Em 1896, o físico Wilhelm Röntgen conseguiu realizar o primeiro raio X a um tecido humano. Escassos quatro meses depois, em Frankfurt, a tecnologia foi aplicada à egiptologia com a execução de raios X das múmias de um gato e de uma criança. A ciência da radiologia e a egiptologia têm caminhado de braço dado. A tomografia axial computorizada (TAC) é outro bom exemplo: inventada em 1972, foi rapidamente absorvida pelos estudiosos do Antigo Egipto e, cinco anos depois, em Toronto, foi feita a primeira TAC a um sarcófago egípcio. “A aplicação da radiologia à arqueologia tem sido inestimável”, diz Luís Raposo, director do Museu Nacional de Arqueologia (MNA).

Avançamos para os dias de hoje. Às instalações do IMI (Imagens Médicas Integradas) em Lisboa, estão prestes a chegar três distintos pacientes e o corrupio de investigadores e jornalistas antecipa um momento especial. Será uma das primeiras aplicações de técnicas de radiologia avançada à análise de múmias egípcias em Portugal, no caso as três que compõem a colecção do MNA. No centro de imagem tradicionalmente tranquilo, as próprias salas de exames costumam ter paisagens descontraídas no tecto para acalmar os doentes. Neste caso, porém, nem a mais tranquila paisagem conseguiria acalmar as hostes.


 

O Lisbon Mummy Project foi patrocinado pelo IMI, que disponibilizou esta unidade e os equipamentos, e pela Siemens, que forneceu o transporte e a consola de pós-processamento digital avançado. O estudo foi dirigido pelos médicos radiologistas Carlos Prates, Sandra Sousa e Carlos Oliveira, envolvendo ainda uma equipa de técnicos de radiologia coordenada por Fernando Cardoso. Participaram ainda os egiptólogos Luís Araújo, do Instituto Oriental da Faculdade de Letras de Lisboa e Salima Ikram, da Universidade Americana do Cairo, o bioarqueólogo Álvaro Figueiredo, do University College de Londres, e Luís Raposo, director do MNA.

Em Setembro, o público português tomou conhecimento das histórias de Pabasa, o sacerdote, Irtieru, a múmia do Terceiro Período Intermediário e da qual só se conhece o nome, e uma terceira múmia sem sarcófago e sem registo biográfico. Naquelas escassas horas, foram produzidas 90 mil imagens de base das três múmias através “de um método não intrusivo, que não destrói nenhum registo, como sucedia com as anteriores técnicas, e que produz informação sem abrir o sarcófago”, diz Luís Raposo. O director do MNA sabe bem do que fala: a colecção de esqueletos do Mesolítico do MNA está quase toda desdentada, pois, durante décadas, utilizavam-se os dentes para exames antropológicos e arqueométricos. Ora, a TAC permite não violar o sarcófago e o facto de os pacientes estarem mumificados possibilita aumentar o tempo e o nível de radiação a que estão sujeitos”. Daí resulta a grande qualidade das imagens obtidas. “É o contrário do que se faz para um paciente vivo”, explica João Seabra, da Siemens.

A equipa de Carlos Prates processou milhares de imagens e por ora só existem impressões preliminares. “Estamos a trabalhar com resoluções de TAC praticamente inéditas em estudo de múmias, sobretudo para tecidos e partes moles”, defende o radiologista. Desbravase assim uma semiologia nova e desconhecida, ainda por caracterizar, que exige prudência. Mas é difícil mostrar contenção quando três indivíduos nascidos há cerca de 2.300 anos ganham vida nos monitores do centro de imagem.

Passaram dois meses desde as primeiras operações ou, para usar a expressão do Clube Arkeo, a unidade educativa do MNA, desde que “as múmias foram ao médico”. Regressamos ao IMI para um ponto de situação. No ecrã do computador, sucedem-se as imagens. Os técnicos vão enquadrando a informação nesta viagem desde o exterior (o caixão) até ao nível mais interior (o esqueleto do indivíduo), passando pelas camadas de linho que o enfaixavam, os resíduos dos materiais utilizados na desidratação e preparação do corpo, os vestígios orgânicos e, por fim, a estrutura óssea.

múmia

A representação de Pabasa evidencia os olhos artificiais e o desgaste dos dentes. O linho forma um manto etéreo.

