O restauro da icónica catedral de Paris honrará as suas raízes medievais e o arquitecto, outrora vilificado, que salvou a igreja no século XIX.

O incêndio de 1831 poupou a Catedral de Notre-Dame propriamente dita. Os revoltosos treparam telhado acima e derrubaram uma cruz de ferro gigante.

Partiram vitrais, deram machadadas numa estátua de Jesus, partiram outra da Virgem Maria. No entanto, o seu verdadeiro alvo era o arcebispo de Paris, que não se encontrava no local – por isso, saquearam o seu palácio, a sul da igreja, virado para o rio Sena. Depois pegaram-lhe fogo. O palácio já não existe. Uma grua de construção com 75 metros de altura ocupa agora o seu lugar.

Existe um desenho do sucedido nessa noite, 14 de Fevereiro de 1831, visto a partir de Quai de Montebello, do outro lado do Sena. Foi rabiscado por Eugène-Emmanuel Viollet-le-Duc, o homem que, 13 anos mais tarde, empreenderia o restauro da catedral, durante 20 anos. Viollet-le-Duc tinha apenas 17 anos quando testemunhou o ataque da multidão. No seu rápido esboço a lápis, figuras esquemáticas agitadas encheram o palácio, arremessando móveis e outras peças valiosas das janelas para o rio. Atrás de tudo isto, encontra-se Notre-Dame, na altura com seis séculos de idade.

Em 1980, igualmente com 17 anos, Philippe Villeneuve viu uma exposição sobre Viollet-le-Duc no Grand Palais. Ele sabia que queria ser arquitecto, mas não sabia que poderia especializar-se em edifícios históricos. Hoje é um dos 35 “arquitectos principais de monumentos históricos” de França, uma profissão cujo representante mais famoso é Viollet-le-Duc. Villeneuve dirige os trabalhos de restauro de Notre-Dame desde 2013 e, com enorme urgência, desde a Primavera de 2019, depois de um incêndio consumir o topo da catedral. O edifício encontra-se, finalmente, estável. A reconstrução está prestes a começar. De mais do que uma forma, Villeneuve atribui a sua missão actual, a luta da sua vida profissional, ao seu engenhoso predecessor, Viollet-le-Duc.

“Ele inventou o restauro de monumentos históricos”, disse Villeneuve. “Isso não acontecia antes. No passado, as pessoas reparavam-nos segundo o estilo da sua época.” Ou não os reparavam e demoliam-nos.

Na França do século XIX, o governo criou pela primeira vez instituições para lidarem com questões que nos afectam a todos: Que parte do passado vale a pena preservar e transmitir para a posteridade? Que dever temos face às criações dos nossos antepassados, que força e estabilidade retiramos da sua presença – e quando, pelo contrário, se tornam um fardo que nos impede de nos projectarmos e de criarmos um mundo nosso?

As questões são enfrentadas por cada um de nós no microcosmo da nossa vida. Cada um de nós tem um service des monuments historiques na cabeça, que se esforça por decidir o que conservar e o que deitar fora, quais as mudanças a que devemos resistir e quais devemos acolher. E, com frequência, não temos consciência da nossa posição relativamente às decisões de conservação tomadas pelos governos nem da maneira como os edifícios antigos nos afectam. Até estes se encontrarem ameaçados.

No seu tempo, Notre-Dame foi revolucionária, tendo sido construída a partir de finais do século XII e ao longo de todo o século XIII, à medida que França se tornava uma nação e Paris, a sua capital, a maior cidade da Europa. Notre-Dame foi a primeira grande obra-prima de uma nova arquitectura francesa, na qual os arcos ogivais e os arcobotantes viabilizaram a existência de paredes altas e finas e, nos vãos, as janelas enormes permitiram que a luz inundasse o interior. Italianos invejosos chamaram-lhe “gótico”, nome com o qual queriam dizer “bárbaro”, mas o estilo francês conquistou a Europa. Perante tamanha luz vinda do alto, os crentes sentiam a presença de Deus.

Paris

Em busca de pedra e madeira. A Île de la Cité era um centro importante da vida urbana quando a construção de Notre-Dame começou, no século XII. Nessa altura, a pedra provinha de pedreiras actualmente localizadas sob a Paris contemporânea. Para esta renovação, calcário com uma composição geológica semelhante está a ser extraído em Oise e Aisne, enquanto árvores centenárias estão a ser cortadas na floresta de Bercé e noutros locais de França.

