Em 1502, um cartógrafo português elaborou um inovador planisfério no qual representou os descobrimentos de marinheiros portugueses e espanhóis na América, África e Ásia. O mapa foi comprado clandestinamente por um enviado do duque de Ferrara.
Nas primeiras décadas do século XVI, a cartografia náutica conheceu uma grande transformação. Os mapas, nos quais figuravam as primeiras representações do Novo Mundo, transmitiam uma enorme riqueza visual fruto do contraste entre a experiência directa dos primeiros exploradores, a sobrevivência de imagens de tradição medieval e um enciclopédico trabalho de recompilação de fontes orais e escritas. Um bom exemplo disso é o atlas de Cantino, terminado em 1502, no qual o desenhador mostrou a informação obtida pelas novas rotas portuguesas para a Índia e para a costa brasileira. Não só deixou uma marca gráfica de um vasto conjunto de referências políticas e económicas, mas também inaugurou uma nova época nas cartas de navegação.
O planisfério, preservado no Museu Esteense de Modena, é constituído por seis peças de pergaminho, montadas sobre um tecido de 220 por 105 centímetros. Desconhece-se o autor, mas é atribuído a um cartógrafo português e esteve exposto na Sala das Cartas na Casa da Guiné e da Mina, em Lisboa. Mais tarde uma cópia fidedigna foi adquirida clandestinamente por Alberto Cantino, um agente infiltrado do duque de Ferrara em Lisboa. Cantino chegou a entregar o mapa a Hércules I de Este, no fim de 1502, em troca de doze ducados de ouro.
Num período no qual o conhecimento de novos territórios proporcionava clara superioridade estratégica e comercial, as imagens que certificavam a existência dessas terras eram guardadas como segredos de Estado. Não é de estranhar por isso a cobiça do nobre italiano pelo mapa. Em 1592, o mapa foi levado para Modena, por ordem do papa Clemente VIII, e ali permaneceu até meados do século XIX. Em 1873, depois de se perder o seu rasto na sequência de um saque, Giuseppe Boni, na altura director do Museu Esteense, encontrou-o casualmente em Modena, pendurado na parede de um talho.
O planisfério reúne, pela primeira vez, notícias das viagens de Vasco da Gama na busca por uma rota marítima para a Índia (1497-1499) e de Pedro Álvares Cabral na descoberta da costa brasileira (1500-1501).
Vasco da Gama, miniatura do Livro de Lisuarte de Abreu. 1524. Biblioteca Pierpont Morgan, Nova Iorque.
Os dados extraídos das últimas viagens de Colombo estão presentes na zona das Índias Ocidentais e no litoral da actual Venezuela, e especulou-se até com a possível representação da península da Florida, oficialmente descoberta onze anos mais tarde por Ponce de León. Na costa atlântica de África, desde o cabo de Santa Maria até ao da Boa Esperança, detectam-se os padrões erguidos pelos exploradores Diogo Cão e Bartolomeu Dias durante a primeira circum-navegação do continente. Sobre eles destacam-se as ilustrações de indígenas em frente do castelo de São Jorge da Mina, fundado em 1488 por Dom João II, ou o perfil da Serra Leoa, representada como um animal que emerge das montanhas e que segura uma bandeira portuguesa. A costa do Brasil, desenhada sobre um fragmento de pergaminho sobreposto, contém representações de papagaios sobre o fundo de vegetação luxuriante. Depois do mapa de Juan de la Cosa (1500), estas são as primeiras cenas desenhadas da costa americana. A representação das terras americanas constituía um grande objectivo para um cartógrafo: nem os esquemas práticos dos portulanos medievais centrados no Mediterrâneo, nem o legado científico de Ptolemeu permitiam obter um modelo no qual localizar a posição do Novo Mundo.
Linha de demarcação
A estrutura das cartas náuticas ou portulanos sofreu algumas alterações durante o século XV. Eram constituídas por um conjunto de rosas-dos-ventos das quais partiam linhas rectas que formavam um traçado de rumos. Esta informação era útil para a navegação de cabotagem até ao fim da Idade Média: a bússola permitia seguir esses rumos, tendo sempre como referência visual a linha da costa. Era a chamada navegação de “rumo e estima”. Mas este tipo de dados era inútil quando se perdia de vista a costa, tal como acontecia na navegação atlântica.
Aparentemente, o mapa de Cantino manteve o sistema de rumos, mas foi o primeiro a incorporar as linhas do equador, os trópicos e o círculo polar árctico. Isso marcou o início da localização baseada no cálculo da latitude (a distância em relação ao equador), que se determinava através da observação da variação da altura do Sol e das estrelas. O mapa testemunhou a transição entre a navegação da bússola medieval e a navegação moderna ou astronómica.
Do portulano da Idade Média ao mapa-múndi moderno
Ao estilo das cartas náuticas ou portulanos, o planisfério de Cantino incorpora um traçado de rosas-dos-ventos: círculos com 32 pontas que definem os rumos da navegação. No mapa, existem 32 pequenas rosas dispostas em intervalos regulares em duas circunferências que se tocam so- bre uma grande rosa central. Igualmen- te, podem ser observados seis troncos de léguas, uma escala gráfica para calcular as distâncias. O planisfério com- bina este sistema de rumos náuticos com a indicação das linhas do equador, dos trópicos de Câncer e Capricórnio e do círculo polar ártico, referências para a navegação moderna baseada na ob- servação astronómica, essencial para o cálculo de latitudes. Aparece também o meridiano que, segundo o Tratado de Tordesilhas, separava as zonas de domínio português e castelhano.
No Atlas de Cantino, sobre estas linhas, assinalam-se duas circunferências formadas por rosas-dos-ventos. Os topos marcam alguns dos locais geográficos sob domínio português e castelhano.
1. Brasil. Descoberto por Pedro Álvares Cabral em 1500. No mapa, mostra-se um pormenor com papagaios e selva tropical.
2. Linha divisória “Este é o marco [limite] entre Portugal e Castela”, diz o texto que acompanhava a fronteira estabelecida em 1494.
3. Ilhas do Caribe. As “ilhas Antilhas do Rei de Castela” são mostradas com pormenor. Sobre La Hispaniola (Santo Domingo), há uma bandeira castelhana.
4. África. Aqui pode-se observar o símbolo da Serra Leoa e o castelo de São Jorge da Mina, a grande base comercial portuguesa em África.
5. Montes da Lua. Estes montes míticos localizavam-se sob a linha do equador. À esquerda, vêem-se dois padrões, monólitos rematados por uma cruz.
6. Golfo Pérsico. Representa-se de forma muito esquemática, como uma espécie de grande lago com forma rectangular.
Além disso, é importante porque nele aparece pela primeira vez uma linha que separou a orbe em duas regiões: a que estava atribuída aos portugueses e a atribuída aos castelhanos pelo Tratado de Tordesilhas, assinado por Dom João II e pelos Reis Católicos. Esta linha foi fixada a 370 léguas a oeste de Cabo Verde, mas as limitações científicas da época davam azo a imprecisões e deslocamentos para a ajustar à posição acordada. Assim surgiu uma cartografia de carácter diplomático, que aproveitava o vazio científico para manipular os dados e certificar a situação de um território concreto nos domínios de um império ou de outro.
Todos estes factores transformam o atlas de Cantino num marco da cartografia: além de ser uma síntese do saber geográfico e náutico da época, é também um magnífico exemplo da busca de modelos gráficos capazes de reflectirem a profunda transformação da percepção do mundo.