Contrariando o senso comum, nem tudo está escavado no sítio arqueológico de Milreu, berço da arqueologia moderna portuguesa. Um projecto de restauro está a revelar muito sobre os artistas da antiguidade.

Em 1963, César dos Santos, um dos melhores jornalistas algarvios, lamentava: "quem compreende a alma das ruínas? Quem quer que seja pode trazer pedrinhas romanas" das ruínas. O repórter não poderia adivinhar que Milreu já estava a mudar. E que o melhor estava para vir.

Quando chega o Verão, um em cada quatro portugueses desloca-se para sul para as merecidas férias no Algarve. Muitos factores contribuem para que este seja um destino de veraneio de eleição, mas, se fosse necessário distinguir apenas um, ele seria o mar e tudo aquilo que proporciona. Nas esplanadas, as famílias aguardam vez para saborear sardinhas assadas no carvão, e o cheiro inconfundível a peixe grelhado mistura-se com os odores da praia. A vocação turística da região é relativamente recente, mas a relação com o mar é muito antiga.

A uma dezena de quilómetros de Faro, uma recente intervenção de conservação e restauro no notável conjunto de mosaicos da villa romana de Milreu colocou a descoberto elementos que não eram observados há várias décadas, devolvendo ao sítio arqueológico todo o seu esplendor. As primeiras referências a Milreu chegam-nos do século XVI através do humanista André de Resende. Este frade dominicano pensou ter encontrado em Milreu as ruínas da antiga cidade romana de Ossonoba, actual Faro, mas seria necessário aguardar vários séculos para ouvirmos falar de novo deste lugar na freguesia de Estoi.

Estácio da Veiga, um dos pais da arqueologia portuguesa moderna, iniciou em 1877 uma campanha arqueológica com a duração de um mês que acabaria por revelar uma villa romana de dimensões impressionantes, com cerca de três mil metros quadrados de área construída, remetendo qualquer actual mansão algarvia para um simples anexo de arrumos na época clássica. Estácio da Veiga, tal como André de Resende, assumiu que encontrara a Ossonoba perdida.

No levantamento efectuado na “Carta Archeologica do Algarve” e nas “Memórias das antiguidades de Mértola”, Estácio da Veiga deixou-nos um trabalho exaustivo, baseado no método científico, afastando-se em definitivo da antiga visão da arqueologia como simples coleccionismo de curiosidades e artefactos. O seu testemunho ficou registado num artigo do “Diário de Notícias” de 1876. “Desde a margem direita do rio Guadiana até à torre de Marim, e dali para o Milreu, recorrendo aos meus apontamentos, poderei citar todos os pontos em que se manifestam vestígios de construções romanas.”

Milreu

Fotografia do templo de Milreu durante as escavações de Estácio da Veiga de 1877. Numa época em que o registo de imagem dava os primeiros passos, Estácio da Veiga teve o privilégio de ter nas suas escavações um fotógrafo local, Xavier de Meirelles. Em cima, uma reconstituição da possível configuração do templo de Milreu.

As evidências arqueológicas colocam as origens de Milreu no século I d.C., acompanhando a expansão económica da província da Lusitânia. Milreu enquadra-se no modelo de povoamento e de organização do território do Império Romano. Numa economia monetária em que as cidades eram os pólos do comércio, existiam inúmeras quintas agro-pecuárias estabelecidas na proximidade das principais vias de comunicação que abasteciam os centros urbanos. Esta rede bem estruturada permitiu que o império subsistisse por cerca de 500 anos, tantos como os que medeiam entre a descoberta do Brasil e a actualidade. No modelo inicial destas villae, apelidadas de rústicas, os seus proprietários dividiam o tempo entre a cidade e o campo. Dessa forma, as construções consagradas ao uso privado eram normalmente menos sumptuosas.

A villa era uma fonte de rendimento para as elites urbanas, servindo ao mesmo tempo de espaço de lazer, ou de otium na designação latina. Já na Antiguidade clássica, o conceito de casa de fim-de-semana ou férias era popular entre as classes mais abastadas. Mas a ideia da villa como expressão do modelo de cidade no campo é algo que só mais tarde se consolidou com a lenta transformação das estruturas do Império.