No início do século XIX, porém, Notre-Dame enfrentou problemas. Décadas de ataques e negligência, iniciadas ainda antes da Revolução de 1789, tinham-na deixado perigosamente delapidada. Victor Hugo sentiu-se tão revoltado que escreveu um romance inspirado na catedral, inserindo uma polémica sobre abuso da história numa narrativa a propósito de um padre reprimido, um sineiro corcunda e a rapariga que ambos desejavam. “Notre-Dame de Paris” foi publicado em 1831, no mês a seguir ao episódio da destruição do palácio do arcebispo. Por toda a França, igrejas antigas confiscadas durante a revolução estavam a ser pilhadas. Hugo ajudou a iniciar um movimento que dizia “Basta”. Viollet-le-Duc sentiu-se arrebatado por ele.

O arquitecto salvou Notre-Dame. Reconstruiu arcobotantes e vitrais, substituiu estátuas demolidas por revolucionários e acrescentou outras: os adorados grotescos da catedral são seus. Depois de construir um novo pináculo de madeira, 15 metros mais alto do que o original medieval, colocou enormes estátuas de cobre dos Doze Apóstolos sobre os degraus que se erguem a partir da base. Onze olhavam em frente, observando a cidade. A 12.ª estátua era de São Tomé, o apóstolo que duvidou. Viollet-le-Duc deu o seu próprio rosto a Tomé e pô-lo a olhar para o pináculo, a sua obra-prima: ele próprio, um ateu, salvara a rainha das catedrais francesas.

Aquela igreja, local de culto há mais de 800 anos, está a ser de novo salva meio século depois de o catolicismo praticante em França ter entrado em colapso, ao mesmo tempo que o número de turistas crescia explosivamente. No gabinete de Villeneuve, atrás da catedral, no segundo andar de uma pilha de contentores modulares, a sua secretária está virada para uma impressão do desenho de Viollet-le-Duc da fachada oriental de Notre-Dame, datado de 1843. Um pingo de chumbo congelado do telhado, derretido pelo incêndio de 2019, está inserido num canto da moldura. Desde a noite do incêndio que Villeneuve tenciona reconstruir a igreja exactamente como Viollet-le-Duc a deixou, incluindo o telhado de chumbo e a “floresta” de carvalho maciço que o sustentava.

“Estamos a restaurar o restaurador”, disse.

Um pouco antes das 19 horas da noite de 15 de Abril de 2019, enquanto Villeneuve saía a correr de casa para apanhar o último comboio de alta velocidade para Paris, eu estava num táxi a atravessar o Sena. O trânsito arrastava-se. A minha mulher olhou pela janela. “Notre-Dame está a arder?”, perguntou. A mancha cor de laranja cintilante no telhado não fazia sentido. Tenho a certeza de que vão já apagá-lo, murmurei. Instantes mais tarde, vimos as chamas subirem pelo pináculo e engolirem-no.

Notre-Dame

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Em França, todos se lembram de onde estavam quando Notre-Dame ardeu – neste aspecto, embora ninguém tenha morrido, é como o 11 de Setembro. O fotógrafo reformado Bernard Hermann encontrava-se nas suas águas-furtadas da Place du Petit Pont, com vista para a catedral. Um livro seu, intitulado “Paris, km 00”, sobre mapas franceses, no qual as distâncias são medidas a partir de um marco zero situado em frente de Notre-Dame, é constituído por fotografias que tirou das suas janelas. “Para mim, o drama de Notre-Dame foi como o fim do mundo”, disse. “Senti-me atordoado. Corri as cortinas.”

Jean-Michel Leniaud, historiador de arquitectura, encontrava-se numa recepção no Palácio de Versalhes. Correu de volta a Paris e assistiu ao drama. “As pessoas choravam. As pessoas rezavam. As pessoas ajoelhavam-se nas ruas”, disse.

Dez quilómetros a oeste, Faycal Aït Saïd, o operador da grua que actualmente paira sobre a catedral ferida, estava a terminar o seu turno numa grua ainda mais alta, na construção de uma nova torre de escritórios. Sozinho no céu, a 130 metros de altura, viu a pluma gigante de fumo surgir no horizonte, começando a dirigir-se para oeste.

Quando Marie-Hélène Didier, conservadora do Ministério da Cultura, chegou ao local onde se encontravam os bombeiros, um dos artefactos mais preciosos já fora depositado no átrio. “Parecia uma enorme feira da ladra”, disse. Mais tarde, na mesma noite, acompanhou alguns tesouros até um cofre no edifício do Hôtel de Ville, a bordo de uma carrinha da autarquia. A túnica de linho de São Luís, o rei do século XIII, seguia ao colo de Didier. Sentado junto dela, o seu chefe segurava a coroa de espinhos.

