De tempos a tempos, com regularidade, um artigo, um romance, um filme ou uma série despertam grande alvoroço nas redes sociais ao falarem no “direito de pernada”, referindo-se aos homens que se aproveitavam da sua posição para obterem os favores sexuais das suas subordinadas. Para começar, os abusos desta classe têm sido uma constante da história, mas precisamos de questionar se esse “direito” terá realmente existido na Idade Média.

Conhecido em castelhano como derecho de pernada, em França como droit de cuissage ou também ius primae noctis, esse direito determinava que um senhor feudal pudesse desflorar uma recém-casada na sua noite de núpcias – a “primeira noite” – em virtude de uma lei ou costume que o permitia. Significava isto que o senhor não tinha necessidade de exercer força bruta sobre ela, e que a noiva, noivo, pais e familiares não opunham resistência ao exercício desse direito.

pernada

No seu Memorial de Diversas Hazañas, do século XV, Diego de Valera escreve sobre um arcebispo de Santiago de Compostela: “Estando uma noiva no leito para celebrar as núpcias com o marido, ele mandou tomá-la e teve-a consigo toda uma noite.” No entanto, segundo parece, terá sido uma acusação falsa inventada pelos inimigos do arcebispo.

Provas débeis

Existem, sem dúvida, numerosos exemplos de violência sexual perpetrados por senhores feudais ao longo da Idade Média. Porém, no que diz respeito à existência de um direito ou costume que consagrasse este abuso cometido sobre as súbditas de um senhor, na sua noite de núpcias, a evidência é muito mais incerta. Muitos documentos da época medieval evocados como alegadas provas do direito de pernada referem-se, na realidade, a coisas diferentes – como, por exemplo, os impostos pagos pelos camponeses aos seus senhores para se poderem casar.

Muitas das acusações que chegaram até aos dias de hoje são movidas pela vontade de desprestigiar os senhores feudais. É o caso da primeira referência que temos do direito de pernada na Idade Média, na Abadia de Mont Saint-Michel, no ano 1247. Trata-se de uma composição em verso que relata, em jeito de lamentação, a dura vida do camponês e as numerosas exigências senhoriais a que deve fazer frente. Uma delas era ser obrigado a pagar ao senhor para este o autorizar a casar as suas filhas. Caso contrário, as raparigas seriam violadas pelo senhor. Talvez pareça que estamos perante uma denúncia da barbárie e da tirania dos senhores feudais laicos, mas a verdade é que se trata de um poema satírico. Os seus autores, os monges da abadia, elaboraram-no como uma ferramenta política, com o objectivo de atrair às suas terras camponeses provenientes dos territórios de outros senhores feudais: diziam-lhes que eram mais justos e que, por tal, ser-lhes-ia mais proveitoso mudarem-se para os seus domínios.

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Na Enciclopédia, afirma-se que o direito de pernada “vigorou em França e na Escócia” durante muito tempo. Frontispício da Enciclopédia de Diderot. 1751. Biblioteca Municipal, Amiens.

Na Península Ibérica, as provas favoráveis à existência do direito de pernada também não são fiáveis. Há testemunhos mal interpretados, como duas leis incluídas em códigos legais do reinado de Afonso X, o Fuero Real e as Partidas. Na verdade, estas leis referem-se a situações diferentes: uma delas, por exemplo, determina a punição imposta a quem ofenda o noivo ou a noiva no dia do seu casamento, entendendo-se a ofensa verbal como um insulto.

A prova mais concreta da existência do direito de pernada na Espanha medieval encontra-se, aparentemente, na Sentencia arbitral de Guadalupe de 1486, por meio da qual os senhores feudais e os camponeses servos da Catalunha firmaram a paz após um longo conflito. Na Sentencia, lê-se que estavam abolidos os “maus usos” impostos pelos senhores aos seus vassalos camponeses, entre eles o que permitia ao senhor, “la primera noche quel pages prende mujer, dormir con ella”.