O século III marca uma ruptura no paradigma até aí estabelecido. As pressões exercidas pelas incursões germânicas nas fronteiras do Império e a incapacidade crescente para as conter alteraram lentamente o papel da cidade como elemento central da economia de Roma. Enquanto a cidade perdia protagonismo, tornando-se insegura devido aos saques e destruição das suas infra-estruturas pelos novos invasores, no campo, as villae tornam-se comparativamente um porto seguro, assumindo um estatuto de poder e de afirmação para os seus proprietários. A expressão máxima de opulência foi atingida no século IV d.C., como se pode comprovar em Milreu. Ao passarem a ser residências permanentes das classes privilegiadas e protegidas por pequenos exércitos privados, estas enormes quintas eram também local de refúgio para uma população em fuga dos principais centros urbanos. A contrapartida pela segurança encontrada criou novas formas de dependência que serviram de base à alvorada de um novo modelo social e económico apelidado de feudalismo. “Ontem como hoje, há sempre quem consiga prosperar em tempos de incerteza”, desabafa o professor João Pedro Bernardes, que estuda Milreu há 20 anos.

Milreu

Ilustração de Anyforms Design, baseada em reconstituição de T. Hauschild (1964).

Regressemos a finais do século XIX e imaginemos a seguinte cena. Com todo o cuidado, munido de uma escova de cerdas macias, um arqueólogo retira delicadamente a terra daquilo que parece ser o que resta de um busto de mármore com as feições de uma mulher: não o sabe ainda, mas a mulher de Milreu é a figura que marcará o imaginário desta opulenta villa pelo seu semblante e penteado singular. Nunca saberemos com certeza quem foi esta personagem. Há quem defenda que poderá ter sido uma das proprietárias, mas não existem evidências arqueológicas disso. Podemos, contudo, continuar a admirá-la no Museu Nacional de Arqueologia em Lisboa. Este surpreendente achado e o trabalho de Estácio da Veiga, falecido em 1882, marcou uma viragem na investigação deste sítio arqueológico. No âmbito da Carta Arqueológica do Algarve, o arqueólogo desenvolveu aqui um trabalho meticuloso que José Leite de Vasconcellos, fundador do Museu Etnográfico de Belém, viria a continuar. Só em 1932 o sítio arqueológico de Milreu foi classificado como património nacional e seria preciso esperar até 1941 para que o equívoco com a localização de Ossonoba fosse esclarecido. As peças dispersas de tão complicado puzzle só então começariam a encaixar.

No meio de tantos sobressaltos, o final da década de 1960 marcou finalmente o início do estudo sistemático de Milreu. O Instituto Arqueológico Alemão, famoso pelo seu trabalho com as civilizações do Próximo Oriente, nomeadamente na antiga Mesopotâmia, patrocinou vários projetos de investigação na Península Ibérica. Nessa altura, o jovem arquitecto alemão Theodor Hauschild, com grande interesse pelos modelos clássicos, visitou Milreu e ficou desde logo deslumbrado com o que encontrou.

Apesar dos constrangimentos provocados pela pandemia, Theodor Hauschild aceitou conversar comigo à distância sobre o seu trabalho de uma vida. “Quando começámos as escavações em Milreu, em 1971, eu já conhecia o local dos meus estudos do ninfeu para a minha dissertação”, diz. “A primeira vez que estive na área foi muitos anos antes como parte das explorações para o Instituto Arqueológico Alemão. Visitei vários monumentos no Sul da Península Ibérica e fiquei imediatamente fascinado com o tamanho e as características do templo dedicado às divindades aquáticas, vulgo ninfeu.”

O ninfeu marca a paisagem de Milreu e, partindo dele, é possível reconstruir toda a história desta sumptuosa villa. Por momentos, imagino os proprietários de gosto refinado deslumbrando-se com o friso de mosaicos com temas marinhos e a figura mitológica de um tritão a ladear um pódio que dava acesso a um tanque consagrado às ninfas aquáticas. Infelizmente, o tritão desapareceu entre a década de 1970 e a de 1980.

