Durante mais de um milénio, Idanha-a-Velha foi um centro urbano de importância ibérica. Romanos, suevos e visigodos, árabes e cavaleiros templários deixaram a sua marca no território. Essas marcas estão de novo a emergir.
A notícia não foi muito divulgada em 2018, mas teve amplo significado arqueológico e simbólico para o conhecimento do passado de Idanha-a-Velha: uma equipa de arqueólogos encontrou então a porta sul. Há mais de um milénio que ninguém passava entre aqueles blocos.
Não é fácil interpretar o passado em Idanha-a-Velha. A cinquenta quilómetros de Castelo Branco e a pouco mais de trinta da fronteira com Espanha, a aldeia parece um manuscrito antigo, cujas páginas, por falta de uso, se colaram, amalgamando vicissitudes de épocas diferentes. Félix Alves Pereira, o arqueólogo que no início do século XX veio aqui para inventariar o acervo de epigrafia conservado na aldeia, chamou-lhe o “perfeito cadáver de pedra que o tempo descarna”. Não estava errado.
Durante vários séculos, Idanha-a-Velha foi sarando a cicatriz deixada pela perda progressiva de importância a partir do momento em que Dom Sancho I transferiu a sede do bispado para a Guarda. Fê-lo com a condição de que a população sujeita a esse bispado continuasse a ser designada por egitaniense (ainda hoje o é), mas foi fraco consolo nessa machadada final de uma história espantosa de mais de um milénio de influência. Pouco antes, “os templários, como gente estranha, desfizeram uma cidade para fazer uma fortaleza”, dirá no século XVIII o pároco de Idanha-a-Velha nas “Memórias Paroquiais”. E a aldeia, desmantelada, despovoada e mal servida de estradas e acessos, foi sendo esquecida. Um manto de terra e de vegetação foi cobrindo as ruínas. A memória oral perdeu-se. A gigantesca borracha da história limitou a recordação de uma velha cidade aos eruditos que, desde o século XVIII, aqui acorriam em busca de tesouros clássicos, mal adivinhando que o verdadeiro tesouro era menos palpável.
Em 2020, os arqueólogos Pedro Carvalho e Catarina Tente submeteram um pedido de financiamento à Fundação para a Ciência e Tecnologia para retomarem as escavações em Idanha-a-Velha, procurando ordenar este bolo de camadas revolto que era – e é – o registo arqueológico da aldeia. Foi uma candidatura invulgar porque juntava duas universidades portuguesas (Coimbra e Nova de Lisboa) no mesmo projecto de investigação.
A descoberta da Porta Sul pela equipa dos arqueólogos Pedro Carvalho e Catarina Tente suscitou novas teorias sobre o acesso à cidade no fim do Império Romano.
Foi igualmente peculiar porque os dois arqueólogos beirões se propunham dotar as instituições locais de ferramentas para construir uma narrativa sobre Idanha-a-Velha capaz de ser apreendida por turistas e agentes económicos, num último fôlego para travar o despovoamento da aldeia. E foi rara porque se aglutinaram, na mesma equipa, historiadores, arqueólogos, antropólogos, geógrafos, especialistas em genética e em física num grupo que, ao longo de um almoço, tanto pode começar por discutir a epigrafia da aldeia como terminar com as possibilidades de sequenciamento de DNA antigo.
Ao longo do século XX, a aldeia foi intervencionada em alguns períodos e o seu espólio foi alvo de cobiça. As campanhas mais extensas foram desenvolvidas entre as décadas de 1950 e 1970 por Dom Fernando de Almeida, médico especializado em obstetrícia mas arqueólogo por paixão. O seu contributo real ainda é discutido nos fóruns de história de arqueologia. Devem-se-lhe seguramente a identificação de estruturas fundamentais na aldeia, como um dos baptistérios, segmentos da muralha, as termas e o aqueduto ou a recuperação da Sé Episcopal (que, na década de 1950, fazia as vezes de cemitério local, sem telhado). Devem-se-lhe em contrapartida intervenções extravagantes como a montagem de uma porta à romana ou a remontagem da Basílica com evidente perda de informação sobre o edifício que terá existido antes desta. Era consensual, porém, no início do século XXI, que havia ainda muito trabalho por fazer em Idanha – “trabalho e questões que nem esta geração conseguirá resolver na totalidade”, diz Catarina Tente. Entre 2017 e 2019, apenas com apoio do município de Idanha-a-Nova, a equipa das duas universidades escolheu o sector da muralha como primeiro local para uma sondagem arqueológica de prospecção.
