No meio da derrocada monárquica no 5 de Outubro de 1910, um homem, mais do que qualquer outro, sentiu o amargo paladar da derrota. Henrique de Paiva Couceiro, herói militar dos últimos anos da monarquia, foi um dos poucos oficiais militares que se bateu até ao fim, defendendo o trono, combatendo a inexorável chegada da República.
A sua imagem de guerreiro corajoso, estratega respeitado e político feroz foi tal que, quando chegou o dia 6 de Outubro, o Governo Provisório que planeava a transição de regime foi ter com ele, queria saber como se sentia em relação a tudo aquilo. Couceiro foi diplomático: reconheceria o que o povo reconhecesse em eleição. Não queria divisões, e caso houvesse uma invasão estrangeira para um retorno à monarquia, assim sendo estaria na defesa de Portugal. Mas exigia um plebiscito à República. A população devia mostrar, em votos, que queria a mudança.
O regime republicano não lhe fez a vontade. Houve eleições em 1911, mas para constituir o primeiro parlamento, consumando o facto de que a República chegara para ficar. Couceiro não reconheceu estes resultados. Demitiu-se do seu cargo de oficial, em ruptura com as chefias militares e fiel ao escudo de armas que defendera durante quase toda a carreira, e entregou a espada de comando.
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Henrique Mitchell de Paiva Cabral Couceiro, chefe da contra-revolução monárquica na década de 1910.
Porém, naquele Junho de 1911, alertou: saía do país e iria conspirar contra a República. Que o prendessem, se quisessem. Ninguém lhe ligou. Subiu então para a Galiza, e quatro meses depois cumpriu a sua promessa: entrou pelo distrito de Bragança à frente de uma coluna militar e tomou Chaves. Simbolicamente, hasteou a bandeira azul e branca da Monarquia na varanda da câmara municipal. Três dias depois, chegaram as forças republicanas e expulsaram novamente Paiva Couceiro para a Galiza. Uma vitória, mas com um aviso: a monarquia ainda mexia.
CONTINUAM AS CONSPIRAÇÕES… E SURGE SIDÓNIO PAIS
Couceiro não desarmou e continuou durante os anos seguintes aquilo que designou por “incursões monárquicas”. Em 1912, tentou outra, rumo a Chaves, mas desta vez foi derrotado de imediato. Nesse ano, é julgado à revelia pela participação no primeiro golpe e condenado. No entanto, em 1915, é novamente contactado para trabalhar para a República, no cargo de governador de Angola. Recusou, pois estava decidido a restaurar o regime antigo, um rei no trono.
Da Galiza, lançava operações de propaganda, artigos e poemas em jornais regionais, valorizando a figura do monarca e, claro, atacando a República. A oportunidade de mudar as coisas surgiu em 1917, quando Sidónio Pais sobe ao poder. Figura quase messiânica pelo carisma que o projectava, e aproveitando um momento em que Portugal vivia um enorme descontentamento aumentado pela participação na Primeira Guerra Mundial, Sidónio instaura uma ditadura militar e convida para os cargos de governo monárquicos em vez de republicanos. Suspende o congresso, governa por decreto e começa a alterar a primeira constituição republicana de 1911. Era a República Nova, em que o líder do Estado, no caso um Presidente, tinha um poder que só encontrava paralelo na nossa História no absolutismo monárquico.
O estado de graça durou um ano: o exército português é chacinado na batalha de La Lys na Grande Guerra e a contestação tenta substanciar-se em vários golpes, que levam Sidónio Pais a recorrer à repressão mais dura. O próprio Sidónio é assassinado em Dezembro de 1918, na estação do Rossio, por um republicano. No entanto, mostrara que a Primeira República estava frágil, fraca. Se havia momento ideal para lhe dar um golpe definitivo, era este. E com o beneplácito que Sidónio Pais dera aos monárquicos, estes foram criando para si mesmos uma certa autonomia ilegal: algumas leis do governo central não foram aceites ou aplicadas em cidades como o Porto, por exemplo, devido à resistência monárquica local.
Paiva Couceiro, que em 1918 estava em Portugal, na zona de Oeiras, era constantemente requisitado para fazer alguma coisa em relação a este ambiente de desordem e falta de tranquilidade que se abatera sobre o país. Todo este movimento subterrâneo não se destinava, inicial e directamente, a fazer regressar a monarquia. Couceiro queria fazer o tal plebiscito que falara já em 1911. Só em caso de falhanço é que se seguiria esta mudança radical. No entanto, D. Manuel II, exilado, desaprovava publicamente qualquer golpe contra a República e endossava o seu apoio aos governantes do país. Mesmo com a morte de Sidónio Pais, estes continuavam a ser militares, reunidos numa Junta. Ou seja, a ditadura continuava, com centenas de prisioneiros políticos e as mais importantes figuras republicanas exiladas no estrangeiro.
Com a situação em Lisboa, a Norte começou a ganhar tracção a ideia de separar o país e romper com a capital, formando um novo governo. O oficioso quartel-general monárquico instalou-se no Hotel Universal, no Porto. A intenção não era a de realizar eleições, mas sim uma “Restauração”, à boa maneira de 1640. O insólito é que tudo se realizava às claras: as discussões decorriam em salas abertas e mesmo Couceiro, em Oeiras, recebia abertamente conspiradores. Era algo que se sabia, que se notava: quando o governo central enviou o Ministro da Guerra, Silva Basto, monárquico, a saber o que se passava, este foi preso pela GNR portuense, num movimento tão descarado quanto blasé. A revolução ficaria conhecida na História como “Monarquia do Norte”.