Os anos subsequentes à transição para a democracia foram um período de pouco investimento nos bens culturais, como ficou atestado numa passagem da “Viagem a Portugal”, de José Saramago, editada em 1981. “As ruínas da vila romana de Milreu […] estão sujas e abandonadas. Contudo, pelo que ainda conserva, é das mais completas que se encontram no País.”

É surpreendente que num período tão conturbado como foi o século IV se tenham edificado obras de carácter tão sumptuoso. O mais extraordinário é que as oficinas da região da Tunísia continuavam a executar projectos de grande dimensão em regiões que já sentiam as incursões dos povos germânicos. Não é difícil imaginar os mestres artesãos do mosaico a deslocaram-se de terra em terra com os seus catálogos ao estilo IKEA, apresentando os mais variados modelos. “Mesmo no período em que o Império já dava sinais acentuados de perturbação, o Mediterrâneo continuou a ser uma estrada de comércio e contactos”, lembra João Pedro Bernardes.

Milreu

João Pedro Bernardes, que estuda Milreu há mais de vinte anos, aponta um golfinho num dos painéis alvo de conservação e limpeza recentes.

A conservação do edifício de culto até aos nossos dias seguiu o percurso normal das estruturas do passado. Por norma, o abandono total conduz apenas ao aproveitamento dos materiais para outras construções, mas existem por vezes acasos felizes, como em Milreu. Ali, o uso foi sendo alterado ao longo do tempo, preservando desta forma a sua memória. De espaço para cultos pagãos no século IV, evoluiu para devoção paleocristã no século V, como ficou atestado pela descoberta de um baptistério e de uma necrópole.

Com a ocupação muçulmana no século VIII, o lugar seguiu os caminhos da fé islâmica. A escrita em caracteres árabes numa antiga coluna da época romana é o elemento de prova. As religiões têm uma capacidade única de se impor, capturando lentamente os velhos ritos e conduzindo-os para o modelo vigente. Os fenómenos naturais também contribuíram para perceber a evolução histórica do templo. “Sabemos da existência de um terramoto no século X que derrubou a cobertura do ninfeu e selou o espaço como uma cápsula do tempo”, diz João Pedro Bernardes. “Os materiais arqueológicos ali recolhidos em escavações recentes estavam depositados por ordem cronológica”, conclui. Seguindo a velha máxima de Lavoisier de que nada se perde, tudo se transforma, o velho ninfeu acabou como lugar para guardar gado.

Na continuação da conversa com o arqueólogo João Pedro Bernardes, tento perceber todo o complexo da antiga propriedade e quem poderão ter sido os seus proprietários. Desde as suas origens, Milreu foi aquilo que se pode apelidar de “casa agrícola”. Ali, além do gado, cultivava-se a vinha e a oliveira para produção de vinho e azeite para exportação. Os antigos dólios (contentores) para guardar o azeite não estão infelizmente à vista, apesar de se saber o local exacto das mesmas e de já terem sido objecto de estudo por Felix Teichner, discípulo de Theodor Hauschild. “A falta de recursos impediu-nos até agora de musealizá-las”, diz João Pedro Bernardes. “Apesar da proximidade do mar, não existem evidências de que em Milreu tenha existido produção de preparados de peixe como noutros espaços similares da região algarvia”, remata o investigador.

As provas do carácter agrícola de Milreu estão felizmente em grande parte ao alcance do olhar de quem visita o sítio arqueológico. O monte medieval que se estabeleceu no local e a casa rural edificada no século XVI, com alterações no século XVIII, estão entre os melhores exemplos de arquitectura rural da época moderna em território nacional. Esta construção conservou involuntariamente muitas das estruturas do período clássico. Deste modo, por baixo dos seus alicerces, estão hoje à vista um antigo lagar, divisões magnificamente decoradas com painéis de mosaico com motivos geométricos e com o pormenor de parte destes espaços serem aquecidos. Estes pormenores requintados estavam reservados apenas a uma pequena elite. “Seria uma ínfima parte da população”, admite João Pedro Bernardes. Não é apenas no presente que alguns luxos só estão ao alcance de uns poucos.

