Em finais de 1872, um pequeno navio mercante, o bergantim Mary Celeste, apareceu a navegar à deriva a meio caminho entre a costa de Portugal e as ilhas dos Açores. Embora estivesse em perfeito estado e a sua carga quase intacta, nunca se encontrou o rasto das dez pessoas que seguiam a bordo. O Mary Celeste foi conduzido até ao porto de Gibraltar pelo navio que o encontrou, o Dei Gratia, outro bergantim inglês. Ali, as autoridades marítimas do Império Britânico levaram a efeito um inquérito sobre o caso, mas nunca conseguiram resolver o mistério.
A história desta viagem começou no início de Novembro de 1872, no porto de Nova Iorque. O Mary Celeste, com o seu capitão, Benjamin S. Briggs, no comando, ia carregado com 1.700 barris de álcool para acrescentar ao vinho que deveria transportar até Génova. A seu lado encontrava-se outro navio semelhante, precisamente o bergantim Dei Gratia, comandado por David R. Morehouse.
Navio à deriva
No dia 5 de Novembro, ambos os capitães jantaram juntos e, dois dias mais tarde, o Mary Celeste largava amarras com os seus dez passageiros – oito tripulantes mais a esposa e a filha do capitão –, iniciando a travessia do Atlântico. Nada mais se soube dele até chegar ao porto de Gibraltar no dia 13 de Dezembro – sem passageiros, sem embarcação de serviço e sem os instrumentos de navegação do capitão Briggs – conduzido por três marinheiros do Dei Gratia. A história contada pelo capitão Morehouse deixou as autoridades britânicas atónitas e fez as delícias da imprensa da época e dos autores de livros esotéricos durante mais de um século. Segundo o relato de Morehouse, no dia 4 de Dezembro, o Dei Gratia avistou outro navio semelhante, navegando de forma errática.
Comandante do Mary Celeste Benjamin Spoones Briggs tinha 37 anos quando desapareceu com a sua família e a tripulação a bordo do Mary Celeste. Nascido em Marion (EUA), era casado com a filha de um reverendo local, muito devoto e abstémio convicto. A mulher e a filha de 2 anos acompanharam-no na viagem. Outro filho, de 7 anos, permaneceu em terra. Samuel S. Briggs. Colecção Privada.
O capitão ficou surpreendido ao constatar que era o Mary Celeste. Não havia ninguém a bordo e aquilo que os tripulantes do Dei Gratia viram sugeria um abandono repentino do barco: a escotilha da popa estava aberta e o bote salva-vidas desaparecera, deixando os cabos suspensos, cortados de forma precipitada. O diário de bordo incluía anotações até ao dia 25 de Novembro, mas os instrumentos de navegação tinham desaparecido. No interior do bergantim não havia sinais de luta, nem sangue ou falhas que pudessem evidenciar um motim. A cozinha estava limpa e havia restos de comida sobre a mesa. Além disso, o nível de água no porão do casco era de quase um metro – obrigando à sua remoção imediata – e encontraram-se nove barricas de álcool vazias ou deterioradas.
Então, Morehouse decidiu levar o Mary Celeste até Gibraltar e pedir a recompensa a que tinha direito por lei. Como é evidente, houve quem desconfiasse do comandante Morehouse, pois parecia muita coincidência que tivesse sido precisamente ele a encontrá-lo. Os tripulantes do Dei Gratia incorreram em contradições nos seus relatos. A imprensa apelidou-os de farsantes, conspiradores e assassinos. Uma comissão de inquérito concluiu que não era possível esclarecer o desaparecimento do capitão Briggs e dos tripulantes do seu navio.
O Mary Celeste partiu de Nova Iorque no dia 7 de Novembro de 1872. Navegava para Génova com um carregamento de álcool, avaliado em 42 mil dólares. Quase um mês mais tarde, a 5 de Dezembro, foi encontrado 350 milhas a leste dos Açores pelo Dei Gratia, que seguira uma rota quase idêntica.
A participação do Dei Gratia no sucedido foi posta de lado e Morehouse e os seus homens receberam uma indemnização superior a 8.000 dólares. Nascera um enigma.
Em 1872, desapareceram do bergantim Mary Celeste, sem que ninguém conseguisse encontrar uma explicação, dez pessoas, o bote salva-vidas e os instrumentos de navegação.
