O seu ramo começa há cerca de 500 mil anos. O neandertal foi capaz de resistir à última glaciação, mas o seu enigmático desaparecimento coincidiu com a chegada dos primeiros Homo sapiens provenientes de África.
Até onde poderia ter chegado a cultura e a tecnologia dos neandertais se estes não tivessem desaparecido? Este exercício de ficção de pré-história é uma das muitas questões colocadas pelos investigadores que se dedicam ao estudo da cultura neandertal. As recentes descobertas e as novas técnicas de investigação permitem assemelhar cada vez mais as capacidades culturais e cognitivas dos neandertais à espécie que emerge no continente africano no mesmo período: os antepassados mais directos da espécie humana, os Homo sapiens.
Os primeiros neandertais
Os neandertais podem ser considerados os últimos representantes do ramo humano a desenvolver-se na Europa entre 500 mil e 40 mil anos. Muitos investigadores consideram que os representantes mais antigos deste ramo constituem uma espécie própria: os Homo heidelbergensis, aos quais correspondem os vestígios encontrados em sítios arqueológicos como a gruta da Aroeira, no Almonda (Portugal), Sima de los Huesos na serra de Atapuerca (Espanha), Mauer (Alemanha), Petralona (Grécia) ou Arago (França). Os estudos genéticos de alguns destes vestígios parecem confirmar o parentesco directo entre estas populações europeias e entre elas e os neandertais posteriores, suportando a conclusão de que se trataria de uma linha evolutiva própria e independente, claramente diferenciada do ramo sapiens originário de África. Pouco se sabe sobre a origem e comportamento dos heidelbergensis, os primeiros representantes do ramo neandertal. Os sítios arqueológicos de há 500 mil a 40 mil anos são escassos na Eurásia e não há ainda um número significativo de achados que sustente teorias abrangentes. Tudo indica que há cerca de 750 mil anos as primeiras populações que ocupavam a Europa há um milhão de anos começaram a declinar e quase desapareceram.
A descoberta do vale de Neander
Em 1856, os trabalhadores de uma pedreira localizada no vale de Neander, perto de Düsseldorf, na Alemanha, recuperaram um esqueleto humano com uma aparência estranha entre os sedimentos que se soltaram da gruta de Feldhofer. Não demoraria a apresentar-se a questão se aqueles ossos poderiam ou não pertencer ao elo perdido entre os humanos e os grandes símios. O geólogo William King baptizou os fósseis como Homo neandertalensis, “Homem de Neandertal”. Nascia uma nova espécie humana para a ciência. Vestígios encontrados anos antes noutros locais — como em Engi (Bélgica) ou na pedreira Forbes (Gibraltar) —, inicialmente atribuídos a indivíduos com malformações, foram interpretados como pertencentes ao homem de Neandertal.
Na imagem, a parede rochosa com a gruta do vale de Neander onde se encontraram os vestígios de Neandertal I. Fotografia de 1910 de Museu Americano de História Natural / NGS.
A ausência de sítios arqueológicos posteriores sugere um largo vazio de população na Europa que acabou há cerca de 550.000 anos com a chegada dos heidelbergensis, provavelmente oriundos de algum ponto da Ásia.
Os heidelbergensis são contemporâneos no continente europeu da cultura acheulense, caracterizada pela elaboração de grandes instrumentos de pedra, como os bifaces: utensílios ovóides, esculpidos nas duas faces e com arestas afiadas. Outra faceta conhecida é a sua capacidade para caçar ungulados (animais com cascos) de grande e médio porte, como cavalos, bisontes e cervídeos.
Seres selvagens. A primeira visão dos neandertais foi apresentada no contexto imperialista europeu do século XIX e do início do século XX. Aqueles seres pré-históricos não podiam parecer-se com os humanos modernos (com o homem branco que dominava o mundo). Como tal, eram representados como seres desajeitados e de aspecto simiesco, oriundos de um ambiente hostil dominado por feras.
