Cervantes é para muitos o autor do primeiro romance moderno e uma das obras-primas da literatura universal.

Soldado, prisioneiro, cobrador de impostos, escritor de sucesso… Qualquer das três definições se adequam à figura de Miguel de Cervantes. Pouco mais se pode acrescentar à sua biografia, já que muito poucas informações documentais foram preservadas relativas aos seus primeiros anos de vida, havendo grandes lacunas que nunca vieram a ser preenchidas quanto à sua trajectória biográfica. A História, na sua sabedoria, terá querido ensombrar o escritor para, desta forma, iluminar melhor a sua obra.

Miguel de Cervantes Saavedra nasceu em 1547, em Alcalá de Henares (Madrid), precisamente quando a vitória de Mühlberg assinalava o auge da glória de Carlos V e tinham acabado de começar as sessões do Concílio de Trento. Foi o terceiro dos cinco filhos vivos do casamento de Rodrigo de Cervantes com Leonor de Cortinas. A fidalguia do pai e a sua profissão de barbeiro-cirurgião não eram garantia de consideração social ou de património relevante. Pelo contrário, as dificuldades económicas eram muito habituais na casa dos Cervantes, e o pai, impelido pela necessidade, iniciou uma contínua peregrinação que começou em Valladolid e prosseguiu por Córdova e Sevilha. Lamentavelmente, só encontrou acusações por dívidas que acabaram por levá-lo à cadeia.

Miguel de Cervantes

Miguel de Cervantes.

Por volta de 1564, Rodrigo de Cervantes radicou-se em Sevilha, como administrador de casas de aluguer. Acredita-se que o jovem Miguel terá frequentado as aulas do colégio dos jesuítas, até que, em 1566, uma nova mudança levou a família para Madrid. Aqui, o futuro autor iniciou-se no caminho das letras, quando o pai se associou a Alonso Getino de Guzmán, organizador de espectáculos da capital. Foi ele que, em 1567, a propósito do nascimento da infanta Catarina Micaela, a segunda filha de Filipe II e de Isabel de Valois, deu ao jovem Miguel a oportunidade de se estrear nas letras com um soneto dedicado à rainha. Pouco depois, em 1568, iniciou os seus estudos com Juan López de Hoyos, reitor do Estudio de la Villa, que, impressionado com as qualidades literárias do seu discípulo, o encarregou de escrever quatro poemas destinados à Relación oficial de las exéquias celebradas por ocasião da morte da rainha.

Preso em Argel

Em 1569, surge a primeira das grandes incógnitas que marcaram a trajectória de vida de Miguel Cervantes. Quando parecia que iniciava uma promissora carreira literária, e sem que se conheçam os motivos, viajou até Roma para exercer as funções de camareiro do cardeal Giulio Acquaviva. É possível que o motivo tenha sido uma ordem de prisão por ter ferido, num duelo, um mestre-de-obras.

Também poderá dever-se a um simples desejo de aventura, indiciado pelo facto de Cervantes ter abandonado o ambiente pontifício, em 1570, para se alistar em Nápoles, juntamente com o seu irmão Rodrigo, no terço de D. Miguel de Moncada. Sob as suas ordens, embarcou na galera Marquesa, a bordo da qual, no dia 7 de Outubro de 1571, combateu na batalha naval de Lepanto.

Durante a sua participação no confronto, um disparo de arcabuz inutilizou-lhe a mão esquerda, uma ferida da qual sempre se mostrou orgulhoso e que lhe valeu, como se fosse uma medalha, a alcunha de o “maneta de Lepanto”. Uma vez recuperado, em 1572, foi reincorporado em Messina no terço de D. Lope de Figueroa, com o qual participou em diversas campanhas militares; no entanto, alentado pelas cartas de recomendação concedidas pelo próprio João de Áustria e o duque de Sessa, decidiu regressar a Espanha, em 1575, com o provável desejo de prosperar na corte.