O presidente Emmanuel Macron encontrava-se no Palácio do Eliseu, onde acabara de gravar um discurso à nação para ser transmitido pela televisão nessa noite, em resposta ao movimento de protesto contra o seu governo. Cancelou o discurso e correu para a catedral. Notre-Dame é “a nossa história, a nossa literatura, a nossa imaginação… o epicentro da nossa vida”, disse, falando para as câmaras. “Esta catedral, vamos reconstruí-la, todos juntos.”

Dorothée Chaoui-Derieux, uma conservadora que supervisiona escavações arqueológicas em Paris, leu as notícias no Twitter enquanto fazia o jantar para os três filhos. Apercebeu-se de que nunca os levara a Notre-Dame. Não lhe ocorreu que passaria quase todos os dias dos próximos dois anos na catedral vazia, a examinar escombros e que a Notre-Dame se transformaria num sítio arqueológico.

Enquanto a igreja ainda ardia, as televisões transmitiam opiniões de comentadores. “Fiquei em frente da televisão, embora viva em Paris e devesse ter ido até lá ver”, disse Philippe Gourmain, especialista em silvicultura. Com fúria crescente, ouviu analistas dizer que a armação do sótão de Notre-Dame nunca seria  reconstruída  – que França não tinha carvalhos suficientes, nem savoir faire. Gourmain gere florestas em todo o país. Às 23 horas, estava ao telefone com um amigo do Gabinete Nacional das Florestas, a elaborar um plano para recolher a madeira necessária através de doações.

Por volta dessa altura, Villeneuve chegou ao adro da catedral, a praça que fica mesmo em frente. Ia no comboio e sem ligação à Internet quando o pináculo de Viollet-le-Duc se desmoronou. No dia seguinte, subindo à torre norte para inspeccionar os danos, avistou o galo de cobre que se encontrava empoleirado no topo do pináculo. Voando em liberdade, aterrara num telhado lateral. Uma fotografia publicada no “Le Parisien” mostrava o arquitecto sorrindo, segurando a ave amolgada junto ao peito. “Quando cheguei ao adro, senti-me morto. Agora estou em coma”, disse-me. “Ao reconstruir a catedral, estou a reconstruir-me a mim próprio. Vou sentir-me melhor quando acabar.” Em Setembro, com a reconstrução prestes a começar, Villeneuve tinha um desenho do pináculo tatuado no antebraço esquerdo, desde o cotovelo até ao pulso.

No Verão de 1998, um historiador da arte da Universidade de Columbia chamado Stephen Murray conduziu-me ao sótão de Notre-Dame. Era escuro, mesmo num dia cheio de luz. Enquanto caminhávamos entre a treliça de vigas de carvalho toscamente talhadas, os topos curvos das altíssimas abóbadas de calcário da igreja estendiam-se como dorsos de elefantes sob os nossos pés. Havia pó acumulado nas reentrâncias. Lá em baixo, dentro da igreja, nunca imaginaria este mundo de bastidores – o mundo dos construtores das catedrais. No cruzeiro, onde o transepto se cruza com a nave, olhei para cima e vi o intrincado esqueleto de madeira do pináculo.

No Verão passado, voltei a encontrar-me no mesmo local. Desta vez, porém, estava num andaime, olhando para baixo, para o buraco feito pelo pináculo quando se despenhou, caindo através das abóbadas de pedra. Perfurou um segundo buraco na nave e um terceiro abriu-se na extremidade norte do transepto. À medida que o fogo devastava a floresta, treliças triangulares de carvalho, com cerca de dez metros de altura, foram caindo como dominós pelas abóbadas e choveram detritos nos buracos. No cruzeiro, madeira carbonizada e pedra formaram uma pilha com mais de um metro de altura sobre o chão da catedral.

Poucos dias depois do incêndio, enquanto Macron prometia que Notre-Dame reabriria a tempo dos Jogos Olímpicos de Verão de Paris, em 2024, Chaoui-Derieux e os seus colegas decidiram que os escombros não poderiam ser simplesmente deitados fora. Era material de um legado cultural legalmente protegido que teria de ser examinado por profissionais. Em breve, dezenas acorreram à igreja. O Laboratório de Investigação de Monumentos Históricos enviara todos os seus 34 funcionários para o local, disse-me o director adjunto Thierry Zimmer. Uma vez que as abóbadas danificadas ainda corriam risco de desabamento, os cientistas usaram veículos controlados à distância para recolher os escombros. Usando respiradores para não inalar a poeira de chumbo, examinaram o material numa nave lateral, separando tudo o que pudesse fornecer informações que contribuíssem para a reconstrução ou que tivesse interesse histórico. Os anéis de crescimento dos pedaços de madeira maiores, por exemplo, forneciam pistas sobre a sequência pormenorizada da construção da igreja.