No sítio arqueológico inglês de Boxgrove, foi proposto que uma lesão detectada na omoplata de um cavalo poderá ter sido produzida pelo impacte de uma lança. Talvez há cerca de 500 mil anos os habitantes do Sul de Inglaterra já utilizassem ferramentas eficazes para caçar, mas desconhecem-se as técnicas usadas para abater os animais: seriam as lanças arremessadas ou usadas para golpear? Em todo caso, a caça de grandes ungulados terá necessitado de planificação e envolvido vários membros do grupo. A maioria destes grupos deveria desconhecer o domínio do fogo, embora tenha sido proposta a hipótese da ocorrência de fogueiras em alguns sítios arqueológicos na Europa Oriental. Contudo, revisões com técnicas mais modernas parecem rejeitar que aquelas comunidades usassem o fogo de forma regular.
O enigma dos defuntos
Talvez o aspecto mais inovador desses primeiros neandertais seja o tratamento dado aos seus mortos. O sítio arqueológico de Sima de los Huesos, em Atapuerca, é bastante elucidativo. Neste local, estão a ser escavados os vestígios de 28 indivíduos que viveram há cerca de 400 mil anos e cuja presença na gruta, segundo a equipa científica, só pode ser explicada porque os cadáveres ali foram depositados de forma intencional. Assim o sustenta o facto de os esqueletos estarem praticamente completos e pertencerem a um segmento de idade muito concreto: são indivíduos adolescentes e adultos (fora dessa franja de idades só foram recuperados os restos mortais de um menino e de um ancião com cerca de 40 anos).
Quando os antepassados do ser humano emigraram de África para a Eurásia há cerca de 45.000 anos, encontraram um mundo já habitado. Os neandertais eram cerca de 99,5% geneticamente idênticos aos humanos modernos, mas, ao longo de centenas de milhares de anos de evolução no frio clima eurasiático, desenvolveram traços anatómicos diferenciados. Juan Velasco, NG. Cránios fotografados no Museu de História Natural de Londres.
O tratamento especial de Sima de los Huesos contrasta com as evidências de canibalismo encontradas noutros locais, como na gruta de Arago, em França. Os restos mortais humanos deste sítio mostram fracturas feitas intencionalmente para chegar ao tutano e apresentam marcas de corte durante o processo de descarnamento dos corpos. Os investigadores que trabalham neste sítio arqueológico sugeriram a hipótese de indícios de rituais associados a este canibalismo, com o objectivo de o distinguir da ingestão de carne humana para alimentação num momento de crise (como num período de fome). Esta hipótese baseia-se no estudo da estrutura dos dentes, que durante a sua formação registam a história de vida dos indivíduos à imagem dos anéis nos troncos das árvores. Em nenhum caso foi observado qualquer transtorno alimentar nessas populações, facto que, juntamente com a grande variedade e quantidade de animais encontrados na gruta, sugere que o canibalismo não aconteceu por necessidade, mas sim para responder a uma razão simbólica e talvez até ritual.
A grande alteração
O mundo dos heidelbergensis, os primeiros neandertais, foi travado pela irrupção de um dos períodos mais frios que o planeta já viveu desde o aparecimento do género Homo, há cerca de 2,5 milhões de anos. Embora ainda se desconheçam as causas para essa glaciação, há 400 mil a 350 mil anos o clima mudou bruscamente e o frio produziu um efeito gargalo nas populações de heidelbergensis. A julgar pelo reduzido número de sítios arqueológicos correspondentes a essas datas, tudo parece apontar para que a alteração climática tenha empurrado os grupos humanos a refugiarem-se em ambientes mais temperados do Sul, como na costa mediterrânea da Europa e do Próximo Oriente. Nesses locais, formaram-se bolsas de população isolada geneticamente entre elas, o que favoreceu a especiação, ou seja, o processo através do qual uma espécie começa a divergir da espécie de origem.
Em todos os casos, a ausência de vestígios deste período poderá também explicar-se não só por uma descida demográfica, mas também pelas alterações da linha costeira que acompanharam estes ciclos climáticos.
Por norma, os períodos frios têm como consequência uma concentração da água do planeta em forma de gelo nos pólos. O nível do mar desce e os continentes tornam-se mais áridos pela ausência de água na atmosfera.
