Detenho-me. A boca da gruta é quase invisível. Neste ponto, o barranco estreita-se e “observa-me” com os olhos cegos das suas centenas de cavidades. Qualquer delas pode ser a que procuramos. Ou talvez não, talvez seja outra, ainda não descoberta. Aqui, a história ainda não está escrita.

Em 1764, neste barranco situado no lado meridional da ilha de Tenerife, nas Canárias, foi encontrada a gruta que deu origem ao mito das mil múmias. O escritor iluminista José Viera y Clavijo, sacerdote em Tenerife, descreveu esse achado em pormenor nas suas Noticias de la historia general de las Islas de Canaria: “Acaba de se descobrir um panteão excelente [...]. Encontra-se num outeiro escarpado do barranco de Herques, entre Arico e Güímar, na região de Abona, e tão cheio de múmias que não se contaram menos de mil.”

tenerife

Tenerife, com a montanha do Teide ao fundo, é a maior das míticas Ilhas Afortunadas. Embora alguns navegadores e a expedição de Juba II no século I d.C. as considerassem um cenário real, foram praticamente invisíveis para a Europa até à chegada dos navegadores maiorquinos e genoveses, no século XIV. E os seus habitantes com elas.

Haverá poucas actividades que suscitem mais entusiasmo do que caminhar sobre o ambíguo fio entre a história e a lenda. O relevo do barranco de Herques foi esculpido por uma antiquíssima explosão de lava solidificada e vegetação ressequida, roubada ao solo, cujo interior alberga segredos como este. Dois séculos e meio volvidos sobre a descoberta, encontramo-nos agora no lugar que grande parte dos arqueólogos de Tenerife atribui à Gruta das Mil Múmias. A sua localização foi sendo transmitida oralmente, sem coordenadas escritas, como que entre eleitos, e a entrada passa despercebida ao caminhante.


Gruta

As crónicas localizam a Gruta das Mil Múmias entre as centenas de grutas que esburacam o barranco de Herques, ou de Los Muertos, em Tenerife.

Acompanhada por amigos insulares, sinto-me privilegiada por aceder à gruta onde, um dia, repousaram os seus antepassados. Agacho-me e inspecciono a estreita abertura. Ligo a luz da lanterna de cabeça e arrasto-me sobre o solo irregular e esbranquiçado. A descida dos primeiros metros por um túnel claustrofóbico traz recompensas: a câmara, alta e espaçosa, que logo se abre à minha frente é promessa de uma viagem ao passado da ilha.

“Nós, arqueólogos, partimos do princípio de que a expressão ‘mil múmias’ terá sido um exagero, uma maneira de dizer que existiam em grande número, às centenas”, explica a historiadora e egiptóloga canarina Mila Álvarez Sosa. No interior da gruta, os olhos habituam-se pouco a pouco à escuridão, medindo os espaços, tentando localizar a mítica necrópole neste tubo vulcânico escavado nas entranhas da vertente do Herques.

Antes do século XVIII, já se tinham encontrado múmias, evidentemente, mas foi em torno desta gruta sepulcral que surgiu a lenda de que poderia tratar-se do panteão dos menceyes, os reis guanches, cuja localização os nativos guardavam ciosamente. Talvez por isso tenha desaparecido tão repentinamente como apareceu. A sua localização esbateu-se, pelo menos para a história oficial, e isso transformou-a no Santo Graal da arqueologia canarina. Quem perguntar aos autóctones, provavelmente escutará que a localização não é divulgada para protecção da memória dos antepassados. Ou que a gruta que vimos é falsa e que uma derrocada tapou a verdadeira para sempre. Geralmente, quando alguém faz perguntas, os autóctones contam-lhe muitas coisas. E silenciam outras.

Todas fascinantes.

