Duzentos anos depois do naufrágio, sabe-se mais sobre o primeiro navio português a naufragar na Austrália. Entre a poeira dos arquivos e os corais aguçados, emergiu a narrativa mais completa de um capitalista português.
Em 25 de Novembro de 1816, a galera Correio da Ásia embateu durante a noite numa barreira de recife, ao largo da costa noroeste da Austrália. Naufragou em poucas horas, deixando a bordo quase toda a sua carga, que incluía cerca de três toneladas de moedas de prata destinadas ao lucrativo comércio com a China. Iustração: Anyforms. Fontes: Alexandre Monteiro e Museu do Oeste da Austrália.
Se pudéssemos requisitar um satélite para nosso uso indiscreto em Março deste ano, tê-lo-íamos apontado para um local improvável – a extremidade noroeste da costa da Austrália, o ponto exacto onde o continente parece terminar, mas deixa ainda de fora um pequeno ferrão, como um insecto teimoso.
Apontando para essa costa inóspita, despida e crua nas imagens de satélite, teríamos acompanhado o movimento peculiar de pequenas formigas humanas, meros pontos na paisagem, em vaivém constante entre terra e mar, nesta região onde as ovelhas morrem de sede e a vegetação desponta em escassos tufos capazes de sugar de uma gota de água todo o sustento necessário.
Acompanhemos os membros desta equipa em mais uma saída de campo. Mantêm-se na zona de recife, a baixa profundidade, não se aventurando para lá da barreira coralífera, onde a plataforma continental desce abruptamente para a centena de metros de profundidade. Estas águas azuis--topázio, já classificadas pela UNESCO como Património Mundial, albergam uma biodiversidade incrível – tubarões-baleia, raias, tartarugas e cardumes inesgotáveis nadam aqui a salvo dos predadores, como num gigantesco aquário irreal. Nada disso porém distrai os homens e mulheres que o nosso satélite acompanha.
Mergulham numa das superfícies mais complexas do globo. O solo está juncado de coral, o que impede a locomoção a pé, apesar da baixa profundidade.
Mergulham numa das superfícies mais complexas do globo. O solo está juncado de coral, o que impede a locomoção a pé, apesar da baixa profundidade. Só no curto intervalo em que a maré sobe e a água do mar começa a penetrar no interior da lagoa, o esforço de mergulho é permitido. “Mas permite-o tal como a máquina de lavar permite à roupa ficar no seu interior”, brinca o arqueólogo Alexandre Monteiro, do Instituto de Arqueologia e Paleociências da Universidade Nova de Lisboa. “As ondas de dois a três metros rebentavam com frequência, sacudindo-nos. Seguíamos em apneia, com o GPS no interior de um saco preso nas costas e destinado a guardar potenciais achados. Vinha nova onda e segurávamo-nos às cabeças de coral que assomavam à superfície, outra vez chocalhados. Foram horas disto!”, conta, lembrando as barbatanas e fato de mergulho irremediavelmente rasgados.
Imagem de satélite da costa noroeste da Austrália onde o Correio da Ásia naufragou. Ainda hoje, o território é desértico. Fotografia Observatório da Terra, NASA.
Este foi o ano em que o projecto do Museu do Oeste da Austrália, liderado pelo arqueólogo Jeremy Green, contemplou nova escavação no local do naufrágio do Correio da Ásia e na qual participou o arqueólogo português. Desde 2004 que o local estava identificado, mas a pesquisa documental levantara novas dúvidas e justificara um avultado financiamento australiano para investigação.
Eis portanto oito arqueólogos, um fotógrafo e um conservador segurando-se desesperadamente ao coral de cada vez que as ondas e as correntes os puxam para o largo, com os sacos repletos, não de moedas ou de outras riquezas, mas de vidros partidos, à primeira vista semelhantes aos que encontraríamos em qualquer oceano poluído do planeta.
Na fotografia aérea da costa ocidental mostra as imensas barreiras de corais que dificultam a navegação. Fotografia Aldo Pavan/SIME.
25 de Novembro de 1816. O Correio da Ásia leva já mais de cem dias no mar desde que saiu de Lisboa. Cumpriu a rota com destino a Macau, mantendo--se a latitude de 40º S após vencer o cabo da Boa Esperança. Segue directamente na linha da Nova Holanda, um território com uma única colónia já instalada (Sydney), na costa oposta, a cerca de cinco mil quilómetros de distância. O Noroeste do país, inóspito, quente, quase desprovido de água potável, é território de aborígenes.