Em contrapartida, quando o clima volta a aquecer, tal como aconteceu no fim da última glaciação, ocorre o degelo nos pólos e o nível do mar volta a subir. Por isto, é possível que o mar tenha coberto a maioria dos testemunhos arqueológicos do período em que surgiram os novos neandertais. Porém, algumas populações conseguiram sobrepor-se a esta crise e, com a melhoria climática do período posterior (há cerca de 350 mil a 300 mil anos), depressa recolonizaram os territórios que os seus antepassados tinham abandonado por causa do frio. No entanto, a morfologia dessas populações já não seria idêntica à dos heidelbergensis. O mundo neandertal transformara-se.
Os novos neandertais
Os indivíduos que superaram o efeito gargalo possuíam grande parte dos traços que os investigadores utilizam para caracterizar os neandertais já desenvolvidos. Os seus crânios eram baixos e arredondados e, em alguns casos, superariam um volume de 1.500cm3. Teriam uma marcada protuberância óssea sobre os olhos (o chamado toro supra-orbital), narizes largos e ausência de queixo. A sua altura média diminuiu de 1,80metros dos heidelbergensis para 1,65m, mas a sua massa corporal manteve-se. Seriam assim indivíduos baixos e muito robustos (embora a sua esperança média de vida continuasse a ser curta, como a de todos os hominídeos pré-históricos e até de épocas históricas. Na maioria das comunidades, não superaria 40 anos).
A vida comum.
No momento em que os neandertais domesticaram o fogo, os seus assentamentos começaram a mostrar características cada vez mais complexas. Os locais ocupados distribuíam-se por zonas com funções muito específicas (locais para a vida comum, zonas para dormir), mas sempre em redor do fogo. Estas características permitiram estimar o número de elementos que integravam os grupos. Habitualmente encontravam-se grupos reduzidos de 5 a 15 indivíduos, provavelmente aparentados entre si e que se deslocavam com frequência pelo seu território. Porém, este facto não exclui que em determinadas alturas e coincidindo com a concentração de recursos num território, como acontecia durante as épocas de migrações dos animais, os grupos pudessem juntar-se e formar grupos muito mais numerosos.
Na galeria, reconstituições realizadas por Elisabeth Daynes.
A sua tecnologia também mudara. Enquanto os heidelbergensis preservam a cultura acheulense durante mais de 100 mil anos, os novos conjuntos arqueológicos atestam claras inovações.
Uma destas novas tecnologias acabou por se impor às restantes e foi adoptada por boa parte dos grupos euro-asiáticos: a musteriense. Constituía uma nova forma de talhar a pedra, como o método Levallois: o núcleo da pedra era preparado para extrair lascas com uma forma preconcebida pelo artífice. Depois, os conjuntos de lascas eram retocados para obter instrumentos especializados em diversas tarefas. Desta forma, o artefacto neandertal diversificou-se e começou a incluir pontas para lanças, raspadores para peles e carne, ferramentas denticuladas para trabalhar a madeira e utensílios perfuradores.
No entanto, em todos os sítios arqueológicos, continuam a aparecer bifaces e outras peças de grande formato, mas com menor frequência e em contextos relacionados com lugares de morte e esquartejamento de animais. A eficácia dos novos métodos de esculpir levou a que perdurassem no tempo até praticamente ao desaparecimento dos neandertais.
O calor do fogo
As inovações tecnológicas não se limitaram ao talhar da pedra. Durante este período, o fogo transformou-se num elemento essencial na vida diária dos grupos humanos. Teorizou-se muito sobre o aparecimento deste elemento em sítios arqueológicos próximos de um milhão de anos em África e no Próximo Oriente, ou seja, antes do mundo neandertal, mas estes sítios não expressam o uso do fogo como os neandertais utilizaram. Esta cultura foi a primeira a posicionar o fogo no centro de grande parte das suas actividades domésticas, desde a confecção dos alimentos ao aproveitamento da sua luz e calor para dar forma aos instrumentos.
Adornos ou símbolos?