A partir desse momento, sucederam-se todo o tipo de especulações. A companhia de seguros optou pela teoria de uma combustão espontânea da carga que espantou a tripulação e se extinguiu sozinha – explicação para a qual também não foram encontradas provas. No entanto, havia outras hipóteses: a mais especulativa defendia que, depois de ingerirem álcool, os marinheiros atentaram contra o capitão e a sua família, atirando os cadáveres ao mar. Em seguida, horrorizados, abandonaram o barco num último acto de insensatez.
Piratas ou monstros
Também se disse que o Mary Celeste fora assaltado pelos piratas de Salé, em Marrocos. No entanto, as cronologias não coincidem: para que o Dei Gratia o encontrasse após essa aventura, precisaria de ter cruzado o Atlântico a uma velocidade impossível. Também se levantou a hipótese de terem possivelmente embatido contra um polvo ou uma lula gigantes e, ao fugirem deles, se tivesse dado a evacuação do navio. Por fim, o esoterismo também se interessou por este mistério com a sua teoria clássica: talvez seres de outros mundos os tivessem sequestrado a todos.
O grande porto entre a América e a Europa. À medida que o seu porto ia crescendo, Nova Iorque transformou-se numa das cidades mais importantes do mundo. Nas suas docas, floresciam companhias dedicadas ao transporte entre a América e a Europa. O Mary Celeste estabelecera-se na cidade em 1872 e um terço do navio pertencia ao próprio capitão Briggs. O principal accionista da companhia era J. H. Winchester e dois outros sócios detinham uma pequena participação. Nova Iorque em 1874. Litografia de George Schlegel.
A única certeza é que desapareceram dez pessoas, o bote salva-vidas e os instrumentos de navegação graças aos quais poderiam resistir a uma longa e árdua travessia. Mas teriam ido para os Açores, ou talvez para África? E, acima de tudo, por que razão iriam abandonar um navio perfeitamente navegável? As incógnitas subsistiram até aos nossos dias.
Tripulantes do Dei Gratia abordam o Mary Celeste.
Fraude de seguro?
Talvez a solução do enigma seja mais prosaica. Assim sendo, o capitão Morehouse, em cumplicidade com Briggs, não teria contado a verdade. Os dois capitães teriam acordado a venda fraudulenta do navio e Morehouse deveria cobrar a recompensa. Da indemnização recebida, Morehouse descontaria o valor pago a alguém da companhia de seguros para facilitar o pagamento da dita. Briggs e Morehouse atravessaram o Atlântico combinando um ponto de encontro em alto mar. Ali teria sido entregue o dinheiro e desembarcada a tripulação do Mary Celeste, partindo esta num bote para Portugal ou Tânger, sítios onde era possível começarem uma nova vida sem serem localizados. Segundo esta hipótese, a história do navio-fantasma teria sido inventada para desorientar os investigadores. Quando o Dei Gratia e o Mary Celeste chegaram a Gibraltar, a história não se revelou tão credível como eles tinham pensado. A imprensa e a opinião pública mantiveram a história viva e Morehouse só conseguiu uma quarta parte do carregamento como indemnização. A suposta fraude teria redundado em ruína e Morehouse não podia protestar sem se denunciar. Para acreditarmos na tese da fraude teríamos de aceitar, sem qualquer prova, a falta de honestidade de ambos os capitães, que, na verdade, gozavam de excelente reputação e contra os quais nada se conseguiu provar. Por conseguinte, o enigma permanece vivo, à espera de que os investigadores modernos do século XXI sejam capazes de encerrar este caso desconcertante.
O Mary Celeste era um bergantim de 31 metros de comprimento e 286 toneladas. Nessa época, a navegação à vela começava a perder terreno face ao vapor.
A história do Mary Celeste tem um triste epílogo: em 1884, um comandante sem escrúpulos, Gilman C. Parker, fê-lo embater contra um recife de coral no Haiti para tentar receber o seguro. Descoberto, desta vez, o esquema, Parker conseguiu livrar-se devido a tecnicismos legais e a sua má conduta caiu no esquecimento. Uma derradeira reviravolta de desgraça, à altura da carreira deste navio.