“Tudo aquilo em que nunca pegáramos antes”, disse Zimmer. “Agora, infelizmente, estava nas nossas mãos.” Um pequeno aspecto positivo do sucedido será o aumento do conhecimento sobre a catedral e o período em que foi construída.

Os escombros demoraram dois anos a ser examinados e transportados para um armazém junto do Aeroporto Charles de Gaulle. O material ocupa cerca de 2.500 metros quadrados, em prateleiras com seis metros de altura. Os pedaços de madeira demasiado pequenos para estudo, os pedaços minúsculos de pedra, a poeira e as cinzas – até isso foi guardado, por enquanto, em centenas de sacos de armazenamento. Foi um trabalho extenuante, disse Chaoui-Derieux. Foi uma “aventura humana” que ela espera não voltar a repetir.

Enquanto o solo de Notre-Dame era limpo, as paredes e as abóbadas tiveram de ser fixadas para não abaterem. Um estudo de engenharia descobrira que, sem o telhado de chumbo e as madeiras a exercerem peso sobre elas, as paredes eram assustadoramente vulneráveis: uma mera rajada de 90km/h poderia derrubá-las. A partir de 2019 e até ao Verão de 2021, carpinteiros reforçaram arcobotantes e algumas abóbadas, inserindo braçadeiras de madeira feitas por medida, pesando toneladas, sob cada uma. Entretanto, técnicos de cordas desmantelavam um tubo de aço de cada vez, o antigo andaime – Villeneuve estava prestes a renovar o pináculo quando o incêndio aconteceu. Ameaçava cair e danificar ainda mais a igreja.

A COVID encerrou o local durante dois meses na Primavera de 2020. A omnipresente poeira de chumbo já provocara o seu encerramento durante seis semanas em 2019, altura em que inspectores das condições de trabalho decidiram que as precauções de segurança iniciais eram inadequadas. Desde então, a fila de chuveiros no contentor que funciona como balneário dividiu o local em áreas sujas e limpas. Os trabalhadores atravessaram a fronteira todos os dias, despindo-se e vestindo roupa de protecção para irem trabalhar e depois fazendo o oposto – tomando duche e lavando o cabelo – sempre que saem, nem que seja apenas para almoçar. Os visitantes seguem o mesmo procedimento. É-lhes fornecida roupa interior e macacões descartáveis.

Até Emmanuel Macron se submeteu ao protocolo. Soube-o de fonte segura, contado pelo general que o presidente mandou chamar da reforma no dia a seguir ao incêndio, pedindo-lhe que dirigisse a reconstrução da catedral.

Jean-Louis Georgelin fizera a sua carreira profissional em infantaria. Fora assessor militar principal de um presidente e prestara serviço como Chefe de Estado-Maior-General das Forças Armadas de outro. Macron confiou-lhe Notre-Dame por duas razões: Georgelin, o general, é católico devoto; conhece os salmos em latim e tem a autoridade e o conhecimento político para conseguir que a catedral reabra até 2024. Isso exigirá navegar nas águas da burocracia francesa. Georgelin preside a um établissement public, uma entidade pública especificamente criada para restaurar Notre-Dame, usando 840 milhões de euros de donativos.

Os projectos de restauro costumam ser geridos pelo Ministério da Cultura. Alguns agentes desse meio consideram estranho o envolvimento do general e classificam como irrealista o prazo de 2024. Questionei Georgelin. Ele desvalorizou a questão. “Estou a ver, monsieur, que foi contaminado pelas pessoas que acham que o presidente da República não deveria interferir na reconstrução de Notre-Dame”, afirmou, em voz alta e bem sonora. “Foi contaminado pelo partido da lentidão.” Georgelin é um macho alfa bem-disposto, um homem que, enquanto fala connosco com voz de comando e nos provoca com formalidades satíricas, age sempre com um sorriso aberto e consciente.

Os danos da igreja são graves, mas limitados, disse Georgelin,. Eu próprio fiquei impressionado com isso. A maior parte da igreja parece intocada, quando olhamos para lá dos andaimes que a preenchem agora quase por completo. Marie-Hélène Didier também ficou admirada quando a visitou, no dia a seguir ao incêndio, passando o dedo sobre as paredes para avaliar a fuligem. “Nada estava destruído!”, exclamou, referindo-se aos tesouros ou obras de arte valiosas. O altar moderno do cruzeiro fora esmagado, mas a icónica Nossa Senhora de

