Sentia-me sufocar. Cada degrau da passagem rochosa aproximava-me mais do pesadelo que eu imaginava há muito tempo: a piscina de água amarelo-acastanhada, o túnel submerso que ali se escondia e o momento em que teria de entrar naquela escuridão. Pairando por cima de mim, teria a grandeza das ruínas de uma pirâmide.

Na antiga necrópole de Nuri, no deserto do Norte do Sudão, a realeza kuchita foi sepultada há milhares de anos em câmaras funerárias subterrâneas debaixo de grandiosas pirâmides. Agora, as câmaras estão inundadas com águas subterrâneas provenientes do vizinho Nilo. O arqueólogo Pearce Paul Creasman, bolseiro da National Geographic Society, liderava a primeira equipa que tentaria desenvolver técnicas de arqueologia subaquática sob uma pirâmide. Em 2020, eu até estava calma e animada por poder participar nesta campanha ambiciosa e arriscada. Porém, à medida que penetrava no subsolo, o meu coração batia mais depressa e mal conseguia respirar.

Já sentira esta ansiedade existencial antes: nove anos antes, agachada e escondida na Líbia enquanto as balas das metralhadoras automáticas varriam o terreno por cima; sete anos antes, sob ataque de terroristas do grupo Al Shabab num centro comercial de Nairobi, ao som da música pop que continuava a tocar; quatro anos antes, numa praia sem lei na Somália. Aqui, não havia nenhum inimigo externo, mas algo na minha cabeça pedia-me para não descer. Pearce e o instrutor de mergulho Justin Schneider perceberam a minha preocupação. “Dê-me um momento”, disse o primeiro. Segurando firmemente na minha máquina fotográfica, com um cinto de pesos atravessado no peito, mordi o regulador e afundei-me de pernas cruzadas na água. Acalmei-me.

Ao voltar à superfície, acenei aos meus companheiros: estava pronta. Descemos, entrando por uma passagem estreita e penetrámos na escuridão desorientadora.

Mergulho pirâmides

O arqueólogo Pearce Paul Creasman prepara-se para entrar num túmulo inundado na necrópole de Nuri, no Sudão.

Todas as culturas do mundo têm tradições ligadas à morte para facilitar a transição dos entes queridos para a outra vida e acalmar os que ficaram para trás. Este túmulo com 2.300 anos foi o local de descanso de Nastasen, um rei que liderou Kuch durante aproximadamente duas décadas. Antes dele, vários reis kuchitas, conhecidos como faraós negros, tornaram-se tão poderosos que governaram a Núbia e o Egipto. Nastasen foi o último sepultado em Nuri antes de as ameaças dos rivais forçarem a dinastia Kuch a mudar a capital para sul. Para trás, ficaram templos extraordinários, pirâmides… e os seus faraós sepultados.

Foi um desafio escavar Nuri, com os seus tesouros escondidos debaixo de água.

Há um século, o egiptólogo George Reisner visitou Nuri para explorar, entre outras, a câmara funerária do rei Taharqa, que governou o Egipto no século VII a.C. e que foi mencionado no Antigo Testamento por reunir as suas tropas para defender Jerusalém.

No entanto, muitos outros túmulos de Nuri, permaneceram por explorar. Desde então, o nível das águas subiu, influenciado pelas alterações climáticas, pelas crescentes necessidades agrícolas da região e pelas modernas barragens que represam o Nilo.

Mergulho pirâmides

Desde o início dos trabalhos arqueológicos, o Sudão sofreu um golpe de estado, uma pandemia global, inundações catastróficas e uma revolução em 2019. Os manifestantes que puseram fim à ditadura de 30 anos de Omar al-Bashir – cujo governo tentou apagar a história pré-islâmica do Sudão – cantaram os nomes da realeza núbia: “O meu avô é Taharqa, minha avó é uma kandaka (rainha)!” Bashir enfrenta agora acusações no Tribunal Penal Internacional. Manifestantes denunciaram os militares que tomaram o poder e sabotaram a transição democrática do país. A história há muito submersa começou a vir à tona.

Nadei por um canal escuro até às câmaras do túmulo. Nuvens de sedimentos obstruíam a visibilidade e, apesar do espaço reduzido, era surpreendentemente fácil perdermo-nos e nadarmos em círculos. Uma mão segurou a minha e emergimos na segunda câmara, onde o tecto que se desmoronou criou uma bolsa de ar. À luz da lanterna, o trabalho começou.

O método tradicional de escavação em terra era inútil aqui, pelo que a equipa teve de desenvolver novas técnicas para desvendar os segredos deste reino esquecido. A arqueologia subaquática é agora um campo especializado, mas, no passado, usavam-se as mesmas técnicas e as ferramentas dos caçadores de tesouros e raramente em espaços tão apertados.

Obviamente, também não há espaço para garrafas de mergulho volumosas. Por isso, respira-se através de mangueiras amarelas que se estendem pelo trajecto percorrido ao entrar, ligando-nos ao ar do exterior. Não foi possível eliminar em absoluto o risco de um desmoronamento, mas a entrada foi reforçada com 15 metros lineares de vigas de aço e tentámos não falar muito do risco. Os membros da equipa vasculhavam todas as superfícies e anotavam as suas descobertas com placas e marcadores à prova de água. Uma corda fina seguia da terceira e última câmara funerária até ao mundo acima, a nossa guia através da escuridão.

O trabalho ganhou ritmo. Pearce desceu por fim até à última câmara, que continha o que poderia ter sido o sarcófago fechado de Nastasen. Alguns minutos depois, regressou com um balde cheio. Este foi transportado para o exterior, onde outros membros da equipa o examinaram e classificaram o seu conteúdo. Cerca de uma hora depois desta rotina, Pearce emergiu na segunda câmara, respirou fundo e gritou: “Shabti!” Ternamente levantou a estatueta funerária para nós vermos. Ao vê-la na palma da sua mão, percebi que a minha respiração voltara ao normal e a minha mente recuperara a clareza. A estatueta estava partida ao meio, mas mantinha a sua expressão digna e respeitosa. Parecia pronta para cumprir o seu destino. Há milhares de anos, acreditava-se que estas figuras reviveriam para servir os seus mestres na vida após a morte. E, agora aqui estava eu, no submundo com eles. O meu medo desapareceu e a admiração inundou-me. Na minha área de trabalho, tive algumas oportunidades como esta: partilhei maravilhas antigas e fotografei-as para o mundo as poder ver. Concentrei-me no shabti molhado e brilhante. O obturador da câmara piscou, tornando o efémero permanente. Nastasen descansara aqui na escuridão durante dois milénios, acompanhado por centenas de pequenos serviçais. Em breve, eu regressaria ao mundo terrestre e aos céus límpidos. Mas ainda não. Primeiro, captei o lugar, fotograma após fotograma, congelando-o no tempo e desejando conseguir recordar tudo aquilo que não conseguia capturar em imagens.