“Os seus ritos funerários: foi o que mais chamou a atenção dos conquistadores castelhanos”, prossegue Álvarez Sosa, recordando um choque cultural ocorrido em Tenerife em finais do século XV, entre 1494 e 1496. Mila gosta de imaginar o momento em que uma potência europeia dos alvores do Renascimento que navegava nos mares, montava a cavalo e brandia a espada se encontrou, cara a cara, com um povo quase saído do Neolítico. Não era o primeiro confronto entre os ilhéus e os europeus, mas seria o último. Os guanches, nome dos povoadores nativos da ilha de Tenerife, “não conheciam os metais, utilizavam paus e pedras como ferramentas, vestiam-se com peles e viviam em grutas. Em contrapartida, honravam os seus mortos, preparando-os para a sua última viagem. Preservavam-nos.”

gravura gruta

A primeira representação de uma gruta com enterramento guanche é esta gravura de Charles-Nicolas Cochin, que se baseou no relato de um médico galês que afirmava tê-la visitado. Figurou em 1746 no livro do Abbé Prévost e, surpreendentemente, reproduz a gruta que seria descoberta quase 20 anos mais tarde e que ainda hoje é conhecida como Gruta das Mil Múmias, possível panteão dos reis da ilha. Imagem: Alamy / ACI


Que palavra tão bonita: preservar. O estranho fascínio pela morte levou a que os recém-chegados aprendessem rapidamente o nome dos habitantes daquelas necrópoles colectivas, os xaxos, e o processo utilizado para prepará-los para a eternidade, o mirlado, duas palavras registadas nas suas crónicas. “Estes são os termos correctos. As múmias e a mumificação foram contaminações provenientes da terminologia utilizada a partir do século XVIII. “Napoleão pôs o Egipto na moda”, graceja a egiptóloga.

tratamento mirlado

O tratamento de "mirlado" preservou a múmia guanche do MAN com um realismo surpreendente. Era um homem de 35 a 40 anos de idade que viveu há quase 900 anos. Ao contrário das múmias egípcias, mais consumidas pelo natrão, o xaxo mostra a musculatura, os tendões e até as unhas das mãos e dos pés, cuidadosamente atados entre si. Cortesia do Museu Arqueológico Nacional de Espanha (MAN)/Fernando Velasco Mora

Aqui, imersa na escuridão, imagino o fascínio que, em pleno Século das Luzes, sentiria Luis Román, capitão de infantaria de Tenerife, quando em 1764 acedeu àquela necrópole acompanhado por alguns homens da região, com o objectivo de levar consigo alguns exemplares para serem estudados. Reconstituiu o momento em que ergueu a tocha e viu centenas de corpos congelados no tempo, com uma sensação entre a profanação e o entusiasmante afago da história. O achado causou uma impressão profunda nos mais eruditos da ilha e o regedor José de Anchieta resumiu-o nos seus apontamentos.

Curiosamente, deixou em branco o espaço onde deveria figurar a localização. Um nome que, como demonstram as mais recentes investigações, não foi apagado – simplesmente, nunca foi escrito. Se a sua intenção era proteger a gruta dos salteadores, infelizmente não o conseguiu. Segundo várias fontes, em 1833 já não restava nenhum corpo.

Foi uma triste forma de culminar um encontro entre duas realidades que se tinham misturado apenas 300 anos antes: a dos conquistadores e a dos conquistados, como condenados a perderem até a memória dos seus mortos. As primeiras incursões em Lanzarote e Fuerteventura datam ainda do século XIII, mas foi só em 1496 que o fidalgo Alonso Fernández de Lugo conquistaria Tenerife, a última ilha do arquipélago a capitular, para grande glória da coroa de Castela que, numa década fantástica, acabava de conquistar a Granada de Boabdil e de encontrar um gigantesco continente na rota para as Índias.