O contributo de Francisco de Holanda. No século XVI, numa viagem de regresso a Roma, o humanista Francisco de Holanda deteve-se na Ponte de Alcântara, em Espanha, desenhando esta monumental obra de engenharia e a inscrição ali implantada, que descreve as comunidades que financiaram a obra. Os primeiros da lista são os "igaeditani", os cidadãos de Idanha.
“A ideia era trabalhar uma zona desconhecida da velha cidade, onde não tivessem tido lugar intervenções arqueológicas e onde fosse possível encontrar uma estratigrafia completa”, diz Pedro Carvalho. A zona sul da actual aldeia, a caminho do apertado meandro do rio Pônsul, era a candidata. Ao nível do solo, entre a última casa construída e o sector de muralhas, estende-se um extenso olival, bem visível na imagem aérea que publicamos nestas páginas. O subsolo não era ali revolvido há mais de um milénio, com excepção dos ocasionais sachos e enxadas. “A escolha do local não foi acidental”, diz o arqueólogo da Universidade de Coimbra. O urbanismo romano é, de certo modo, previsível. Do Fórum, parte quase sempre o cardo, o eixo orientador das cidades, sobretudo daquelas que são planeadas de raiz. Ora, há muito que se identificou a arruinada Torre Templária de Idanha como o local onde, na Antiguidade esteve implantado o templo do Fórum romano. “Assumimos que o cardo se desenvolveria de modo convencional, de norte para sul e, de facto, encontrámos a porta perto do ponto onde esse eixo encontra a linha de muralhas.”
Em que data foi aberta a porta? Essa é uma pergunta que permanece sem resposta. Aliás, quando se pergunta em Idanha uma datação a um dos especialistas da equipa, a resposta reflecte cautelas e hesitações pelo simples motivo de que, por enquanto, é difícil atribuir datas a peças e materiais escavados sem método estratigráfico. Existe um vasto acervo encontrado ao longo de décadas de escavação, mas sem informação preservada sobre o contexto. É como um puzzle de largas centenas de peças para o qual o fabricante não forneceu o desenho final. E, no entanto, as questões de datas e tempos são importantíssimas em Idanha-a-Velha praticamente desde a fundação da cidade.
Uma reconstituição de um baptismo pascal no século V.
Terá existido uma Idanha pré-romana? Não há provas directas disso. Leite de Vasconcelos, um dos pais da arqueologia portuguesa, defendeu que a abundância de nomes pré-romanos referidos nas inscrições e em mais de metade das divindades citadas validaria a tese de um povoado lusitano-romano no local. Até agora, a arqueologia não encontrou qualquer prova disso.
Em contrapartida, há dados muito concretos sobre a fundação de Idanha romana ou, pelo menos, os primeiros anos de vida da cidade. No ano 16 a.C., Quinto Tálio, um alto dignitário de Mérida (recém-designada capital da província romana da Lusitânia), ofereceu à cidade um relógio de sol, conforme se comprova por uma valiosa inscrição.
“Há aqui um simbolismo evidente”, diz Pedro Carvalho. “O relógio alinha o tempo da cidade pelo tempo do Império.” Pouco depois, em 3 ou 4 d.C., uma inscrição alusiva aos netos do imperador Augusto foi colocada no pedestal de uma estátua, confirmando essa integração da cidade na envolvência política e religiosa do Império.
O próprio nome da cidade romana ainda hoje alimenta controvérsias. Uma inscrição fundamental foi colocada na Ponte de Alcântara, do lado de lá da fronteira, aquando da inauguração do monumento em 105 d.C. É uma obra importante de engenharia romana, mas não se tratou de um opus publicum populi romani, construído a expensas do povo romano. Foi uma obra comunal de várias populações servidas pela estrada que passava na ponte e que são referidas na inscrição. “A encabeçar a lista, estão os igaeditani. Ora, o território que se estendia até ao Tejo era seguramente da civitas Igaeditanorum, pois este nome não levanta dúvidas. Mas não sabemos ao certo o nome da cidade capital desse território, que poderia ser Igaedis”, diz Pedro Carvalho. “Plínio refere muitas civitates/populi, mas não refere os igaeditani e não nos chegou qualquer inscrição que esclareça definitivamente a questão.” Na viragem para a nossa era, a cidade teria então importância regional, era reconhecida pela capital provincial e atraía forasteiros. Estava em curso uma das páginas mais nobres de Idanha.