Paris, uma estátua de pedra do século XIV, ainda se encontrava a cerca de um metro, empoeirada, mas intacta, com escombros a seus pés. No laboratório dos monumentos, Claudine Loisel, a especialista em vitrais, disse-me que apenas alguns pedaços de vidro de três pequenos painéis tinham sido destruídos pela ponta do pináculo. Em termos gerais, a igreja perdera o pináculo, o telhado, as vigas e algumas abóbadas. Era muito, mas não tanto que não pudesse ser arranjado até 2024, resumiu Georgelin. Ao contrário da maior parte dos interlocutores com quem falei, Georgelin ia por vezes à missa a Notre-Dame antes do incêndio. Naquela noite horrenda, o general encontrava-se em casa, em Paris, a ver televisão e a chorar, “como todos”. Ouviu pessoas dizer que não viveriam tempo suficiente para ver Notre-Dame restaurada. É por isso que a promessa do presidente ao país era necessária, disse. Acredita que, se Macron não o tivesse estipulado, os arquitectos e os outros agentes esticá-lo-iam para 25. O general virou os olhos para o tecto e emitiu um assobio desafinado para ilustrar como se perde tempo quando se tem a cabeça nas nuvens.

Quanto ao arquitecto principal dos monumentos históricos… Já lhe expliquei várias vezes e vou dizer-lhe isto de novo… ele devia fechar a matraca.” Foi assim que Georgelin se referiu a Philippe Villeneuve, ao falar perante uma comissão da Assembleia Nacional Francesa em Novembro de 2019.

Os dois homens estavam provavelmente condenados a chocar de frente: Georgelin está habituado a não ser contrariado enquanto leva por diante os seus projectos; Villeneuve, enquanto arquitecto principal, está habituado a ter muita margem de manobra. Georgelin usa fato e blazer assertoado, presumindo-se que nenhum deles esconda uma tatuagem. Villeneuve é um intelectual de calças de ganga, casaco amarrotado e óculos de velhota. É um homem emotivo que personaliza a crise e traz o coração na garganta, como se comprova pela sua tatuagem no braço. Tem todas as razões para sentir intensamente a situação de Notre-Dame.

Este não é o seu primeiro contacto com uma catástrofe deste género. “A minha carreira tem sido marcada pelo fogo”, disse-me. No dia da sua promoção a arquitecto principal dos monumentos históricos, em 1998, Villeneuve descobriu que uma igreja medieval no seu distrito, Charente-Maritime, fora incendiada por um raio. No dia em que o fogo devastou Notre-Dame, ele estava a trabalhar no seu outro projecto principal, o edifício da câmara municipal de La Rochelle, datado do século XV – que fora igualmente destruído pelo fogo, também enquanto Villeneuve o restaurava. Isso aconteceu em 2013, pouco antes de ele ser escolhido para trabalhar em Notre-Dame.

Não foram encontradas provas que ligassem qualquer um dos incêndios às obras de restauro. A polícia não divulgou resultados da sua investigação em Notre-Dame. O principal suspeito é um curto-circuito eléctrico, mas Villeneuve ainda sente o peso de ter de recuperar da tragédia. “Ele mostrou-se à altura da missão”, disse Jacques Moulin, o arquitecto principal que está a restaurar a Basílica de Saint-Denis, ali perto. “Conseguiu transcender-se. Isso é uma capacidade rara.” No entanto, o processo pô-lo de candeias às avessas com o presidente.

Depois do incêndio, Macron manifestou a sua vontade de que se realizasse algo de arquitectonicamente novo em Notre-Dame – um “gesto contemporâneo”, chamou-lhe. “Devemos ter confiança nos construtores de hoje e devemos ter confiança em nós próprios”, disse. Os construtores responderam alegremente: chegaram sugestões de telhados de vidro e pináculos de cristal e pináculos de luz vindas de todo o mundo. Um gabinete de arquitectura propôs uma estufa no telhado. Outro sugeriu a substituição do telhado por uma piscina ao ar livre.

Villeneuve quis pôr fim a tudo isto, desesperada e imediatamente. Afirmou que não colaboraria na construção de um pináculo moderno. Foi então que Georgelin tentou, de uma forma um pouco desajeitada, calá-lo. As propostas extravagantes contribuíram para solidificar a posição de Villeneuve. Todos concordavam que a catedral não se deveria transformar  numa  piscina  elevada. No Verão de 2020, o general, o presidente e a comissão do património nacional aprovaram o plano de Villeneuve. Notre-Dame será reconstruída como era, no seu “último estado conhecido”, o estado em que Viollet-le-Duc a deixara.