Batalha de Lepanto

O episódio mais conhecido da agitada biografia de Miguel de Cervantes é, sem dúvida alguma, o da sua participação na batalha naval de Lepanto (1571), que pôs em confronto a armada do Império Otomano contra a Santa Liga católica. Foi aqui que o escritor ficou ferido e perdeu a mobilidade da mão esquerda. Na imagem, detalhe do óleo A batalha de Lepanto (1622), do pintor flamengo Andries van Eertvelt.

Não contava com os perigos que o Mediterrâneo apresentava no século XVI para quem se atrevesse a sulcar as suas águas. Quando no horizonte já se vislumbrava a costa catalã, uma tempestade dispersou a flotilha em que viajava na companhia do seu irmão Rodrigo e, pouco depois, a galera em que seguiam foi capturada por corsários berberes. Os prisioneiros foram conduzidos a Argel e as cartas que Miguel de Cervantes acreditava serem o seu passaporte para uma vida melhor, apenas serviram para que fosse considerado um refém de alta categoria e fixar o seu resgate em 500 escudos de ouro, uma quantia elevada para a época. O valor era inalcançável para a sua família e Cervantes iniciou então uma das etapas mais terríveis da sua vida. Anos depois, escreveria no Dom Quixote que, “a prisão é o maior mal que pode acontecer aos homens”.

Em quatro ocasiões, Cervantes arriscou a vida para tentar escapar aos carcereiros e, por quatro vezes, fracassou. A primeira tentativa teve lugar em 1576, mas a traição do guia que o acompanhava inviabilizou a operação. Um ano mais tarde, permaneceu escondido numa gruta com 14 prisioneiros durante cinco meses, à espera de que o seu irmão Rodrigo, resgatado um pouco antes, viesse à sua procura; no entanto, foi denunciado.

Dom Quixote de la Mancha, uma imagem universal

O poder narrativo da figura e das aventuras de Dom Quixote de la Mancha provocou uma autêntica enxurrada de representações desde que, há quatro séculos atrás, o engenhoso fidalgo começara a aventura que o levaria a tornar-se numa referência da cultura universal. A força da obra de Cervantes alimen- tou, década atrás de década, o interesse de artistas de todo o tipo, muito distantes entre si, tanto no tempo como na concepção da sua arte: bastará citar os nomes de Francisco de Goya, Gustavo Doré, Ignacio Zuloaga ou Salvador Dalí, emergindo entre uma imensa plêiade de iluministas. Em baixo, Dom Quixote armado cavaleiro (c. 1720), óleo de Valero Iriarte (Museu do Prado, Madrid).

Cervates e Dom Quixote

1. Enlouquecido pelas suas leituras dos romances de cavalaria, Dom Quixote sai de sua casa em busca de glória e aventuras e, quando encontra uma humilde estalagem pelo caminho, toma-a por um castelo.

2. Dom Quixote acredita que o estalajadeiro é um castelhano de linhagem nobre e este, pensando que o seu hóspede viaja com bom dinheiro, decide entrar no jogo perante o seu pedido de que o armasse cavaleiro.

3. Ataviado com uma velha armadura, o engenhoso fidalgo dispõe-se a receber a investidura que o irá converter em cavaleiro andante e levar a cabo todas as heróicas façanhas que surjam no seu caminho.

4. Convertidas pela febril imaginação de Dom Quixote em altas damas e esforçados cavaleiros, as participantes no ridículo carnaval divertem-se burlando o fidalgo.

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A terceira tentativa, que implicava a ajuda de Don Martín de Córdoba, geral de Oram, terminou com a condenação de dois mil açoites a Cervantes, que se declarou como único responsável pelo plano. Por último, uma nova tentativa de fuga, que não passou de um projecto, conduziu-o à presença de Hassan, paxá de Argel que, apesar da sua fama de homem terrivelmente cruel, lhe poupou a vida.

Finalmente, depois de tantas tentativas falhadas, no dia 19 de Setembro de 1580, os trinitários frei Juan Gil e frei Antón de la Bella, com as moedas obtidas pelo esforço de familiares e amigos, conseguiram pagar o resgate. No dia 27 de Outubro, Cervantes chegou às costas espanholas e desembarcou em Denia (Alicante): o seu cativeiro tinha durado cinco anos e um mês, mas viria a ser perpetuado na sua obra Los baños de Argel e no relato “O prisioneiro” que incluiu no Don Quixote.