Ponho-me de pé. Sacudo o pó esbranquiçado das mãos e joelhos. O meu frontal alumia precariamente as paredes, e o meu coração – mais do que o cérebro – espera encontrar em cada cavidade da rocha um desses xaxos como os descreveu Viera y Clavijo, envoltos nos seus sudários de pele de cabra, deitados sobre macas, sem tocarem no solo. “O processo é o mesmo que poderia ser seguido com um alimento. Os seus corpos eram tratados com ervas de secagem e eram deixados a secar ao sol e ao fumo da fogueira”, explica Mila Álvarez Sosa (ver ilustração, em baixo). Assim, os xaxos canarinos demoravam somente 15 dias até ficarem prontos, comparados com os 70 dias das múmias egípcias. O trabalho era feito por especialistas, outra diferença fundamental relativamente ao Egipto, onde se verificou a prática de necrofilia: “Nas Canárias, se o morto fosse uma mulher, era preparado por mulheres”, esclarece a egiptóloga.

milrado

Os familiares estavam encarregados de “embalar” os defuntos em peles de cabra curtidas e cuidadosamente cosidas entre si. Quanto maior o número de camadas, maior o prestígio social do morto. Alguns fardos funerários encontrados na Gran Canária, onde também foram encontradas múmias, chegavam a ter 12 camadas, que podiam ser ornamentadas por raspagem ou policromia, sendo por vezes descobertos dentro de troncos de árvore vazios e envoltos numa esteira de juncos. A técnica apresenta características semelhantes nas duas ilhas, embora com diferenças importantes que os peritos atribuem ao facto de os restos mortais poderem datar de épocas distintas.

“Durante muito tempo, olhámos para o passado das ilhas como uma circunstância plana”, afirma Teresa Delgado, técnica do Museu Canário de Las Palmas. “Antigamente contemplávamos 1.200 ou 1.800 anos de história como se fossem um único momento. Só agora começamos a fixar uma cronologia.” Com efeito, na Gran Canária, não aparecem só cadáveres em grutas funerárias. Há também enterramentos tumulares, à semelhança do que se observa no Magrebe pré-islâmico, como na necrópole de Arteara. Além de Tenerife e da Gran Canária, nas restantes ilhas não se encontram vestígios de mumificação. Os corpos encontrados poderiam corresponder a uma conservação natural, produzida por condições ambientais.

“Ainda há muitas perguntas por responder. E poucos exemplares para investigar”, lamenta a arqueóloga María García, conservadora do Instituto de Bioantropologia de Santa Cruz de Tenerife. Ela sabe-o melhor do que ninguém. Conhece cada história, cada datação e cada ponto da ilha de onde provêm todos os restos mortais preservados nos caixotes do Instituto. Cuidadosamente classificados, como numa imaculada morgue, os restos mortais de homens, mulheres e crianças continuam a desafiar a eternidade, ocultos no subsolo da capital da ilha. O que aconteceu às mil múmias de Viera y Clavijo? Terão sido uma invenção? “Foi um saque sistemático”, afirma a investigadora. “Durante os séculos XVII e XVIII, as múmias converteram-se num chamariz para as classes cultas europeias. Os nossos xaxos percorreram meio mundo e foram integrados em museus e colecções privadas, chegando a ser transformados em pó, a partir do qual se elaboravam afrodisíacos.”

Guanches

Capa policroma do códice Egerton 2709, o texto G de Le Canarien. Constituída pelas crónicas de Jean Le Verrier e Pierre Boutier, capelães dos normandos Jean IV de Bettencourt e Gadifer de La Salle, esta obra constitui a primeira documentação escrita sobre a campanha de expedição e conquista das Canárias, organizada pelos normandos, abarcando um período de 87 anos, entre 1404 e 1491. British Library/Álbum

Em alguns casos, como Mila Álvarez Sosa afirma no livro Tierra de momias, alguns xaxos acabaram no fundo do mar – lançados borda fora quando, durante a sua viagem até à Península Ibérica ou até à América, as condições ambientais da travessia reactivavam o processo de decomposição, interrompendo o eterno parêntesis no qual se encontravam suspensos. Nenhum arqueólogo descobriu um xaxo no seu contexto”, conta María García com tristeza. “Quando os técnicos chegaram, as necrópoles já tinham sido contaminadas e o possível espólio descontextualizado.”