O paleoartista Fábio Fogliazza produziu esta reconstrução de um neandertal envolto em pele de raposa. O crânio foi modelado sobre o que é conhecido como La Ferrassie 1 (encontrado no sítio arqueológico homónimo em França). Aplicou-se sobre ele um pigmento ocre avermelhado (almagre) e negro (dióxido de manganês). As penas e a garra pertencem às espécies identificadas na gruta de Fumane (Itália); diversos indícios permitem pensar que estes elementos foram usados como adornos pelos neandertais que habitaram este local.
O sítio arqueológico mais antigo no qual se observam actividades deste tipo é a gruta Qesem, em Israel, onde se detectou um uso controlado e continuado do fogo há cerca de 350 mil anos. Os vestígios humanos que foram recuperados ali (basicamente dentes) parecem estar mais próximos das populações neandertais europeias desse período do que das africanas do ramo sapiens. Mais perto, na gruta de Bolomor, na costa valenciana, surgem lareiras bem estruturadas, há cerca de 250 mil anos, e claros indícios de ossos queimados em níveis inferiores, o que poderá indiciar um uso ainda mais precoce do fogo nesta área geográfica.
A partir desse limiar de 250 mil anos, os indícios de domesticação do fogo começam a multiplicar-se e há 100 mil anos praticamente todos os sítios arqueológicos neandertais usados como refúgio integram o fogo como elemento central.
A dieta também parece ter-se diversificado. Tradicionalmente, considerou-se que os neandertais eram grandes consumidores de carne. Esta concepção procedia de toda a observação dos seus assentamentos, onde abundam os vestígios de grandes ungulados, e dos estudos sobre isótopos estáveis do carbono e do nitrogénio contidos nos ossos de alguns indivíduos, já que se trata de elementos que sugerem o consumo de carne. Actualmente, conhece-se a composição e importância da dieta vegetal entre aquelas comunidades graças ao estudo do desgaste dos dentes e dos fitólitos (os vestígios vegetais fossilizados) integrados nos cálculos dentários (conhecido como tártaro).
A dieta neandertal.
Até há pouco tempo, o menu neandertal era constituído basicamente por animais como cavalos, cervídeos e grandes bovídeos. Ou seja, era-lhes atribuída uma dieta basicamente carnívora, tal como sugeria a associação das suas ferramentas com múltiplos ossos daqueles animais. Os estudos posteriores e as novas técnicas de estudo dão conta de uma dieta muito mais diversificada e de acordo com o ambiente em que viviam. Nos ambientes mediterrâneos, a dieta de carne era mais variada e incluía animais pequenos, como coelhos ou aves. Nos locais costeiros, consumiam-se habitualmente moluscos marinhos e animais que podiam ficar presos nas praias, como é o caso do atum ou de golfinhos em Gibraltar. Outro elemento importante, que correspondia a mais de 80% da sua dieta frequente, foram os vegetais. Como bons omnívoros, a recolecção de diferentes frutos e plantas terá ocupado grande parte do seu tempo.
Os novos resultados mostram maior presença de plantas na dieta regular, especialmente no caso dos neandertais austrais, que parece terem sido excelentes conhecedores das plantas e vegetais do seu ambiente imediato. Um exemplo muito sugestivo é o caso da gruta de El Sidrón, nas Astúrias (Espanha), onde estes estudos relevaram o uso frequente de plantas com propriedades anti-inflamatórias, antiespasmódicas, cicatrizantes, calmantes e digestivas, como o milefólio e a camomila.
Trocas culturais
O tratamento dos mortos tornou-se igualmente mais complexo. Sem abandonar práticas prévias, como o canibalismo, os neandertais começaram a desenvolver um comportamento sem precedentes: os enterros. O mais antigo de que há conhecimento corresponde a uma mulher enterrada na gruta de Tabun (Israel) com cerca de 100 mil anos. Mais tarde, há aproximadamente 60 mil anos, os enterros neandertais (individuais ou colectivos) começaram a proliferar em diferentes pontos da Europa e do Próximo Oriente; entre os mais conhecidos figuram La Ferrassie e La Chapelle-aux-Saints (França), a gruta de Kebara (Israel) e Shanidar (Iraque).