Do Fórum à Torre. Ainda são visíveis, na base da arruinada torre templária, os níveis que correspondiam à base do templo do Fórum Romano. No século XII, os templários tomaram a aldeia e terão usado os materiais disponíveis para fortalecer as linhas defensivas.
Não há sítio arqueológico mais rico no país em epigrafia romana do que Idanha-a-Velha. Não há também outro sítio onde as inscrições tenham gerado tanta controvérsia. Escrevendo em 1951, o historiador Fernando Pina Lopes lembrou que, na primeira visita de Leite de Vasconcelos a Idanha-a-Velha, após um percurso diabólico no lombo de um burro, o fundador do Museu Nacional de Arqueologia (MNA) não tardou a… entesourar. “Se é certo ter-se descoberto ao aproximar-se de Idanha-a-Velha e, numa saudação cheia de ternura pela velha e gloriosa cidade, ter gritado: ‘Salvé Egitânia’, verdade é também que, pouco depois, de lá saíam, num só dia, em 44 carros de bois para a estação do caminho-de-ferro com destino ao Museu Etnológico Português, dezenas de aras e inscrições, preciosidades que da Beira Baixa deviam ser legítima pertença”, anotou. Parte dessas inscrições foram devolvidas à região quando Dom Fernando de Almeida assumiu a direcção do MNA na década de 1970. Hoje, quase todas estão estudadas e publicadas, constituindo um curioso portal de acesso ao passado. “Mas não é um portal para todo o passado”, esclarece Pedro Carvalho. “Há um vasto acervo epigráfico, mas ele corresponde só aos séculos I e II d.C. Depois, desaparece ou as pessoas começaram a escrever em registos mais perecíveis.”
Ao longo dos anos, realizaram-se estudos de recuperação da pigmentação original de muitas inscrições funerárias, depositadas ao longo das estradas para honrar os mortos e lembrar aos vivos que os descendentes preservavam os títulos dos defuntos. Algumas, repintadas com o chamado vermelho pompeiano, desafiam o mundo romano sempre branco que a iconografia dos filmes nos habituou a imaginar. Por todo o lado, há inscrições, incluindo letras monumentais, com mais de meio metro de altura, que formariam palavras ou uma frase escrita para ser lida à distância num dos monumentos da cidade. Alguns esforços tentaram ordenar esses fragmentos mas não foram bem-sucedidos.
Expostas aos humores meteorológicos, algumas das muitas inscrições de Idanha-a-Velha fazem a guarda de honra ao edifício da Sé Episcopal, a partir do qual a cidade visigoda foi-se reorganizando.
Armando Redentor é o membro da equipa que organiza esse vasto legado epigráfico. Várias inscrições estão espalhadas pelo país e a sua leitura tem vindo a ser reunida para análise. Há também uma segunda fase da investigação que procura encontrar rasto de Igaedis no mundo romano. “As pessoas movem-se, mas levam consigo a sua terra de origem”, diz Pedro Carvalho.
Um bom exemplo disso é Caius Cantius Modestinus. O seu nome figura em inscrições na Bobadela (Oliveira do Hospital) e em Idanha-a-Velha, com a serra da Gardunha pelo meio. Provavelmente, este homem estaria ligado à exploração do ouro e tinha vasta actividade filantrópica. Natural de Idanha, mandou fazer inscrições ligadas à construção de quatro templos: os de Vénus e Marte em Idanha, e os monumentos a Vitória e ao Génio do Município na Bobadela.