Não é a primeira vez que viajo para as Canárias em busca de respostas. Há oito anos, desci em rapel pelo barranco de Los Muertos, espreitei nas grutas em busca das mil múmias, reli as crónicas pioneiras de Fray Alonso de Espinosa, Juan Abreu Galindo, ou Gadifer de La Salle e entrevistei peritos para desvendar a origem das populações canárias. Felizmente, hoje em dia, a tecnologia não deixa espaço para dúvidas quanto aos povoadores de ilhas que, durante séculos, pareceram reinos de fantasia.

Em pleno Renascimento, constatou-se que as míticas Ilhas Afortunadas existiam a meio do oceano. Provavelmente no século I da nossa era, navegadores cartagineses, gregos e romanos já tinham chegado às ilhas. No entanto, os europeus que as redescobriram na Idade Média perceberam que, ao contrário do que sucedia nos restantes arquipélagos atlânticos, estas ilhas encontravam-se habitadas e as suas populações pareciam viver isoladas há séculos. A pergunta era inevitável: de onde vinham? Durante muitos anos, as crónicas que mencionavam indivíduos altos e de pele branca abriram terreno a teorias fantasiosas sobre bascos e vikings naufragados, navegadores iberos e celtas e até atlantes sobreviventes.

A sua origem foi um enigma que perdurou durante muitos séculos. Hoje, são precisamente as múmias que nos dão a resposta.

múmias

Corpos por eviscerar. Até agora, a visão mais completa da múmia guanche do MAN era a fotografia captada para a Exposição Universal de Paris de 1878 (à direita). A melena de cabelo que actualmente cobre a sua cabeça encontra-se artificialmente presa ao crânio. As análises demonstram que a antiguidade do cabelo corresponde à do corpo, do século XII ou XIII, mas desconhece-se se lhe pertencia, em que momento se decidiu fixá-lo ao corpo e a razão por que se procedeu assim. Ao contrário dos processos de mumificação egípcios, os xaxos não se encontram eviscerados. A TAC feita à múmia fornece informação importante a este respeito, podendo ver-se nela os órgãos internos: fígado, rins, pulmões e coração (à esquerda). O cérebro também permanece na caixa craniana (em cima). A secagem foi perfeita, não só das vísceras, mas também da pele, da musculatura e dos ossos, graças a uma mistura de ervas e pedras drenantes, com as quais o corpo era tratado e a putrefacção travada, preservando-o ao longo do tempo.

Se o lugar onde me encontro for, realmente, a gruta descrita por Viera y Clavijo, a múmia que nos contempla nestas páginas empreendeu o seu longo périplo a partir daqui. A sua primeira viagem, em 1764, conduziu-a a Madrid, como presente oferecido ao rei Carlos III, para que a corte apreciasse o trabalho realizado pelos guanches no momento de eternizar os seus mortos. Em 1878, foi exibida na Exposição Universal de Paris e, repousou naquilo que hoje é o Museu Nacional de Antropologia, até ser trasladada para o Museu Arqueológico Nacional (MAN).

Numa noite de Junho de 2016, em condições de extrema segurança, fez o mais curto dos seus trajectos, rumo ao Hospital Universitário QuirónSalud de Madrid. Tratava-se de uma visita breve. Iria ser submetida a uma tomografia axial computorizada (TAC). O mesmo exame que, quatro anos mais tarde, em 2020, sob os auspícios do doutor Manuel Maynar e de Conrado Rodríguez, director do Museu da Natureza e Arqueologia (MUNA) de Tenerife, se realizaria na clínica Hospitén Rambla de Tenerife a 21 restos mortais, incluindo 13 múmias adultas e um feto, para analisar as doenças mais comuns da população nativa.