Foi um triunfo da ortodoxia: reconstruir o último estado conhecido é aquilo que os restauradores franceses costumam fazer. A Carta de Veneza, assinada em 1964 numa conferência internacional de peritos, codifica essa abordagem, na qual o objectivo do restauro histórico não é o edifício mais belo, mas o mais “autêntico” – o que preserva todas as suas camadas de história. O impulso parece académico, mas é também emocional. A reconstrução, sobretudo depois de uma catástrofe, é um “acto poderosamente simbólico, é um acto catártico”, disse Leniaud, o historiador. “É a única maneira de sofrer. É muito importante sofrer.”

A ironia é que Viollet-le-Duc, que viu Notre-Dame ser atacada, não mostrou qualquer contenção (sobretudo depois de a morte do seu sócio, Jean-Baptiste Lassus, o deixar sozinho no comando). O seu objectivo não era reconstruir Notre-Dame exactamente como era, mas construir a catedral ideal. Ele refez por completo algumas paredes em redor do cruzeiro porque não gostava da forma como tinham sido alteradas no século XIII. Fez demolir a sacristia do século XVIII e substituiu-a por uma neogótica. Honrou os arquitectos góticos ao tentar tornar-se um e, com o pináculo, é consensual que se excedeu. No que diz respeito a outras liberdades que tomou, nem por isso.

Notre-Dame

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Durante um século após a sua morte, Viollet-le-Duc foi vilificado pela instituição dos monumentos que ele próprio ajudou a criar. “Quando eu era miúdo, na faculdade de Arquitectura, um restauro de Viollet-le-Duc significava uma confusão total e completa”, disse Moulin. Em Notre-Dame, Viollet-le-Duc pintou murais decorativos nas 24 capelas laterais. Na década de 1970, as 12 capelas da nave foram raspadas até expor novamente a pedra nua. Por essa altura, porém, a reabilitação da reputação do grande homem estava prestes a começar e a exposição vista por Villeneuve, aos 17 anos, em 1980, foi um ponto de viragem. “De repente, passámos de um Viollet-le-Duc diabólico para um Viollet-le-Duc que é praticamente um santo”, disse Moulin.

Hoje em dia, a maioria dos peritos em restauro franceses não pensaria em desfazer nada do que Viollet-le-Duc fez. Moulin acha que é uma pena. Ele também acredita em conservar a história, mas considera que o processo de recuperação definitiva de um edifício, devolvendo-o ao seu “último estado conhecido” resume-se a declarar que a história desse edifício já terminou: “É a definição da morte”. E pode não ser o melhor para a sua preservação. Se o telhado da sua catedral tiver ardido não faz sentido reconstruir vigas de madeira, defende Moulin.

Esse argumento foi ouvido e ignorado em Notre-Dame. A floresta e o pináculo serão construídos com madeira, embora de forma mais à prova de incêndios e com pulverizadores para apagar fogos. Os pormenores ainda estão a ser estudados.

Em 2019, o fogo que consumiu as vigas de carvalho tornou-se tão quente – quase de certeza atingindo mais de 760ºC – que penetrou nas paredes de calcário adjacentes e no topo de algumas abóbadas.

Dois especialistas do laboratório dos monumentos, a geóloga Lise Cadot-Leroux e o cientista especializado em conservação Jean-Didier Mertz, receberam formação como técnicos de cordas para poderem inspecionar os danos. Mertz mostrou-me algumas das amostras com 30 centímetros de comprimento que extraíram no centro das pedras com 60 centímetros de espessura. A superfície de algumas pedras transformou-se em pó e formaram-se fissuras no interior – em alguns casos, blocos com 12 centímetros de espessura desagregaram-se. Contudo, a maioria dos blocos parece ter guardado densidade suficiente para que o seu trabalho pudesse ser feito, disse Mertz. Juntamente com os colegas, Mertz desenvolveu uma técnica para selar as fissuras, injectando-lhes uma suspensão calcária. Para as pedras que precisam de ser substituídas, os cientistas estão a procurar boas correspondências a norte de Paris. A cidade cresceu sobre as pedreiras medievais, que então se situavam nos arredores.

A maioria das 460 toneladas de chumbo do telhado e do pináculo simplesmente derreteram e choveram dentro da igreja, mas o calor foi suficientemente intenso para lançar partículas de chumbo para o fumo. O perigo de inalar chumbo nessa noite, excepto por quem estivesse mesmo ao lado do fogo, era “ínfimo”, disse Jérôme Langrand, médico e toxicologista que dirige o centro de venenos de Paris no Hospital Lariboisière–Fernand-Widal. O verdadeiro perigo do chumbo é que será ingerido acidentalmente ao longo do tempo, sobretudo pelas crianças, através de terra contaminada de jardins, ou parques de diversões, ou da poeira que assenta dentro das casas. Alexander van Geen, cientista da Universidade de Colúmbia que caminhou por Paris a recolher amostras de terra em sacos de papel, estima que cerca de uma tonelada de chumbo se tenha precipitado num raio de um quilómetro da igreja.