O segundo baptistério, que os visitantes mal descortinam entre o vidro sujo de uma instalação arquitectónica menos feliz, é mais nobre. Usa mármore, é maior e mais opulento. No passado, a sua construção fora interpretada como marco de um momento importante na vida da cidade, como a sua elevação a sede de bispado visigodo em concílio. No entanto, as primeiras notícias sobre a existência de um bispado em Idanha são do século VI d.C. e o baptistério é seguramente mais antigo. “Em arqueologia, não há sensações; há datações”, brinca Catarina Tente. “Mas esta datação levantou novas questões. É certo que não sabemos a data de fundação do bispado, mas também ponderei a hipótese de o abandono de um baptistério mais rudimentar e a construção de um novo, mais opulento, estarem relacionados com os conflitos entre arianismo e catolicismo.”
O rei Leovigildo professava o arianismo, uma heresia cristã. Após a conquista visigoda da região, ainda persistiam bispos arianos em Idanha (então já designada como Egitânia, como se atesta pelo vasto acervo numismático que tem sido encontrado), mas, no ano de 589, o seu filho forçou a conversão ao catolicismo de todos os bispos do reino. “Prescindem do arianismo, professam o credo de Niceia e passam a ser católicos. Entre eles está naturalmente o bispo de Idanha”, diz Catarina Tente. Uma vez mais, porém, as datas colidem com as hipóteses teóricas. A consagração do primeiro bispo católico é posterior à data de construção do segundo baptistério. “Resta a hipótese de esse monumento acompanhar um evento importante na cidade que ainda desconhecemos”, remata Pedro Carvalho. “Do ponto de vista político-religioso, esta narrativa é uma prova de expansão do cristianismo. Neste momento, Idanha tem os baptistérios mais antigos da Península Ibérica e isso é irrefutável. Mas quem sabe disso quando visita a aldeia?”
Não há oficinas romanas de moedas associadas a Idanha-a-Velha, mas, em contrapartida, há um importante espólio numismático visigodo e muitas foram até batidas na Egitânia (o nome pelo qual a cidade passou a ser conhecida). Pelo menos sete reis fizeram cunhar moeda com o nome da cidade, indício da importância simbólica da Egitânia entre os séculos V e VIII.
Do ponto de vista material, a numismática e alguns elementos arquitectónicos são os vestígios mais palpáveis da passagem visigoda pela cidade. Menos monumental do que a cultura romana, a cultura germânica manteve a ligação ao amplo território que em tempos fora governado pela Civitas Igaeditanorum, mas agora subordinado à diocese e ao poder religioso. As moedas fazem parte desse jogo de poder. “A moeda visigoda não é uma moeda de circulação”, lembra Catarina Tente. “É uma moeda de prestígio e acredita-se que seria até uma moeda de entesouramento para pagamento de impostos. Destina-se às elites. Desde Leovigildo que não se podia cunhar moeda sem autorização do rei. As moedas que nos chegaram e que aparecem em locais tão distantes como Conímbriga marcam a relação entre o rei e os seus dependentes, como prestação de tributo.”
Em 711, a Península Ibérica foi abalada por um novo choque civilizacional. A invasão, desta vez, partiu do Norte de África e rapidamente modificou a relação de forças em quase todo o território. Idanha não foi excepção, embora subsistam muitas interrogações sobre o que se terá passado nesta região durante os anos de influência muçulmana.
As fontes árabes são dispersas, por vezes com um século de intervalo entre si. Num itinerário geográfico de Al Rahzi, redigido no século X, menciona-se Antanya, embora o autor provavelmente recorresse a fontes mais antigas porque há anacronismos evidentes. Menciona por exemplo mil habitantes para Idanha, o que é improvável. E os territórios de limite que fornece para a cura (o nome dado à antiga diocese visigótica) é gigantesco, de Marvão a Alcântara, em Espanha.
Na “Vida de ib Marwhan”, do final do século IX, menciona-se também que o guerreiro terá reforçado Idanha na sua quarta revolta contra o emir. E existe, por fim, uma referência a um rebelde do século VIII, originário de Idanha, que protagonizou uma heresia de cariz islâmico durante alguns anos. Dom Fernando de Almeida afirmou peremptoriamente que Idanha fora arrasada durante a ocupação islâmica, mas o registo arqueológico não o validou. É evidente que a cidade perdeu relevância. Gabriel de Souza, bolseiro de doutoramento da NOVA FCSH e membro da equipa, está a catalogar todos os elementos arqueológicos provenientes de Idanha ao longo de mais de um século de escavações. “Menos de 1% corresponde a material islâmico”, diz. “É aquilo a que chamaríamos uma prova indirecta da menor influência desta civilização no território: a ausência de vestígios.”