TAC múmia

A tomografia axial computorizada (TAC) feita à múmia guanche no Hospital Universitário QuirónSalud de Madrid fornece pormenores do seu interior que, de outro modo, não poderíamos apreciar sem danificar a sua estrutura. A dúvida mais importante era se, à semelhança dos egípcios, os guanches eviscerariam os seus mortos. 

“Já  submetemos a TAC  diversas  múmias egípcias”, esclarece Javier Carrascoso, chefe associado de Radiologia do Hospital Universitário QuirónSalud. “A iniciativa partiu de Regis López, director da Story Producciones, e de uma colega nossa, a radiologista Silvia Abadillo, no sentido de filmarmos a série de documentários ‘La vida secreta de las momias’, difundida pela plataforma Playz da RTVE. A TAC permitia-nos inspeccionar o interior sem danificá-las. Vicente Martínez, chefe do serviço de Radiologia, acolheu a proposta com entusiasmo.” Com efeito, a TAC permitiu obter dados científicos que deitaram por terra as hipóteses que variavam entre a secagem natural e os processos copiados, ou herdados, do mundo egípcio, a cinco mil quilómetros de distância.

“Foi impressionante”, recorda Javier Carrascoso. “A múmia guanche encontrava-se em muito melhor estado de conservação do que as egípcias. Mantinha toda a musculatura e as mãos e pés eram perfeitos. Parecia uma talha de Cristo de madeira.” O interior proporcionou a informação mais relevante até agora obtida: ao contrário das homólogas egípcias, a múmia guanche não fora eviscerada.

Os seus órgãos, cérebro incluído, tinham secado na perfeição graças a uma mistura de substâncias minerais e vegetais drenantes, cujo objectivo era impedir a proliferação bacteriana e refrear assim a putrefacção. “No interior, podia observar-se a presença de lapilli, introduzidos pelo recto. Encontravam-se também em duas regiões intercostais.”

xaxo, igualmente analisado através de técnicas de radiocarbono, forneceu ainda mais dados: era um macho alto, saudável, possivelmente de uma elite, tendo em conta o bom estado das mãos e pés e os dados nutricionais obtidos a partir da sua dentição. Teria 35 a 40 anos no momento da sua morte, ocorrida entre os séculos XII e XIII, muito antes de os castelhanos chegarem e perturbarem a paz da sua ilha. A coluna vertebral apresentava um dismorfismo muito comum entre as populações norte-africanas e as suas feições eram igualmente relacionáveis com o continente vizinho.

Há vários anos que Rosa Fregel, investigadora do Departamento de Bioquímica e Genética da Universidade de La Laguna, em Tenerife, estuda os nativos das ilhas Canárias, tendo aplicado a 40 indivíduos provenientes de todo o arquipélago as mais recentes técnicas paleogenómicas que aprendeu na  Universidade  de  Stanford. O DNA não engana. Por isso, os estudos genéticos que comprovam um parentesco com as populações norte-africanas já não deixam lugar a hipóteses: os primeiros povoadores chegaram às ilhas vindos do Magrebe.

Guanches

Clique na imagem para ver detalhes. Ilustração: Almudena Cuesta. Fontes: Leonardo Torriani e reconstituição de Francisco Peraza (reconstituição da embarcação); Plínio, O Velho, e Governo das Canárias (Topónimos, Endónimos e Gentílicos)

Isso não significa, porém, que tivessem vindo todos da mesma região, nem que tivessem vindo no mesmo momento: “Descobrimos que as populações de cada ilha têm características peculiares, o que nos impede de classificar a população do arquipélago como uma entidade homogénea”, avisa.

