Há uma regra tácita em arqueologia: as melhores descobertas costumam surgir quando se começa a encerrar o sítio arqueológico para dar por concluída a campanha.
No final de Julho, Susana Gómez Martínez, investigadora da Universidade de Évora, e a equipa do Campo Arqueológico de Mértola (CAM), preparavam-se para encerrar os trabalhos. Tinham escavado durante algumas semanas numa das zonas mais ricas do país em vestígios arqueológicos: a poente da Igreja Matriz, construção tão evidentemente islâmica que no século XVI o escudeiro Duarte d’Armas não resistiu a escrever a legenda “a igreja que foi mesquita” quando a desenhou, apareceram na última década monumentos e vestígios do passado que se tornaram tema de notícias internacionais.
Na última década do século XX, a equipa do CAM descobrira ali um baptistério paleocristão. Em 2013, para espanto da equipa coordenada por Virgílio Lopes, foi encontrado um segundo baptistério ricamente decorado e quase intacto, testemunho da rápida penetração do cristianismo no extremo ocidental do mundoconhecido. Desde então, os esforços de interpretação têm procurado confirmar se os dois espaços, separados por menos de 30 metros, foram usados em simultâneo e por quem.
Quatro anos depois, em 2017, nos alicerces de uma casa vizinha, foi encontrado um depósito de estátuas romanas, sintomático da grandeza monumental que a grande vila do Guadiana registara na Antiguidade Clássica. O torso de uma figura imperial foi levantado com o respeito que a ocasião merecia e a história de Mértola foi de novo afinada.
camadas de história sobrepostas e intrincadas
No Verão do ano passado, também no último dia de escavação, na zona contígua à do cemitério cristão, emergiu um fantástico painel de mosaicos, delicado como só um grande mecenas poderia ter encomendado. Tudo isto apareceu num espaço correspondente a menos de cem metros em linha recta, espaço esse aliás onde também já se encontraram o criptopórtico romano, a alcáçova, um bairro islâmico e uma necrópole. Na encosta norte do castelo, dá ideia de que um génio do tempo meteu todos os vestígios de dois mil anos de ocupação numa máquina de lavar e ligou a centrifugação. O resultado foi um puzzle de camadas sobrepostas e intrincadas.

A escavação deste ano tinha um objectivo definido. A equipa queria compreender a área entre o segundo baptistério e a basílica onde aparecera o mosaico de 2022. No penúltimo dia de escavações, não se encontrou a continuação esperada desse espaço sagrado. A parte do edifício que acolhera o baptistério fora desmantelada, mas aparecia agora uma estrutura pavimentada, com ladrilhos delicados e vários tijolos desabados sobre o pavimento. Como uma gravata num congresso de arqueólogos, os elementos não encaixavam na cronologia de um equipamento sagrado da Antiguidade Tardia.
Uma estrutura pavimentada, com ladrilhos delicados e vários tijolos desabados sobre o pavimento, foi descoberta pelos investigadores do CAM. Era um banho islâmico.
Depois de desmontar alguns elementos, Susana Gómez Martínez encontrou uma estrutura oca e um espaço delimitado por pequenos pilares que serviam de plataforma para a área pavimentada. “Percebi que tínhamos descoberto um hipocausto”, conta.
Como o topónimo de origem grega sugere, trata-se de uma superfície aquecida por baixo. “Pouco depois, descobrimos a fornalha, vimos o princípio de um muro e compreendemos, com emoção, que o hipocausto estava intacto.” A equipa descobrira um hammam, um banho islâmico, em condições impressionantes de conservação.
Reconstituição do banho privado de Mértola a partir das estruturas escavadas no Verão deste ano. À direita, a sala quente, alimentada por uma fornalha. O hipocausto foi encontrado intacto. A sala contígua foi usada para confecção de alimentos, aproveitando o calor.
Ao contrário do que sucede em Loulé, onde já se conhecem os grandes banhos públicos islâmicos, havia algo novo na arquitectura do espaço escavado em Mértola. Os banhos islâmicos romperam a tradição do termalismo romano, embora, em alguns pontos da Europa, tenham ocupado exactamente o mesmo monumento, atribuindo-lhe uma nova função. “Os banhos romanos eram sobretudo uma actividade social”, diz a arqueóloga. Incluíam áreas quentes, tépidas e frias e a actividade consistia na imersão na água de uma piscina. “Em contrapartida, o banho islâmico tinha sobretudo uma função religiosa de purificação antes da oração. A água era usada para estimular o vapor que provocava a exsudação das impurezas e, por consequência, a limpeza do corpo.”