Os trabalhos arqueológicos no recife são dificultados pela expansão do coral, que disfarça os vestígios das muitas embarcações ali perdidas. Fotografia Patrick Baker.
A rota com destino à China prevê uma inflexão para norte após avistamento da costa, em direcção a um dos estreitos asiáticos que dá acesso ao mar da China Meridional. Point Cloates é a referência geográfica, mas, como refere Jeremy Green em depoimento por correio electrónico, “era um local muito perigoso para os navios. É difícil de ver porque não tem elevações e facilmente se perde. Não é por acaso que a área tem pelo menos quatro destroços destes navios que tentavam poupar tempo na rota para a China”.
Zona ainda mal cartografada nas cartas internacionais, sofre também indirectamente de uma controvérsia entre ingleses e franceses sobre onde deve ser estabelecido o meridiano de longitude 0 – em Paris ou em Londres. Algumas cartas reflectem as medições francesas, outras não.
Cai a noite. Os quilómetros infinitos de dunas vão-se escondendo na penumbra. Para piorar o cenário, a bitácula da bússola arde durante 15 minutos, privando a tripulação de um instrumento precioso.
Cai a noite. Os quilómetros infinitos de dunas vão-se escondendo na penumbra. Para piorar o cenário, a bitácula da bússola arde durante 15 minutos, privando a tripulação de um instrumento precioso. Sem o saber, o comandante João Joaquim de Freitas caminha na direcção de uma armadilha fatal: à sua frente, invisível, está uma barreira de coral compacta e quebrada apenas em três escassos sectores, que dão acesso às lagoas de baixa profundidade. Foi por uma destas milagrosas aberturas que, cinco anos antes, o Rapid americano conseguiu penetrar, naufragando depois nos baixios.
O único indício da catástrofe que se avizinha é o avistamento da rebentação das ondas por parte de dois membros da tripulação. É dado o alerta a bordo. De súbito, duas pancadas secas atingem o casco da embarcação, como socos de um pugilista. O comandante tenta virar de bordo. Seguem-se alguns minutos de suspense até duas novas pancadas fazarem saltar o leme. A galera adorna para bombordo, levando o mar a irromper pelo casco adentro.
CAPITALISTA AÇOREANO - Nascido em Madalena do Pico (Açores), José Nunes da Silveira (1754-1833) foi um protótipo do self made man. Segundo Alexandre Monteiro, saiu novo das ilhas e partiu para Macau. Foi marinheiro, contramestre, piloto, capitão e, mais tarde, co-proprietário do navio Santa Cruz. Regressa a Lisboa em 1786 e monta uma engenhosa operação mercante e global: comprava navios na América ou em segunda mão no porto de Lisboa, transportava sedas e porcelana da China para o Brasil, produtos brasileiros para Lisboa, escravos africanos para o Brasil, algum ópio de Macau para Lisboa. “A investigação já encontrou ligações deste capitalista a 20 navios, 13 dos quais afectos a viagens ao Oriente”, diz o investigador. Fotografia Alexandre Monteiro.
A evacuação é rápida e, em breve, os 32 tripulantes entram na lancha de serviço, atónitos e certamente aterrados na escuridão. Permanecem atracados aos mastros do navio até à alvorada. Conseguem recuperar apenas três barris de bolacha, uma pequena quantidade de água e cerca de cinco mil das 106.500 moedas de prata que transportavam a bordo para o comércio com o Oriente.
“No dia seguinte, fizeram uma rápida estimativa do problema que tinham em mãos”, conta Alexandre Monteiro, envolvido neste projecto desde 2004. “Tinham naufragado a sete ou oito milhas da costa e, à sua volta, estavam rodeados de cabeças de coral. Aquele sector da Nova Holanda era totalmente desconhecido. Naufragar ali em 1816 era como naufragar na Lua – não havia qualquer precedente.” A tripulação abandonou o navio, não se lembrando de o queimar como sucedera com o Rapid em 1811, o que teria dificultado o seu avistamento por outros navios na zona.
Encontraram por fim uma enseada onde decidiram fazer aguada, desmantelando o segundo bote para levantar as amuras da lancha, de forma a permitir uma eventual travessia oceânica.
Encontraram por fim uma enseada onde decidiram fazer aguada, desmantelando o segundo bote para levantar as amuras da lancha, de forma a permitir uma eventual travessia oceânica. Enquanto isso, foi mandada uma expedição a terra, que não encontrou vestígios de qualquer povoamento e, pior, deixou para trás dois homens separados do grupo que não voltaram a dar sinal de vida. A sequência de azares viria a terminar: meia hora depois de retomarem a travessia. “Por milagre de Deus e de Nossa Senhora”, foram avistados pelo Caledonia, um navio americano que os recolheu e os levaria a Macau.