De regresso a Espanha

Tudo indica que, de regresso a Espanha, Cervantes estivesse confiante de que os seus méritos militares o recompensariam com um cargo público, mas, na verdade, não foi isso que aconteceu. Existe apenas evidências de que, em 1581, foi a Oram, em missão desconhecida e de seguida a Lisboa para dar contas da mesma ao governo de Filipe II. No entanto, a literatura deveria congratular-se com esta negativa. À falta de um emprego oficial, Cervantes dedicou-se por completo às letras, frequentou os círculos literários de Madrid e dedicou o seu tempo a escrever La Galatea, que publicou em Alcalá de Henares, em 1585. Além disso, decidido a conquistar um lugar nos ambientes teatrais, escreveu, segundo as suas próprias palavras, “cerca de vinte comédias ou trinta”. Uma delas, El trato de Argel, permitiu reconstituir parte do seu cativeiro argelino.

Por estes anos, o amor surgiu na sua vida. De facto, é a única aventura amorosa que se conhece do autor de Dom Quixote: os seus amores com Ana de Villafranca, ou Ana Franca de Rojas, esposa de um taberneiro madrileno de quem, no Outono de 1584, teve Isabel, a sua única filha. Poucos meses antes do nascimento da criança, em Dezembro, viajou para Esquivias, em Toledo, onde conheceu Catarina de Salazar, filha de um fidalgo do lugar, recém-falecido, com quem se casou em Dezembro desse mesmo ano. Um casamento eventualmente de conveniência, pois a jovem esposa (tinha 19 anos e Cervantes contava já com 37) acabava de herdar terras e vinhedos. Ali estabelecido, não perdeu o contacto com os meios literários da corte. Além disso, apesar do casamento, enquanto a sua mulher continuava em Esquivias, não tardou em prosseguir com a sua vida aventureira. Pouco depois, em 1586, a morte do seu pai obrigou-o a tomar conta da sua mãe e das suas irmãs, e, talvez por isso, tenha insistido em conseguir um cargo oficial, que acabou por concretizar em Maio de 1587, quando lhe foi confiado o de comissário real de aprovisionamento para a Armada Invencível.

Chegada a este ponto, a biografia de Cervantes transmite a imagem de uma personagem em permanente fuga. Um desejo que provavelmente nascia de um espírito aventureiro, mas também de uma certa insatisfação perante um ambiente no qual ainda não encontrara o seu lugar. Nessa louca corrida para fugir de si mesmo e do que o rodeava, aceitou a tarefa de cobrar os impostos em atraso na Andaluzia, o que implicava uma vida errante por terras andaluzas que o levou a Écija, Castro del Río, Cabra, Úbeda, Estepa, sem conseguir mais do que a mera compreensão dos que o recebiam, várias denúncias por apropriação indevida e alguns encarceramentos. Em contrapartida, desta experiência retirou um conhecimento de lugares e pessoas que, a longo prazo, se reflectiu na sua obra literária. Na verdade, apesar dos seus diversos empregos, Cervantes nunca deixou de escrever.

Lidando com a justiça

Os problemas decorrentes do seu trabalho como cobrador de impostos em atraso deram, no entanto, um fruto inesperado. Em 1597, depois da queda do banco onde depositava os valores cobrados, acusado de apropriação indevida, é preso em Sevilha. Foi ali, atrás dos muros da prisão, onde nasceu o Dom Quixote. A fatalidade, entretanto, instalou-se no seio da sua família. Em 1593, morreu a sua mãe e, em 1600, faleceu também o seu irmão Rodrigo. Pouco tempo depois, em 1604, enquanto ultimava a redacção do Dom Quixote, instalou-se em Valladolid com as suas irmãs Andrea e Magdalena, a sua filha Isabel e uma criada chamada María de Ceballos. Um ano mais tarde, no início de 1605, quando as necessidades económicas do escritor eram mais elevadas, publicou na gráfica madrilena de Juan de la Cuesta El ingenioso Hidalgo don Quijote de la Mancha. O sucesso foi imediato. Em poucos meses, perante a existência de várias edições-pirata, Juan de la Cuesta teve de imprimir uma segunda edição, algo insólito para a época, tendo em conta que a tiragem inicial foi de 1.600 exemplares.