A etimologia, a epigrafia e as fontes etno-históricas já sugeriam uma origem africana que, dependendo dos interesses políticos, ora se ignorava ora se apregoava. Mas a ciência oferece agora uma verdade imutável. Séculos antes da chegada do islão, o Norte de África encontrava-se povoado por diversas tribos númidas pertencentes a um tronco comum. Gregos e romanos chamaram a esses povos berberes. Autodenominavam-se amazigh, “homens livres”. Eram grupos populacionais de agricultores e, sobretudo, de criadores de gado que exportaram o seu modo de vida para o arquipélago vizinho, para onde tiveram de transferir os seus meios de subsistência e os seus animais domésticos. Este facto inquestionável gera, no entanto, novas perguntas. Quando se fixaram aqui? Por que motivo abandonaram os seus locais de origem? E, sobretudo, como alcançaram ilhas a 100 quilómetros da costa mais próxima, sem que exista qualquer prova arqueológica de que soubessem navegar e quando os próprios cronistas afirmaram que não conheciam a navegação?

“Agora que possuímos uma fotografia do passado, talvez devamos perguntar o que estava a acontecer no Norte de África na época em que ocorreu uma mudança dos métodos de cultivo, dos meios de produção ou do tipo de enterramento, no arquipélago”, sugere Teresa Delgado. “Sempre se falou em vagas migratórias, mas talvez se tratasse apenas de grupos de famílias chegados em diferentes épocas. Talvez os acontecimentos no Norte de África, desde o domínio romano à chegada do islão, provocassem esse êxodo do continente.”

Universidade

Na Universidade de La Laguna, a geneticista Rosa Fregel (à direita) extrai um dente de uma múmia encontrada em Tenerife no século XVIII, a fim de rastrear, com recurso às mais modernas tecnologias paleogenómicas, a origem das comunidades que povoaram o arquipélago canarino.

O momento em que acontecem as vagas migratórias e o motivo a que obedeceram são as duas perguntas mais importantes do povoamento das Canárias. Quantas pessoas são necessárias para gerar uma população estável no tempo? A ciência e as provas encontradas noutros povoados fornecem números interessantes: três casais geram 23% de probabilidades de um povoado prosperar. Com 14 casais, a taxa de sucesso eleva-se a 81%, assevera José Farrujia, professor da Universidade de La Laguna. As únicas certezas é que sete das oito ilhas têm estado habitadas de maneira constante, pelo menos, nos últimos dez séculos, que as suas populações partilham características e elementos identitários, que possuem uma linguagem com tronco comum (o líbio berbere) e que as manifestações cosmogónicas e rupestres descobertas nas ilhas são semelhantes às representações encontradas no Saara Ocidental, no Tassili argelino ou no Atlas marroquino, segundo o especialista.

Até aqui, reina o consenso. Os historiadores canarinos respondem de maneira diferente às outras três grandes perguntas: como chegaram, quando chegaram e por que vieram? Para Antonio Tejera Gaspar, catedrático de Pré-História da Universidade de La Laguna, não há lugar para dúvidas: o povoamento das ilhas é um fenómeno relativamente recente, tendo ocorrido entre os anos 25 a.C. e 25 d.C. no contexto das revoltas berberes contra Roma. “As leis romanas aplicavam como castigo o degredo para ilhas”, garante, baseando-se nas fontes historiográficas. “Todo o Norte de África era um barril de pólvora desde a queda de Cartago.” À sua tese subjaz a lenda das línguas cortadas, recolhida por Gadifer ou Abreu e Galindo, segundo a qual um rei, um legado ou um pretor cortava a língua dos insurgentes como castigo da sua sublevação, desterrando-os para as ilhas. Tejera Gaspar considera que esse rei foi Juba II, governador da Mauritânia durante o reinado de Augusto.

Para muitos historiadores, Juba II foi o grande descobridor das Canárias. Filho do rei vencido da Numídia, Juba I, foi educado em Roma e casado com Cleópatra Selene, única herdeira dos malogrados Cleópatra e Marco António. Numa tentativa de assimilação, Augusto destacou este casal de origem africana e educação romana para o governo da Mauritânia, um vasto território que se estendia de Tunes ao Saara Ocidental. E Juba, erudito, escritor e naturalista, dedicou-se a explorar o Norte de África de onde era originário e a compilar a informação num volume, De Libia, infelizmente desaparecido.