Em Mértola, a interpretação da estrutura agora escavada ainda recomenda cautelas. Falta escavar todo o contexto associado, mas é inquestionável que foi exposta uma sala quente, alimentada pelo calor de um hipocausto.
"O banho islâmico tinha sobretudo uma função religiosa de purificação antes da oração", recorda Susana Gómez Martínez, investigadora envolvida nesta descoberta.
Tudo indica que estes banhos pertenciam a um espaço privado, separado por uma parede da área de serviços onde se confeccionavam alimentos. Restos orgânicos de peixes e moluscos – com uma quantidade impressionante de vieiras – evocam um ambiente doméstico onde se aproveitaria o calor da fornalha para também cozinhar. A setenta quilómetros de distância, o mar estava a um dia de viagem, se o vento ajudasse as embarcações a subirem o Guadiana, trazendo para Mértola os frutos do Atlântico.
Achado de Mértola: uma peça metálica de utilização culinária.
Surgiram também elementos cerâmicos e metálicos raros no al-Andalus. À talha de água, onde o utilizador do banho se podia abastecer para uma rápida ablução ou para deitar mais água sobre o soalho, gerando mais vapor, acrescentou-se uma segunda talha, a fornalha quase completa e utensílios curiosos. A um objecto metálico, a equipa chamou a “forma das quiches” por apresentar essa curiosa forma. Outro parece uma cuscuzeira. Falta agora estudar todos os materiais e sobretudo tentar ordenar as novas peças do quebra-cabeças.
“Para falar verdade, imaginei que os banhos islâmicos estariam nesta encosta, mas mais abaixo – perto do rio”, conta a arqueóloga. “Fazia sentido que estivessem neste contexto, aproveitando a encosta. Por norma, as pessoas são práticas: escolhem soluções que lhes poupem energia e recursos.” Aliás, as termas romanas são uma peça também em falta na caderneta de cromos raros de Mértola. Talvez se encontrem noutra cota da mesma ladeira, mais danificadas pelo uso intensivo do espaço, mas igualmente perto da água, indispensável para encher as piscinas.
“Pelo bom estado de conservação, estes banhos não devem ter estado em uso por muito tempo", sugere a arqueóloga Susana Gómez Martínez.
“O que surpreende mais não é a descoberta de banhos privados – isso era expectável num povoado islâmico com uma população considerável”, explica Susana Gómez Martínez. “A surpresa está no grau de conservação e na delicadeza da estrutura.” A arqueóloga acredita que um equipamento desta natureza, regularmente aquecido para gerar vapor, danificaria rapidamente os materiais delicados do pavimento, assente sobre um vão. Isso não sucedeu em Mértola e Susana Gómez Martínez tem uma proposta de explicação: “Pelo bom estado de conservação, estes banhos não devem ter estado em uso por muito tempo. Mesmo duas décadas de uso parecem-me excessivas.”
Como a cronologia dos materiais é consistente com as primeiras décadas do século XIII, não é impossível que estes fossem os banhos islâmicos existentes em 1238, a data da conquista cristã de Mértola pelos soldados da Ordem de Santiago da Espada.
“Há marcas de desmantelamento abrupto”, explica a arqueóloga. A cobertura abobadada ruiu sobre o pavimento, criando uma protecção inesperada sobre a frágil fornalha e o hipocausto. Os novos senhores da vila romperiam assim com as tradições rituais dos antigos e desmantelariam simbolicamente os seus espaços sagrados, incluindo os que poderiam estar integrados numa casa senhorial.
António Cunha
Achado de Mértola: a cerâmica, em impressionante estado de conservação, seria uma talha para armazenamento de água: na sala quente, o utilizador poderia aumentar o vapor, lançando água sobre o pavimento.
Ainda há muito trabalho pela frente. Mas no ano em que a Comissão Europeia e a organização não-governamental Europa Nostra distinguiram Cláudio Torres, o fundador do Campo Arqueológico de Mértola em 1978, com o Prémio Europa Nostra na categoria de “Paladino do Património”, não se poderia desejar melhor prenda: um novo puzzle para a equipa se ocupar. E um indício mais da confluência de civilizações que há dois milénios passam por Mértola, celebrando os seus deuses e tradições e deixando para trás pegadas impressas na pedra, na cerâmica e na alma do lugar.