Com o pé “encaixado no estribo”

Em 1606, face ao êxito de Dom Quixote, Cervantes instalou-se comodamente no bairro madrileno de Atocha. Nesse mesmo ano, a sua filha Isabel casou-se com Diego Sanz. Um efémero casamento – Isabel enviuvou dois anos depois – do qual nasceu a única neta do escritor, Isabel Sanz. Mas Cervantes não parecia ter nascido para ser feliz. Num ano e meio, morreram as suas irmãs Andrea e Magdalena e a sua única neta, Isabel Sanz.

O escritor, afundado na dor, decidiu encontrar consolo na religião e ingressou na congregação dos Escravos do Santíssimo Sacramento de Olivar, o que, embora lhe permitisse expiar os supostos pecados da sua aventureira vida anterior, impunha-lhe também umas estritas regras que compreendiam o jejum e a abstinência nos dias prescritos, a assistência diária aos ofícios, a realização de exercícios espirituais e a obrigação de realizar visitas regulares aos hospitais. Quatro anos depois, a sua inquietação mística levou-o a professar como noviço na Ordem Terceira de São Francisco, na qual já o tinha feito a sua esposa. Ao mesmo tempo, o sucesso de Dom Quixote provocou uma autêntica avalancha de publicações: em 1613, as Novelas ejemplares; um ano depois, a Viaje del Parnaso, as Ocho comedias y ocho entremeses nuevos nunca representados e, em 1615, a Segunda parte del ingenioso Caballero don Quijote de la Mancha. Esta última em resposta ao surgimento de um apócrifo Segundo tomo del ingenioso hidalgo Don Quijote de la Mancha, publicado em 1614 em Tarragona por um tal Alonso Fernández de Avellaneda, uma falsa identidade sobre a qual pairam as mesmas brumas que sobre o autêntico criador da personagem.

Estes últimos anos são os que estão mais bem documentados sobre a vida de Miguel Cervantes. Vivia retirado na sua casa, dedicado à oração e à literatura e mais próximo da sua mulher do que alguma vez tinha estado. Em Abril de 1616, doente com hidropisia, sentiu que estava a morrer. No dia 19 desse mesmo mês, gravemente doente, dedicou ao conde de Lemos o seu último livro, Los trabajos de Persiles y Sigismunda, tornando seus os versos: “Puesto ya el pie en el estribo, / con las ansias de la muerte, / gran señor, esta te escribo”.

O prólogo ao Persiles foi o seu testamento literário. Morreu quatro dias depois, durante a noite de 22 de Abril. Foi sepultado no dia seguinte com o rosto descoberto e o hábito franciscano, no convento das Trinitárias Descalças da Rua de Cantarranas (actual Lope de Vega). A falta de recursos obrigou os confrades da Venerável Ordem Terceira de São Francisco a pagar o funeral do escritor. Meses mais tarde, Catarina, sua viúva, geriu a publicação do Persiles.

A agitada vida de Cervantes

1547 | Nasce em Alcalá de Henares.

1571 | Participa na batalha de Lepanto e é ferido na mão esquerda.

1575-1580 | É feito prisioneiro e passa cinco anos em cativeiro em Argel.

1584 | Estreia em Madrid de El trato de Argel e ElcercodeNumancia. Casa-se com Catarina de Salazar.

1585 | Publica La Galatea.

1587 | É designado comissário real de aprovisionamento em Sevilha.

1605 | Surge a primeira parte de El ingenioso Hidalgodon Quijote de la Mancha.

1613-1614 | São publicados as Novelas ejemplares e a ViajealParmaso.

1615 | Publicação de Comedias y entremeses, e da Segunda parte del ingenioso caballero don Quijote de la Mancha.

1616 | Morre em Madrid. No ano seguinte, é publicado Los trabajosdePersilesy Sigismunda.