Se no interior da antiga propriedade, graças à excelente musealização do espaço, se compreende em pormenor as antigas valências, é no exterior que somos esmagados com o fausto da época romana. Painéis de mosaico preenchiam os espaços privados, decorados com inúmeros seres marinhos com um nível de pormenor que impressiona qualquer visitante. Golfinhos, robalos, tainhas, chernes, pargos, ouriços, chocos e lulas evoluem como se estivessem a nadar nas águas do Atlântico ali tão próximo. Os artesãos que executaram o projecto dos mosaicos de Milreu levaram o seu trabalho ao mais ínfimo pormenor, com uma minúcia notável que se pode observar numa pequena piscina inserida no complexo termal e decorada inteiramente com desenhos de peixes.

A forma como todos os seres aquáticos foram desenhados e implantados criava uma ilusão de óptica que, com o tanque cheio de água, fazia crer que os mesmos estavam em movimento. Apesar de o mergulho com escafandro autónomo estar ainda a quase dois milénios de distância, os titulares de Milreu tinham enorme fascínio pelo mar. O mosaico das ondas situado em frente da casa rural é outro exemplo de uma criação exuberante. Um simples olhar reconhece de imediato as cores esquecidas há muito e devolvidas pelo projecto de conservação e retirada dos líquenes que o cobriam em 2021. A qualidade do trabalho da oficina norte-africana que o realizou deverá ter sido famosa na época, porque foi encontrado o mesmo tipo de decoração em escavações na antiga Augusta Emerita, actual Mérida, e numa villa na Galiza. Toda a villa foi projectada com a água como principal elemento cenográfico. A propriedade edificada em socalcos exibia fontes e repuxos para conferir um ambiente fresco numa região que já na época registaria verões bastante quentes. Sem qualquer esforço, podemos imaginar os proprietários a receberem os seus convidados para um dia de sonho nas suas termas privadas e um jantar na proximidade do peristilo (o pátio interior que rodeava toda a habitação suportado por colunas e tinha normalmente um tanque flanqueado por espécies arbustivas).

Para completar a decoração, os bustos dos imperadores Adriano e Galieno e de Júlia Agripina, mãe de Nero, eram exibidos com vaidade. Os bustos imperiais de Milreu foram descobertos em 1966, tendo sido classificados há poucos meses como tesouros nacionais. É provável que nunca venha a perceber-se a razão para a existência destas figuras em Milreu. As opiniões dividem-se entre os que defendem a proximidade dos senhores de Milreu às cúpulas do poder imperial e os que acreditam que estes abastados proprietários eram coleccionadores, seguindo uma tradição já em voga na época. Até hoje, não sabemos quem eram os proprietários de Milreu. Não existem evidências arqueológicas sobre a sua identidade.

“Seriam com certeza pessoas ligadas ao mundo dos negócios, com interesses que se estendiam para lá da produção agrícola local”, diz João Pedro Bernardes. “Para conseguirem os recursos necessários para dotar o espaço de tanta exuberância e sumptuosidade, é provável que tivessem outros investimentos, talvez na extremamente lucrativa indústria da salga e molhos de peixe.” Essas unidades de tipo industrial eram muito comuns na costa que é hoje o Algarve e o Sul de Espanha. Seriam uma espécie de accionistas do passado.

Os dados arqueológicos revelam-nos ainda relações profundas com o Mediterrâneo. As cerâmicas finas de importação norte-africana encontradas em Milreu perduraram muito para lá da existência do Império Romano. Uma pequena lucerna (candeia de azeite) descoberta por Felix Teichner com o monograma de Cristo, datada do século VI, é prova dessa continuidade. Os produtos romanos ou tardo-romanos de origem oriental e norte-africana só deixaram de circular no século VII com a expansão islâmica que culminou com a ocupação da Península Ibérica no século VIII. O mundo romano, que manteve ao longo da sua existência um Mediterrâneo unido entre as duas margens, daria então lugar a uma nova realidade que perdura até hoje, separando o Norte cristão do Sul muçulmano. Esses laços, que continuamos a tentar unir de novo tantos séculos depois, lembra-me a singularidade de Milreu como espaço de celebração de culturas. Com uma luz alaranjada típica do final do dia, detenho-me por momentos a olhar para o ninfeu, que por instantes parece ganhar vida, mesclando romanos, cristãos e muçulmanos.