Quem eram os cidadãos de Idanha? De onde vinham? Até aqui, eruditos e cientistas têm especulado sobre a presença de indígenas na cidade romana e sobre outros movimentos populacionais, mas faltam dados concretos. João Teixeira é talvez o investigador que pode temperar esse debate com condimentos até aqui inexistentes.
Formado no Porto, mas ligado agora a duas universidades australianas e e ao Centro de Estudos Interdisciplinares da Universidade de Coimbra, o investigador conduzirá a investigação genética com os vestígios osteológicos humanos encontrados na cidade. “Queremos perceber o impacte potencial de diferentes povos que tenham habitado a cidade e avaliar se deixaram marcas”, diz. Para tal, trabalhará com cerca de 50 indivíduos sepultados em Idanha ao longo de um milénio – embora a maioria já seja de época medieval, pois o ritual romano de incineração dificulta o estudo. Não está descartada a hipótese de uma campanha orientada para encontrar uma necrópole dos séculos I e II.
“As diferenças populacionais costumam ser muito reduzidas, mas há nuances ou variantes genéticas: tanto podem ser introduzidas ao longo do tempo como extintas”, explica. Há um osso no crânio que preserva melhor o DNA. A sua perfuração em condições controladas permite extrair moléculas de DNA, que revelam as variantes genéticas. O processo permitirá, pela primeira vez em Portugal, encontrar pistas sobre a herança genética dos indivíduos analisados e intuir sobre movimentos populacionais através de modelação e estatística. “Mas gosto sempre de lembrar que herança genética é uma coisa e herança cultural é outra bem diferente”, sublinha João Teixeira.
Talvez, afinal, algumas respostas sobre a identidade dos fundadores da cidade romana surjam afinal, não do subsolo, mas de um laboratório.
“Hoje, prestamos homenagem ao gastrónomo Apício, especialista romano do século I, que nos deixou algumas dezenas de receitas e vastos conhecimentos sobre a relação dos romanos com a comida.” Maria Caldeira de Sousa gosta de deixar uma impressão duradoura nos clientes do seu restaurante Casa da Velha Fonte (o único em Idanha-a-Velha) – tão duradoura como os paladares da sua arte culinária.
Mestranda em Alimentação na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, desenvolve um curioso projecto de junção da gastronomia com a história e personifica com o marido, Rui Sousa, uma aposta muito particular. Quando muitos saem de Idanha-a-Velha, Maria, Rui e os filhos vieram para ficar.
As ementas são piscadelas de olho ao mundo romano e à produção da região, introduzindo ingredientes há muito esquecidos, recuperando ervas aromáticas e procurando usar produtos locais, frescos e com certificação biológica.
Fechando os olhos, o visitante pode, por instantes, regressar ao passado e imaginar uma refeição romana, a cem metros do Fórum, num tempo em que os habitantes de Idanha nem poderiam sonhar com o milénio de glória que esperava a cidade.
É um contraponto de esperança, talvez, face às palavras que, em 1909, Félix Alves Pereira deixou sobre o futuro desta aldeia histórica. “É hoje um escalavrado campo de ruínas”, escreveu em “Elenco de Epigrafia Lusitano-Romana”. “São ruínas de ruínas multiplicadas, os dolorosos vestígios de povoações sucessivas que aí devem ter existido desde a época lusitano-romana pelo menos. Três civilizações ali se sobrepuseram, mas na ruína presente se confundem porque a mão do homem, inimigo do homem, calabreou tudo inexoravelmente, destruindo para ter de edificar como debaixo do império de uma maldição, e agora detendo-se na tarefa destrutiva sem nova energia para construir. Sobre o ignoto ergueu-se a povoação romana; sobre a ruína desta, surgiu uma cidade visigótica; em cima da aniquilação da Egitânia goda e da subjugação de uma hipotética almedina, firmou-se a cidadela dos templários; e por cima do tríplice destroço destas civilizações paira o descalabro presente e agoniza uma aldeola humílima e apagada.”
Através da arqueologia, da história, da antropologia (e, quem sabe, da gastronomia e do turismo), Idanha-a-Velha ainda tenta contrariar esta visão.