Pernada

Mozart contra o direito de pernada. A ópera de Mozart As Bodas de Fígaro, com libreto de Lorenzo da Ponte baseado na peça de teatro homónima de Beau- marchais, apresenta um nobre, o conde de Almaviva, que pretende seduzir a sua criada, Susana, mesmo antes de ela se casar. Fígaro, noivo de Susana, revolta-se contra aquilo que considera um abuso feudal. No primeiro acto, Susana conta a Fígaro que o conde lhe oferece um dote em troca dos seus favores:

Susana: Ele destina-o [o dote] para obter de mim certas meias horas... que o direito feudal...

Fígaro: Mas como? O conde não o tinha já abolido nos seus feudos?

Susana: Sim, mas agora está arrependido e parece que quer recuperá-lo comigo.

Na imagem Susana e Fígaro numa cena das Bodas de Fígaro de Mozart. Gravura de 1868.

Embora o sentido do texto pareça não deixar dúvidas, a realidade é mais complexa. Quando, anos antes, no Projecto de Concórdia de 1462, os servos pediram que este “mau uso” fosse abolido (“pretenen alguns senyors que, com lo pagès pren muller, lo señor ha a dormir a primeira nit ab ella”), os senhores feudais responderam que não sabiam de nenhum deles que exigisse tal serviço e que, a existir, concordavam com a sua eliminação. Poderá pensar-se que estes senhores eram cínicos e negavam práticas que conheciam perfeitamente. Não obstante, também poderá tratar-se de mais um exemplo de reivindicações camponesas contra direitos senhoriais que nunca tinham existido, como se sabe ter acontecido em França nessa mesma época.

Se este ius primae noctis tivesse existido, é estranho que na Coroa de Aragão, onde existem arquivos riquíssimos, não se tenham encontrado mais referências documentais a seu respeito. Apesar de tudo, alguns servos poderiam acreditar nesses boatos e temido que os senhores tentassem generalizar esse abuso.

Perante a ausência de provas documentais claras, podemos deduzir que o direito de pernada foi um mito, pelo menos como instituição ou prática social, embora seja inegável que teve existência fictícia na mente das pessoas da Idade Média, tal como os mitos urbanos do nosso tempo.

Mito duradouro

Pelo menos desde o século XIII que a história do direito de pernada circula pelo Ocidente europeu como arma política contra os senhores feudais. Nos séculos XVI e XVII, foi explorada pelos juristas com o objectivo de denegrir a imagem dos donos de domínios senhoriais, em benefício da Coroa. Por exemplo, o francês Fléchier ecoou as queixas dos camponeses da região de Auvergne em 1665 e, nas suas memórias, recolheu boatos sobre o droit de cuissage: “Há um direito que é muito comum em Auvergne, ao qual chamam o direito de núpcias [...]. Na sua origem, dava ao senhor o poder [...] de estar na cama com a esposa.” No entanto, não fornece qualquer prova a esse respeito. Na época do Iluminismo, no século XVIII, o direito de pernada converteu-se num lugar-comum da crítica ao feudalismo e à tirania. Por exemplo, a Enciclopedia de Diderot e D’Alembert consagra um artigo a “esse direito que os senhores se arrogaram antes e durante a época das cruzadas de se deitarem na primeira noite com as recém-casadas, suas súbditas plebeias [...]. No século passado, alguns fizeram os seus súbditos pagar-lhes pela renúncia a este estranho direito, que durante muito tempo vigorou em quase todas as províncias de França e da Escócia”.

Mont Saint-Michel

Abadia de Mont Saint-Michel. Um texto composto pelos monges denuncia, em estilo satírico, um alegado direito de pernada.

A discussão sobre a realidade desta prática prosseguiu no século XIX: os eruditos anticlericais procuravam documentos que confirmassem a sua existência, enquanto os que eram a favor do clero consideravam tratar-se de uma invenção. Não há dúvida de que o mito foi persistente e chegou aos dias de hoje, enquanto parte da construção ideológica de que a Idade Média foi impiedosa, obscura e abominável. No entanto, não o terá sido mais do que outras eras.