“A sua crónica perdeu-se, mas Plínio, o Velho, conta-a na sua História Natural. A resposta esteve ali todo o tempo. Juba organizou uma expedição às Ilhas Afortunadas em 46 a.C. É a primeira que menciona as ilhas, referindo-se a uma delas como Canária e falando das principais características de cada uma, bem como dos animais que as habitam. E se não faz referência aos seus povoadores, é porque não estão povoadas”, sublinha Tejera Gaspar. “Seria então, a partir do século I, que foram povoadas – não voluntariamente, mas como desterro para os insurrectos.”

Esta hipótese, já sugerida pelos primeiros cronistas, é minuciosamente analisada por Tejera Gaspar no seu livro Bereberes contra Roma, escrito em co-autoria com Alicia García. “Não é possível que fosse uma colonização orquestrada porque as ilhas não oferecem aos povoadores nada que não existisse na sua terra de origem: não há grandes riquezas, nem sequer metais.”

A descoberta feita em 2012 em La Calera, no ilhéu de Lobos, entre Fuerteventura e Lanzarote, permite uma nova visão. O achado fortuito de vestígios de cerâmica trouxe à luz do dia algo até ao momento inédito nas ilhas: materiais não indígenas, vasilhas fabricadas no vale do Guadalquivir, lucernas de terra sigillata e anzóis e arpões de metal. Estes objectos utilitários eram importados e relacionados com a dimensão comercial do Mediterrâneo Ocidental e do estreito de Gibraltar. Como chegaram aqui essas peças?

ilhéu dos lobos

Em 2012, ocorreu um achado fortuito na ilha de Lobos, entre Fuerteventura e Lanzarote, que revelou um povoado inédito em todo o arquipélago. Todo o material arqueológico encontrado era importado e datava de cerca do século I, fazendo supor a existência de uma fábrica para a elaboração da apreciada púrpura de Tiro, a cor dos imperadores romanos.

Os vestígios de concheiros e a tradição da zona atlântica levaram os investigadores a propor uma nova teoria: o povoado corresponderia a um estabelecimento temporário para a exploração de um molusco (Stramonita haemastoma), a partir do qual se obtinha a púrpura de Tiro, a tintura mais apreciada desde o tempo dos fenícios, cuja utilização era reservada aos imperadores romanos. As Canárias já tinham então algo valioso para oferecer aos colonizadores. A arqueóloga Carmen del Arco, investigadora do povoado de Lobos, considera que o achado obriga a rever o isolamento que habitualmente se considera envolver as ilhas. “Uma fábrica de púrpura demonstra que o arquipélago se encontrava na órbita económica do mundo romano, que o território já fora percorrido, que era conhecido e que os seus navios poderiam ser utilizados para transportar novos stocks biológicos: animais, plantas e pessoas.”

A datação que situa o povoado num período entre a época da República tardo-romana e o governo de Tibério, entre os séculos II a.C. e I d.C., aponta para um novo arco cronológico que pode coexistir com as teses de Tejera Gaspar, sem considerar o desterro a única causa de povoamento e sem descartar uma presença ainda mais antiga nas ilhas. “Há cronologias que expressam uma ocupação precoce, anterior ao início da nossa era, em diversas ilhas”, afirma Del Arco. “Precisamos de ponderar que, quando acontece essa exploração de recursos pela mão dos romanos, já havia população.”

cronologia

Clique na imagem para ver detalhes.

A tese encaixa no modelo defendido por José Farrujia, isto é, de uma população amazigh que chegou ao arquipélago em dois momentos distintos. “Temos sítios arqueológicos em Lanzarote do primeiro milénio antes da nossa era. Em Tenerife, foram obtidas datações do século VI a.C. e em La Palma do século III a.C. Além disso, faz todo o sentido pensarmos que as ilhas seriam povoadas de leste para oeste, começando pelas mais próximas da costa africana até às mais distantes.”

