um famoso falsificador do século XIX posto em xeque pelas mais prestigiosas academias europeias durante várias décadas.

Estas afirmações deram origem a uma polémica acesa, tanto nos círculos académicos como na imprensa Canfora ganhou, sem sombra de dúvida, a guerra mediática, mas os vários indícios de autenticidade existentes no papiro levam a maioria dos estudiosos o considerarem-no genuíno. Por exemplo, o texto sobre a Península Ibérica contém um topónimo – uma cidade chamada Ipsa, no Algarve português – que não se conhecia no século XIX, mas cujos restos foram descobertos graças a algumas moedas provenientes de escavações realizadas em finais do século XX. Além disso, a forma como são expressas as unidades de milhar no papiro só em 1907 seria explicada e, no “Elogio da Geografia”, há um verbo que só foi incluído nos dicionários de grego na década de 1920.

papiro Artemidoro

O Papiro de Artemidoro contém a descrição mais antiga que se conhece da Península Ibérica: “Desde os montes Pirenéus até aos lugares em redor de Cádis e das regiões do interior, todo o país é conhecido pelos dois sinónimos de Ibéria e Hispânia. Foi dividido pelos romanos em duas províncias…”.

Por estas e outras razões, os peritos pensam que o papiro é autêntico. Não obstante, são pouquíssimos os que aceitam a ideia de um papiro com “três vidas” independentes. Em finais de 2009, Gianbattista d’Alessio, então investigador do King’s College de Londres, publicou um estudo assente na análise das marcas de tinta deixadas por cada um dos lados sobre o outro em algum momento em que o papiro, ainda inteiro, tivesse ficado exposto à humidade. O estudo concluiu que o papiro fora reconstruído de forma incorrecta, fazendo que o “Elogio da Geografia” fosse considerado uma espécie de preâmbulo, quando, na verdade, viria a seguir à “Descrição da Ibéria” e não antes. Por conseguinte, o texto perdia a sua coerência. Assim o papiro deixou de poder ser considerado o início do Livro II da Geografia de Artemidoro de Éfeso numa edição de luxo truncada.

O mistério continua

Se não se trata de uma edição reutilizada de Artemidoro, o que é então? A ciência exacta não sabe.

papiro Artemidoro

Mapa-múndi elaborado de acordo com a visão geográfica romana do século II.

Segundo a opinião mais generalizada, o papiro resulta da actividade de uma série de pessoas da mesma proveniência, que partilharam o mesmo papiro e usaram-no para escrever e desenhar numa ordem impossível de destrinçar.

Os pormenores do contexto no qual o papiro surgiu e a finalidade com que nele foram copiados os textos, mapas e figuras permanecem um mistério insondável, sendo um dos casos em aberto mais discutidos dos estudos da Antiguidade nas últimas décadas.