Os últimos de uma espécie
Há cerca de 40 mil anos, os humanos modernos já tinham colonizado praticamente todo o subcontinente europeu. Apesar disso, ainda restavam alguns redutos neandertais em zonas marginais, onde seriam progressivamente substituídos pelos recém-chegados. O Sul da Península Ibérica, concretamente as grutas de Gorgham e Vanguard, em Gibraltar, parecem ter sido o último refúgio desta espécie humana. Os investigadores asseguram que as populações neandertais resistiram ali até há cerca de 33 mil anos, mantendo o seu modo de vida tradicional. O nível IV de Gorgham foi datado várias vezes, usando cada vez técnicas mais precisas de Carbono 14. Proporcionou sempre datas muito parecidas.
Na imagem, vestígios fósseis de uma mulher neandertal (em cima) numa gruta de Gibraltar, aberta para o mar. Fotografia de Kenneth Garrett.
O facto de se encontrarem os primeiros enterros no Próximo Oriente, uma região onde neandertais e sapiens conviveram durante algum tempo e partilharam territórios, culturas e recursos naturais, levaram alguns investigadores a sugerir fenómenos de intercâmbio cultural entre ambos os ramos, que poderiam ter-se alargado a novas modalidades de enterramento dos mortos.
De qualquer maneira, as relações dos sapiens marcariam, milhares de anos depois, o desaparecimento definitivo dos neandertais.
Os últimos do Ocidente
Na Europa Ocidental, a franja cronológica de 45 mil a 33 mil anos corresponde à transição entre o Paleolítico Médio e o Superior e caracteriza-se pelo desaparecimento dos neandertais do registo antropológico e pela sua substituição pelas primeiras populações de humanos modernos, os sapiens. Por essa altura, as últimas comunidades neandertais pareciam viver uma nova revolução tecnológica e cultural. As técnicas musterienses que os tinham acompanhado durante tanto tempo começavam a dar lugar a sistemas mais sofisticados como resposta a novas necessidades nascidas (entre outras razões) da progressiva diminuição dos rebanhos ungulados que marcou o final do Paleolítico Médio e durou até ao Paleolítico Superior.
Na metade meridional de França e no Norte da Península Ibérica, começou a desenvolver-se a cultura chatel perronense, uma técnica de esculpir a pedra que parecia destinada a substituir progressivamente as ferramentas precedentes (habitualmente mais largas do que compridas) por uma tecnologia baseada em lâminas. Apareceram outras aquisições culturais, como o uso de cosméticos e de elementos decorativos. Um bom exemplo disso são as penas e as garras de aves de rapina, usadas para fins ornamentais, nos sítios arqueológicos de Fumane (Itália), Combe Grenal e Les Fieux (França) ou das grutas de Gibraltar; e também as conchas marinhas perfuradas e com pigmentos encontradas na grutas de Los Aviones e Antón (Espanha). Na criança do Lapedo, perto de Leiria, apareceram igualmente conchas perfuradas e pintadas, mas tudo indica que este esqueleto corresponde a um processo de miscigenação entre as duas espécies.
A presença da morte.
Os neandertais manifestaram-se de diversas formas perante a morte dos seus congéneres. São habituais os restos mortais humanos encontrados em enterros realizados intencionalmente, alguns em fossas previamente escavadas e outros aproveitando cavidades naturais. Alguns são individuais, como o da mulher de Tabun (Israel) ou o do velho de La Chapelle-aux-Saints (França), e outros são colectivos, como os de Kebara (Israel), Shanidar (Iraque) ou de La Ferrassie, em França. Muitos destes esqueletos encontram-se flectidos em posição fetal. Tem-se debatido a presença de enxovais funerários e de objectos simbólicos depositados perto dos esqueletos, como flores e outros elementos vegetais, bem como oferendas de origem animal. Mas noutros sítios arqueológicos, como em El Sidrón (Espanha), Abri Moula, Marillac e Combe Grenal (França), existem indícios de canibalismo, seja para alimentação ou relacionados com questões simbólicas.
Na imagem, um homem de neandertal contempla os restos de um adulto falecido que jaz a seus pés. Reconstituição de Elisabeth Daynes a partir dos fósseis de La Chapelle-Aux-Saints.