O que demonstra isto? “Que o povoamento das ilhas é mais antigo do que se pensa”, responde Jose Farrujia. “Que as populações não chegam numa só vaga, nem vindas de um único ponto de origem, mas em momentos diferentes e a partir de lugares diferentes nos actuais Saara, Marrocos, Argélia e Tunísia. Que evoluíram de maneira diferente, porque provinham de sítios diferentes e tiveram muito tempo para fazê-lo. E, sobretudo, que não dependeram de outros. Podem ter chegado voluntariamente, em embarcações como as que se utilizavam na costa africana.”

O investigador alude às representações rupestres de barcos, semelhantes aos hippoi fenícios, encontradas nas diversas ilhas do arquipélago, bem como às fontes etnográficas. Leonardo Torriani, engenheiro italiano contratado pelo rei Filipe II em 1584 para construir o molhe da ilha de La Palma, chegou a descrever um barco feito de madeira de dragoeiro. “Nada nos diz que não soubessem navegar. Terão existido embarcações, mas os materiais perecíveis não deixam vestígios”, lamenta Jose Farrujia. Menciona também tipos diversos de grafia para defender a sua hipótese de povoamentos em épocas distintas: “Em Lanzarote e Fuerteventura, encontrámos escritos rupestres a que chamamos escrita líbia canarina. Trata-se de um líbio berbere, com tradução em latim. Remetem para uma população amazigh já romanizada, que utilizava os dois alfabetos.”

Para alguns investigadores, a teoria de Jose Farrujia levanta um problema: a datação por radiocarbono de organismos com vida longa é inconclusiva. Uma datação baseada em restos de carvão nada nos diz sobre a pessoa que acendeu aquele fogo, mas apenas sobre a árvore da qual foi extraída a lenha. E os restos mortais humanos encontrados nas Canárias não remontam além do século IV d.C., garante Conrado Rodríguez. De momento, evidentemente, uma vez que, ao contrário de outros cenários em que a arqueologia é uma ciência exacta, nos quais conhecemos dinastias que perduraram quatro mil anos ou deciframos hieróglifos, no arquipélago das Canárias tudo é novo e está em constante mudança. Achados sepulcrais, restos mortais, ídolos enterrados, painéis com provável significado astronómico... La Palma, Tenerife, Gran Canária, La Gomera... O mais entusiasmante é que as descobertas ainda só estão a começar.

La Gomera

Ilustração de dois Indígenas De La Gomera, Leonardo Torriani, "Descripción e Historia del Reino de las Islas Canarias", Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra.

Quem somos? De onde vimos? Feitas as contas, tudo responde à demanda das origens. Uma resposta que ainda poderia permanecer oculta numa gruta por explorar, numa necrópole ainda mais antiga, numa nova gravura ainda por descobrir. A topografia canarina, feita de barrancos, escorrências de lava, tubos vulcânicos e areias deslocadas pelo vento, contribui para a invisibilidade e para o segredo.

Apago o meu frontal e refugio-me no silêncio absoluto desta gruta que me acolhe, como se fosse um útero, sem frio, sem calor, sem medo. Vim em busca de respostas e levo comigo o presente de que ainda sobram perguntas. Os meus companheiros, todos canarinos, põem-me à frente um gánigo, uma malga de cerâmica igual à que os antigos guanches utilizavam para promessas colectivas – os pactos de colacia. Se beberes leite com outra pessoa, transformas essa pessoa em teu irmão colaço, e o compromisso assumido é sagrado. Neste caso, só me fazem uma pergunta: Juras não revelar a ninguém a localização desta gruta? Na escuridão, não consigo ver os olhos das outras pessoas, que certamente brilham com o mesmo entusiasmo que os meus. Ouve-se apenas a minha voz, para sempre reunida às outras vozes que, durante séculos, povoaram a gruta: sim, juro.