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Ilustração "A Intrusa", publicada n' O Século Cómico a 24 de Fevereiro de 1919
A MONARQUIA DO NORTE
Várias apologias monárquicas foram surgindo na imprensa, abrindo o caminho. O rei não dava o seu apoio, mas também não se opunha. À volta do oficial militar, surgiam outras forças que o empurravam a lançar-se: o Integralismo Lusitano, movimento que defendia uma monarquia pura, tradicionalista e não parlamentar, mostrara o seu apoio, mas com a ressalva de que se calhar… era melhor preparar a coisa com outro vagar, outra experiência.
No entanto, Couceiro não hesita: a 19 de Janeiro, dá sinal às tropas para que avancem em Lisboa e Porto. Logo nesse dia, é proclamada a Monarquia nesta última cidade. A bandeira monárquica hasteada na câmara municipal, o antigo hino da Carta Constitucional cantado a plenos pulmões e uma revista aos soldados pelo próprio Couceiro para marcar a ocasião.
Houve proclamações noutros ponto do país, mas principalmente a Norte. Em Lisboa, e aliás em maior parte de Portugal, o golpe levou a confusões, equívocos. Muitas tropas mantiveram-se neutras, a população não percebia muito bem o que se passava. Alguma populaça tinha saído à rua, mas ninguém assumiu as responsabilidades de comando e liderança. Logo, na prática, de Aveiro para baixo, a Monarquia não fora proclamada.
O Porto agia, no entanto, com se estivesse num país à parte. Durante a tarde, tomou posse a Junta Governativa do Reino, abençoada pelo Bispado do Porto, e foi criado o Diário da Junta do Reino, onde seriam publicadas as novas leis que regeriam Portugal. Rapidamente foi recuperada a Carta Constitucional, o documento legal fulcral nas leis portuguesas desde 1826 até à queda da Monarquia e também restabelecidas relações com o Vaticano, cessadas com a subida ao poder dos republicanos, que eram anti-clericais. Os monárquicos iam tomando lentamente da população: no Norte e Beira interior, era-se maioritariamente Realista. Trás-os-Montes dividia-se entre Vila Real e Chaves, esta última leal à República; Ovar era a fronteira Sul da Monarquia do Norte.
Uma guerra civil começava a ser possível, com ambos os lados a olharem para Coimbra como a cidade que podia decidir a contenda: quem a tomasse, estaria em melhor posição de vencer.
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A REACÇÃO REPUBLICANA
Os republicanos não ficaram a ver tudo isto com serenidade. No dia 19 de Janeiro foi realizada de imediato uma reunião do governo liderado pelo sucessor de Sidónio Pais, Tamagnini Barbosa. Este, astuto, chamou os republicanos – perseguidos durante o governo sidonista – a ajudar na situação. Estes, claro, tinham nos monárquicos os seus opositores naturais e não queriam ver Portugal governado por um rei novamente. Dá-se ordens para se armar o povo, convocam-se manifestações para a formação de brigadas populares de combate e de soldados que queiram combater a Monarquia. Os estudantes universitários formaram um grupo à parte, mais tarde conhecido como Batalhão Académico. Este foi importante na primeira grande refrega, em Monsanto, onde as forças monárquicas foram derrotadas. Golpe importante para Paiva Couceiro, que perdia o domínio da capital.
O Batalhão de Lisboa juntou-se ao de Coimbra e com algumas forças militares da República, foram avançando para a zona entre Aveiro e Porto. Em primeiro, Viseu regressa às mãos republicanas, abrindo assim também a ocupação de todo o Centro Interior monárquico. Depois, avança-se para Trás-os-Montes: a Régua cai de imediato.
Sabendo disto, algumas forças monárquicas no Porto começaram a pensar duas vezes e, traindo a causa, passaram para o lado republicano. Este dominava todo o lado logístico da guerra civil e tinha com isso uma importante vantagem. Para fazer face, por exemplo, ao apoio aéreo que a República dava aos seus solados, Paiva Couceiro tentou comprar um aeroplano em Espanha. Porém, ficou sem tempo: a 13 de Fevereiro, estava tudo terminado. O lado republicano usou os membros do Corpo Expedicionário Português regressados da Grande Guerra, dando um contributo importante. No entanto, pode dizer-se que os monárquicos não foram uma ajuda pequena à vitória dos seus adversários: a Junta do Reino fez sair uma lei que obrigava a população a entregar ao Banco de Portugal as notas de 20 mil, 50 mil e 100 mil réis, recebendo em troca 10% do valor em notas já de si sobretaxadas. Ora, a população percebeu que estava-lhe a ser pedido que entregasse 90% das suas posses sem contrapartida; e além disso, se a República vencesse, também perderiam divisas que continuariam válidas se a manutenção da ordem e a derrota monárquica imperassem.
Perdido o apoio popular, tudo se precipitou para os apoiantes da causa real: a 13 de Fevereiro, há uma revolta republicana no Porto. Paiva Couceiro encontrava-se fora da cidade a inspeccionar tropas e, quando informado, acorre rapidamente à cidade. Pelo caminho, os soldados são informados pela população de que o Porto caíra e os militares desligam-se com facilidade da causa monárquica. É o fim da Monarquia do Norte, com a queda do Porto. Vários participantes foram presos, julgados e quase todos condenados ao degredo.
Pelo grau de violência que durou pouco menos de um mês, este período da nossa História ficou conhecido como “Reino da Traulitânia”. Uma outra consequência foi o fim definitivo do Sidonismo no governo, voltando Portugal a ser uma democracia popular. Isto só terminaria em 1926, quando um novo golpe militar inaugura um longo período de ditadura.