Contudo, não existem provas de que tenha causado envenenamento significativo, contrapôs Langrand. Ele e os seus colegas analisaram sangue de 1.200 crianças na área afectada. Encontraram concentrações acima do “nível de preocupação” em pouco menos de 1% – aproximadamente o mesmo que na população francesa em geral. Além disso, em todos os casos, uma investigação revelou que as crianças estavam rotineiramente expostas a outras fontes de chumbo. Muitas varandas de Paris, por exemplo, têm piso de chumbo.

Apesar disso, nenhuma quantidade de chumbo no sangue é considerada segura e os telhados de chumbo poluem o ambiente sempre que são manipulados ou chove. Em Fevereiro de 2021, um conselho de assessoria científica do Ministério da Saúde, ao qual Langrand pertenceu, recomendou que França banisse a utilização de chumbo em novos telhados e que fossem encontradas alternativas ao seu uso em restauros históricos. O conselho municipal de Paris votou para exigir que o novo telhado de Notre-Dame não fosse de chumbo.

Nada disto abalou a determinação de Villeneuve. As crianças teriam de trepar para cima do telhado de chumbo de Notre-Dame e lambê-lo para correrem perigo, argumentou. “O chumbo é um elemento absolutamente essencial na construção”, acrescentou. É verdade que a Catedral de Chartres tem telhado de cobre, mas o cobre fica verde e os telhados de Paris são cinzentos. A maioria é de zinco, mas só com chumbo é possível reproduzir-se o pináculo e a ornamentação esculpida do telhado de Notre-Dame. Já existem coberturas de chumbo no Panteão, nos Invalides e noutros monumentos, disse Villeneuve. Porque deverá a catedral ser a única vítima da “loucura destes fundamentalistas do chumbo”? A água da chuva que escorrer do novo telhado será capturada e filtrada.

Villeneuve também planeia reconstruir a armação de madeira exactamente como antes existia. Tinha dois segmentos distintos. Quando Viollet-le-Duc reconstruiu o pináculo, substituiu a estrutura do transepto, mas não ao estilo medieval – as vigas foram cortadas em serrações industriais. Villeneuve fará o mesmo. No Inverno passado, Gourmain coordenou a doação de 1.200 carvalhos vindos de toda a França. Os maiores e mais antigos haviam sido plantados pouco antes da Revolução Francesa por silvicultores reais que asseguravam o fornecimento de mastros de navio para a marinha. Essas árvores formarão a base do pináculo.

As madeiras do sótão da nave e do coro eram diferentes, sendo maioritariamente originais do século XIII. Em Setembro de 2020, um grupo chamado Carpinteiros Sem Fronteiras reconstruiu uma das armações triangulares em frente da catedral para demonstrar a viabilidade de reconstruir a armação ao estilo medieval. O etnólogo e carpinteiro François Calame, fundador do grupo, levou-me a ver essa armação no local onde se encontra actualmente exposta, no exterior de uma fortaleza medieval na Normandia chamada Château de Crèvecoeur. É constituída por uma dúzia de vigas – todas feitas à mão a partir de um único carvalho, com um máximo de 30 centímetros de diâmetro. Os carpinteiros medievais trabalhavam a madeira verde e os Carpinteiros Sem Fronteiras fizeram o mesmo. Seguiram o grão, mantendo o cerne no centro. Deram uma curva suave a algumas das vigas, mas isso tornou-as mais fortes. As armações de Notre-Dame duraram mais de 800 anos antes de a sua sorte acabar.

Calame tirou do porta-bagagens a sua ferramenta de eleição: um doloire, um machado com a cabeça alargada como uma trombeta. Deu alguns golpes habilidosos num tronco e depois deixou-me experimentar. O machado era suficientemente afiado para causar danos graves se fosse mal apontado, o que parecia uma séria possibilidade. Os meus primeiros golpes ressaltaram no tronco com um som estridente e alarmante, mas depois acertei alguns. Cunhas finas de madeira voaram pelo ar.

Do ponto de vista de Calame, o restauro histórico deve recuperar capacidades perdidas, além de edifícios danificados e não só para benefício dos carpinteiros. A razão pela qual a “floresta” de Notre-Dame impressionou tanto as pessoas que a viram, na sua opinião, foi por transmitir a mensagem dos mestres artesãos que a fizeram ao longo dos séculos.

“A armação tinha 800 anos. Perdeu-se. Mas acho que, se a fizermos da forma como foi feita, da mesma maneira e com os mesmos materiais, a mensagem pode ser transmitida”, disse Calame. “Seremos capazes de senti-la.”