Embora estes dados sejam prévios à chegada dos humanos modernos ao Oeste da Europa, a genética parece apontar para cruzamentos e hibridizações entre as populações. Estima-se que os primeiros contactos sexuais entre ambas as espécies possam ter acontecido no Próximo Oriente há 100 mil anos e que aqueles tenham sido os responsáveis para que as populações euro-asiáticas actuais ainda possuam uma carga genética neandertal de aproximadamente 3%.
Em qualquer caso, os dados arqueológicos sustentam o desaparecimento dos modos de vida tradicionais dos neandertais, um desvanecimento que aconteceria a um ritmo desigual em diferentes regiões europeias. As suas causas são motivo de acalorados debates científicos. Alguns autores insistem num processo de concorrência pelos recursos, no qual a superioridade tecnológica dos sapiens se impôs e levou os neandertais a desaparecerem. É possível, além disso, que os recém-chegados do Próximo Oriente tenham trazido consigo doenças e parasitas que as populações neandertais ocidentais não conseguiram combater, já que nunca tinham contactado com aqueles. Os efeitos poderiam ser parecidos aos causados nas populações indígenas com a chegada dos europeus.
O contacto entre neandertais e sapiens
Há 100 mil a 60 mil anos, neandertais e sapiens entraram em contacto no actual Próximo Oriente. Ambas as espécies conviveram nesta área durante milhares de anos e usaram tecnologia semelhante: a chamada cultura musteriense. De facto, quando nos sítios arqueológicos desta região não aparecem vestígios humanos, os arqueólogos mostram-se incapazes de decidir se estavam habitados por neandertais ou por sapiens. Os sítios arqueológicos do monte Carmelo em Israel (Kebara, Tabun, Shulk e Qafzeh, entre outros) mostram estas semelhanças, que podem ser produtos de frequentes contactos entre as populações e talvez de cruzamentos e trocas culturais. Porém, há cerca de 55 mil anos, as populações neandertais desapareceram do registo arqueológico da área e deixaram os sapiens sozinhos, pelo que as populações iniciaram uma expansão pela Europa. Em cima, recriação de um encontro entre neandertais e sapiens.
Um final controverso
Perante a hipótese da concorrência, outros investigadores argumentam que os neandertais já teriam desaparecido da maior parte dos territórios europeus quando chegaram os sapiens. Para tal, baseiam-se em critérios geológicos, alegando que em nenhum dos sítios arqueológicos da Europa Ocidental existem estratos onde ambas as espécies apareceram juntas. Estes autores identificam um vazio de população de cerca de mil anos entre o desaparecimento dos neandertais e a chegada dos sapiens, embora o dente encontrado na gruta Nova da Columbeira, no Bombarral, tenha sido datado de há 30 mil anos, um período onde o Homo sapiens já poderia caminhar também no território português.
Auge e extinção dos neandertais.
A época áurea dos neandertais situa-se aproximadamente há 100 mil anos, quando estes se expandiram pelo Médio Oriente e, provavelmente, até à costa do Pacífico. Depois deste período, começou o seu declínio, talvez por contacto directo com os sapiens, com os quais poderão ter coexistido no Próximo Oriente durante milhares de anos. Embora existam múltiplas hipóteses sobre a sua extinção, os dados actuais não permitem suportar uma hipótese única. Processos de concorrência ecológica e cultural entre ambas as espécies, problemas imunológicos face aos recém-chegados ou esgotamento genético são algumas explicações que não se excluem entre si.
Alguns arqueólogos apontam para um ritmo de reprodução muito mais lento dos neandertais, o que os levaria a crises demográficas importantes se os recursos minguavam, como parece ter acontecido.
Na realidade, os dados arqueológicos não permitem ainda conclusões categóricas. É provável que tenham ocorrido vários factores (alguns nem sequer ainda descobertos) susceptíveis de provocar o desaparecimento dos neandertais europeus. Talvez o aparecimento de novos sítios arqueológicos e fósseis traga à luz do dia as verdadeiras causas da extinção do ramo dos primeiros irmãos evolutivos dos Homo sapiens.