A saga ainda não terminara. Nesta colónia portuguesa do continente chinês, seguiu-se o protesto de naufrágio, um trâmite essencial para apuramento das circunstâncias e responsabilidades, assinado pelo capitão João Joaquim de Freitas. “Naturalmente, Freitas atirou as culpas para a circunstância de a costa ser mal cartografada e perigosa”, diz Alexandre Monteiro.
Documentos posteriores de especialistas da Marinha lembrariam que já existiam cartas rigorosas e que o comandante do Correio da Ásia fora imprudente nas manobras.
Documentos posteriores de especialistas da Marinha lembrariam que já existiam cartas rigorosas e que o comandante do Correio da Ásia fora imprudente nas manobras.
Com uma quantidade importante de prata a bordo (correspondente a três toneladas de metal precioso), discutiu-se em Macau a oportunidade de uma missão de salvados. Arriscada e sem lucro garantido, foi mesmo assim concretizada em Março, com a partida do brigue Emília, financiado com as cinco mil moedas recuperadas pelos náufragos.
O Emília, porém, nada encontrou na zona do recife de Ningaloo. “Terá sido destruído por uma tempestade primaveril? Ou simplesmente saqueado por um navio que, passando nas proximidades, viu a presa à mercê? Ainda não sabemos”, diz Monteiro.
Jeremy Green acredita que o mais provável terá sido um “saque contemporâneo. A localização genérica do destroço tornou-se conhecida e é pouco provável que ninguém tenha tentado capturar um prémio de algumas toneladas de prata!”
Pataca era o nome dado às moedas espanholas de 8 reales, única tipologia encontrada no local. Cunhadas em Madrid, algumas datam do próprio ano do naufrágio. Fotografia Patrick Baker.
Esta é a história que, desde 2004, tem sido contada em inúmeros artigos jornalísticos. O museu australiano tem liderado os esforços documentais desde que o relato detalhado do piloto Luís Beltrão foi comprado num leilão na Índia, em 1987.
A narrativa alimentou um novo impulso de investigação, complementado em 2003 pela importante ajuda fornecida por um avião da empresa Fugro Aerial Survey (“pro bono”, diz Jeremy Green) que detectou quatro assinaturas magnéticas nas águas do recife. No ano seguinte, a escavação comprovou a posição do navio e identificou parte importante do lastro de ferro, bem como algumas centenas de moedas de prata. O mistério com quase dois séculos parecia encerrado.
A DESCOBERTA DE UM DESTROÇO - Este mosaico reunindo várias dezenas de fotografias do fundo marinho é um bom testemunho da dificuldade extrema deste sítio arqueológico, já que o coral cresceu sobre o fundo, revestindo-o quase por completo.A composição apresenta os vários sectores em que foi encontrado o lastro de ferro do navio (a azul-claro na imagem). A âncora, largada logo após a colisão, foi encontrada bastante afastada do restante acervo. Ao longo da superfície, emergiram também alguns (mas não todos) canhões, instrumentos de navegação e outros fragmentos metálicos provenientes do Correio da Ásia. Fotomosaico do local do destroço: Patrick Baker, Departamento de Arqueologia Marítima, Museu do Oeste da Austrália.
No entanto, uma das tarefas documentais de Alexandre Monteiro num projecto desta natureza é o mapeamento de toda a informação relativa ao navio, a sua actividade, os membros da tripulação, o tipo de carga que transportava. “Encontrei um vazio significativo quando quis saber mais sobre o comércio português com a China no início do século XIX. Queria saber o que se transportava, quem lidava com este negócio, que receitas gerava e que peso tinha na balança comercial portuguesa ao lado do mais significativo comércio com o Brasil. Não havia nada”, diz.
Nos arquivos da Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL), jazia uma importante e inexplorada fonte documental – cerca de vinte mil documentos com os livros de carga, os livros de bordo, livros de reparação e livros de deve e haver de um capitalista português proprietário de uma frota que negociava com a China – José Nunes da Silveira. “Sabe-se que a documentação foi entregue pelo Banco de Portugal à SGL em 1977, mas ninguém sabe como foi originalmente parar ao acervo do banco.”
“Tornou-se óbvio que, apesar de significar apenas cerca de 4% das viagens oceânicas da frota, o comércio com a China gerava fortunas".