O ecrã imobiliza-se numa estranha imagem de Pabasa, classificado como M2 (múmia 2). Há uma reminiscência da capa de um qualquer álbum de uma banda de heavy metal, mas trata-se, na verdade, de Pabasa numa TAC frontal. Os estranhos olhos que nos fitam são os elaborados pedaços de vidro ou pedra que funcionariam como olhos artificiais para o Além. E ficam bem evidentes também as marcas de atrição dos dentes, o desgaste dentário das coroas provocado pelo contacto com outros dentes e por uma dieta com alto teor de areias. Como prevenira o bioarqueólogo Álvaro Figueiredo, “estes indivíduos fornecem informação minuciosa sobre o estilo de vida no Antigo Egipto”.


 

Desenganem-se, porém, aqueles que esperavam ver emergir deste projecto uma história de crime e mortes violentas no Antigo Egipto. Os exames não mostraram, para já, causas evidentes de morte, embora a M1 (a múmia sem nome) mostre anomalias ósseas e musculares ainda não esclarecidas. Em contrapartida, é possível caracterizar morfologicamente cada um dos três indivíduos do sexo masculino. M1 viveu no período ptolemaico, teria 40 a 50 anos e mediria 1,66m. Denota osteoartrose associada a uma escoliose. Provavelmente, sentiria dores na região lombar. Pabasa (a M2) foi mumificado com requinte. Viveu no período tardio ou ptolemaico. Teria 30 a 40 anos e mediria 1,62m. Acusava uma lesão da cúpula do astrágalo esquerdo (osso do tornozelo), que lhe causaria dor e períodos de claudicação. Por fim, Irtieru (a M3), do Terceiro Período Intermediário. Teria apenas 20 a 30 anos e mediria 1,71m. Mostra alterações focais das cabeças femurais que sugerem conflito femuro-acetabular, anomalia congénita com limitação de amplitude do movimento das ancas e tendente a evolução artrósica precoce.

A mumificação era comum. Luís Araújo gosta de lembrar que “os egípcios fizeram algo que nenhuma outra cultura fez: para viverem eternamente, transformaram os homens em deuses”. Preservavam o corpo para a vida no Além, e o ritual reconstituía os sentidos do defunto.

As três múmias passaram por processos semelhantes de preparação dos corpos, com algumas variantes. Em todas, o cérebro foi extraído pela cavidade nasal e o resto da evisceração ocorreu através da zona abdominopélvica, da esquerda para a direita. “A orientação não é inócua”, diz Luís Araújo. “Da esquerda para a direita, imita-se a escrita, tal como a representação das estátuas seguia essa orientação.” Há indícios de tratamento com natrão para desidratar os corpos, resina (um eficiente bactericida) e argila do Nilo. O linho preenchia os espaços livres. “Os órgãos eviscerados terão sido enfaixados em quatro pacotes viscerais, depois reintroduzidos no corpo, como mandava a tradição a partir da XXI dinastia”, refere Álvaro Figueiredo. “Depois, o sacerdote tocaria na boca da máscara e recitaria a expressão: ‘Eu restauro o teu poder de fala, de visão, sexual e de audição’”, diz Luís Araújo.

No Antigo Egipto, era comum sepultar os mortos com objectos destinados a auxiliá-los na sua vida do Além. Neste caso, porém, os olhos artificiais são os artefactos mais elaborados já confirmados pelos exames. Na verdade, os embalsamadores da XXI dinastia caracterizaram-se precisamente por um cuidado especial dedicado aos olhos, pelo revestimento subcutâneo do defunto e pela reposição das vísceras enfaixadas dentro do corpo, características que encontramos em algumas destas múmias.

O s resultados continuarão a ser produzidos nas próximas semanas. Das respostas, porém, emergem novas perguntas.

Na sala do piso inferior do IMI, Carlos Prates e a sua equipa continuam a dissecar o puzzle tridimensional. Habituaram-se a tratar familiarmente as três múmias e rejubilam com cada descoberta, que contribui para a história da saúde nesta civilização, fornecendo informação sobre a morte mas sobretudo sobre a vida destes três pacientes egípcios. Afinal, não foi por acaso que, no início do projecto, a sala foi jovialmente baptizada como per-ankh. A casa da vida.