Villeneuve ficou impressionado com a demonstração dos Carpinteiros Sem Fronteiras. Explicou-me que os troncos para a nave e o coro seriam cortados em serrações para poupar tempo, mas que as vigas seriam acabadas à mão com doloires. No entanto, a construção do pináculo terá de vir em primeiro lugar. Viollet-le-Duc teve de abrir um buraco nas abóbadas para conseguir construir o seu pináculo a partir de dentro. Villeneuve leva um avanço: o buraco já lá está.

Aurice de Sully, o bispo de Paris que encomendou Notre-Dame em 1163, era filho de camponeses. Embora o pináculo se alongasse céu adentro, as aspirações de Sully eram bem terrenas: estava a exibir o seu poder perante os rivais, bem como perante o rei. A torre e o palácio do arcebispo pareciam as muralhas de um castelo. A fachada ocidental da catedral era ainda mais imponente.

“Na cidade medieval, era completamente dominante e esmagadora”, disse Bernard Fonquernie, que, trabalhando como arquitecto principal, restaurou a fachada na década de 1990, removendo décadas de fumos de escape e de dejectos de pombo. Eu vivia em França nessa altura e lembro-me desse renascimento e de como as paredes brilhavam quando os andaimes foram desmontados. A construção da catedral foi maioritariamente financiada por donativos de crentes, disse o historiador da arte Dany Sandron, da Sorbonne. A experiência vivida pelos fiéis na igreja não era igual à dos católicos que frequentam a missa actualmente. Deambulando pela nave sem cadeiras, não conseguiam ver e mal conseguiam ouvir a liturgia oficiada pelos cónegos residentes, oito vezes por dia, atrás de uma parede no coro. Nas capelas laterais, capelães murmuravam cerca de 120 missas por dia, mas estas também não eram para os vivos: eram para os mortos ricos, que tinham encomendado missas perpétuas na esperança de livrarem as suas almas do purgatório.

Notre-Dame

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Apesar disso, as pessoas normais acorriam a Notre-Dame. Por vezes, dormiam no chão diante de um altar, sonhando com curas milagrosas para doenças dolorosas. A fé católica era essencial para a maioria dos franceses de então. Hoje já não é tanto assim.

“Notre-Dame não é um museu”, insistiu Patrick Chauvet, prior da catedral. Antes do incêndio, cerca de três mil pessoas vinham à missa ao domingo, ao passo que 10 a 12 milhões de turistas visitavam-na todos os anos. Muitos tinham escassos conhecimentos do cristianismo. “Como podem sentirem-se tocados pela graça deste local?”, perguntou Chauvet. “Como pode a beleza deste local fazê-los, pelo menos, interrogarem-se sobre o significado das suas vidas?”

O plano, disse, é reorganizar a visita. Quando a igreja reabrir, os visitantes serão encaminhados para um novo arco que passará pelas capelas laterais redesenhadas. Avançando de norte para sul ou da escuridão para a luz encontrarão primeiro o Antigo Testamento, depois o Novo Testamento, de modo a “entrarem progressivamente no mistério de Deus”, disse Chauvet. Será mesmo assim? Graças ao enorme orçamento do restauro, pelo menos a catedral deverá ficar deslumbrante. As obras que, por norma, se teriam prolongado por décadas têm a duração prevista de três anos. Todo o interior da igreja, incluindo as capelas e pinturas e a maioria dos vitrais, serão limpos – um renascimento cintilante. Se, como Georgelin pensa, “a beleza da arquitectura gótica for das melhores provas da existência de Deus”, então Deus ter-se-á levantado para combater mais um dia em França. O incêndio não terá acontecido em vão.

Nessa noite de Abril, eu e a minha mulher estávamos com velhos amigos que visitavam Paris pela primeira vez. Depois de jantarmos na Margem Direita, decidimos voltar a pé para o local onde estávamos hospedados, na Margem Esquerda. As margens do Sena estavam repletas de pessoas que observavam Notre-Dame a arder. Ao atravessarmos a ilha de Saint-Louis, parámos junto de uma mangueira que os bombeiros estavam a montar para puxar água do rio. Em Pont de la Tournelle, parámos junto de um coro improvisado entoando suavemente hinos a Nossa Senhora. Admirei aquela vista, junto do Sena, virado para a abside de Notre-Dame. Não consigo imaginar como seria se tivesse desaparecido para sempre.

“Foi lindo. Temos de salientar a beleza do fogo”, disse Leniaud. “Foi magnífico. Mas depois de ser lindo, é feio. Restam apenas as ruínas. Primeiro há apenas negrume, escuridão, morte.” Até ganhar de novo vida, tal como deve ser.