A documentação tornou-se a obsessão do investigador durante quatro anos. Ali, à sua mercê, estava um retrato completo de trinta anos de comércio naval português com o Extremo Oriente. “Tornou-se óbvio que, apesar de significar apenas cerca de 4% das viagens oceânicas da frota, o comércio com a China gerava fortunas. É provável que os conflitos anglo-franceses abrissem uma janela de oportunidade comercial para as outras frotas. Em 1816, por exemplo, Silveira enviou cinco galeras à China, arrecadando lucros colossais.”
Os mais pequenos pormenores são contratualizados no negócio da frota do Oriente – as obrigações do piloto, o preço dos fretes, os contactos privilegiados nos mercados onde se trocam mercadorias. Silveira coloca sempre a bordo um sobrecarga, um representante que zela pelos seus interesses e com autoridade equivalente à do comandante. “É uma máquina comercial oleada”, diz Monteiro. “A tal ponto que, tendo escritório na Rua Direita de Lisboa, este capitalista dispunha de um telégrafo tubular na Parede que, avistando os navios de regresso, fazia sinais para Belém e daí partia um mensageiro a cavalo para dar conhecimento ao proprietário.”
A figura deste açoriano, nascido em Madalena do Pico sem fortuna, é agora a linha de investigação que Alexandre Monteiro explora. “Traduz um novo paradigma da sociedade do século XIX: é um homem que construiu a sua própria fortuna, emigrou, fez contactos privilegiados em todos os portos. Quando montou a sua operação comercial, explorou esses contactos. É o tipo de homem com quem os aristocratas arruinados do século XIX tentarão casar as suas filhas”, diz.
na campanha de 2016, a questão do paradeiro das moedas de prata manteve saliência, até porque algumas descobertas fortuitas alimentaram a hipótese de o espólio ter ficado escondido por baixo do próprio coral. “O coral é como uma couve-flor, escondendo o fundo. Em 200 anos, pode perfeitamente ter tapado o que haveria para descobrir”, diz Alexandre Monteiro. No entanto, os trabalhos deste ano não trouxeram novidades nesse campo.
Fragmentos de vidro das garrafas de vinho que eram transportadas no porão do navio. Fotografia Alexandre Monteiro.
Há entretanto outro dado relevante relacionado com o conhecimento agora adquirido sobre as rotas comerciais com a China. A análise estatística dos livros de carga e das relações de frete desta frota torna claro aquilo a que Monteiro designa humoristicamente como o comércio da saudade: “Não temos na altura produtos que interessem aos chineses – só a prata. As garrafas de vinho, principal produto de troca, destinam-se aos portugueses de Macau ou aos espanhóis das Filipinas, tal como os enchidos, as azeitonas, o bacalhau ou os livros. Em alternativa, no regresso, parece só haver espaço a bordo para o chá, as gangas (tecidos) e, nos espaços livres, alguma canela, ópio e porcelana.”
O Correio da Ásia perdeu-se no dia fatídico de Novembro de 1816, com destino a Macau, carregado com este tipo de espólio. Nas águas que lhe servem de sepultura, os arqueólogos têm vindo a encontrar um volume quase inesgotável de fragmentos de vidro, provenientes dessas garrafas. É de certa forma um vestígio cultural de um período significativo do comércio global, durante o qual as trocas intensificaram-se, alimentando fortunas e desventuras. É um pouco desse comércio da saudade que jaz a baixa profundidade no recife de Ningaloo.
22 Julho, 1816
Parte de Lisboa com destino a Macau a galera mercante Correio da Ásia.
25 Novembro 1816
A galera naufraga no recife de Ningaloo, na costa da Nova Holanda (Austrália).
26 Novembro 1816
A bordo de uma lancha, os sobreviventes são recolhidos pela galera norte-americana Caledonia.
25 Janeiro 1817
Protesto de naufrágio do comandante concluído em Macau.
Março 1817
O brigue Emília parte para a Austrália em missão para recuperar salvados. Nada encontra.
1987
Graeme Henderson, investigador do Museu do Oeste da Austrália, adquire em leilão o diário do Emília.
2003
Com um magnetómetro a bordo, um avião do Museu detecta quatro anomalias magnéticas.
29 Abril 2004
Uma equipa dirigida pelo arqueólogo Jeremy Green localiza os destroços do Correio da Ásia.
Março 2016
Uma nova campanha arqueológica completa a recolha já iniciada na primeira década do século.
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