“Por todas as partes se pelejava , entre os dois rios Vez e Lima, tão furiosamente que, a ser o terreno menos embaraçado, naquele dia se terminar[i]am todos os intentos daquela campanha.” As palavras são do conde da Ericeira, digno sucessor de Fernão Lopes na longa tradição dos cronistas de pena fácil. Corre o ano de 1662. Vinte e dois anos antes, uma revolta popular, encabeçada pelo duque de Bragança, proclamara a independência do reino de Portugal. Como réplicas de um sismo na Península Ibérica, os exércitos castelhanos tentam arrebatar o trono a Dom João IV. As fronteiras entre os dois reinos tornam-se campos de batalha. A guerra é agora um exercício diferente: já não é um confronto de dois exércitos em campo aberto, nos quais a superioridade da cavalaria e da infantaria assegura vitórias. A artilharia torna-se a arma de eleição. E a mobilidade dos exércitos, capazes de vencer grandes distâncias num curto espaço de tempo, é a chave das operações.

arcos valdevez

Fonte do Mapa: Rebeca Blanco-Rotea  

Na fronteira entre o Minho e a Galiza, os anos de 1661 e 1662 são agitados. Dom João IV morrera sem resolver a questão da independência e sucedera-lhe o filho, Dom Afonso VI. Em 1662, porém, ainda é a mãe, Luísa de Gusmão, a regente. As tropas portuguesas na província de Entre Douro e Minho são comandadas por uma velha raposa, o conde do Prado, um homem que “[se] fiava mais do exame dos olhos [do] que da incerteza da fortuna”. Na Galiza, Dom Baltasar Pantoja dirige as operações, sucedendo ao marquês de Viana, “que claramente manifestava mais temor de conquistado [do] que resolução de conquistador”. Durante dois anos, os dois homens vão jogar uma partida de xadrez num campo de batalha real.


Parte do destino desse jogo do gato e do rato, em que os exércitos ganham posições temporárias, logo perdidas pela chegada de reforços contrários, é jogada na portela do Vez, uma passagem nas imediações de Arcos de Valdevez. O seu controlo assegura caminho livre para Ponte de Lima e Braga. Para norte, o rio Minho marca a fronteira com a Galiza, a vinte quilómetros de distância. O conde da Ericeira anota com minúcia as peripécias daqueles dias e lega-nos um guia pormenorizado, e por vezes sarcástico, dos movimentos de homens e animais. 

As forças castelhanas haviam estado perto de romper as linhas de defesa, mas esbarraram no fogo de artilharia. Dom Baltasar manda queimar a vila de Arcos de Valdevez, “situada entre os dois exércitos, sem defesa nem moradores” e sem sequer uma guarnição de protecção. Resta uma hipótese ao comandante galego: chegar primeiro aos fortes do Extremo. Marchando durante a noite, as forças do conde do Prado atingem primeiro a posição e instalam-se no forte do Bragandelo. As galegas tomam posição num forte fronteiro, o da Pereira, numa cumeeira, “com grande trabalho pelo pesado e numeroso trem que seguia o exército”. Encaram-se. Trocam salvas de artilharia, mas, no dia 27 de Outubro, “mandou Dom Baltasar Pantoja conduzir a artilharia grossa para Monção”. As forças galegas deixam em ruínas o forte da Pereira e recuam. É apenas mais uma página na longa guerra fronteiriça sem um vencedor evidente.

Brangandelo
Brangandelo

Enquanto um drone sobrevoa o Forte do Bragandelo, com um zumbido característico, a imaginação trabalha a galope. É difícil imaginar exércitos aqui, tomando posição nesta colina tranquila, com infantes, cavalos, peças de artilharia, gastadores, mantimentos e carruagens. Mais difícil ainda imaginar o trovão dos canhões numa paisagem onde agora só as aves de rapina piam. A visita, porém, é importante, pois fornece uma pista para compreender como um forte desta envergadura esteve perdido durante séculos: a natureza é a grande força moldadora da paisagem. Deixe-se o forte, recém-limpo e requalificado pelo município de Arcos de Valdevez, à mercê da natureza e, em poucos anos, a vegetação tomará de novo conta dele.

Em 2003, a arqueóloga Rebeca Blanco-Rotea, investigadora da Universidade de Santiago de Compostela, teve uma epifania. Especializada em arqueologia da paisagem e trazendo para este campo ferramentas metodológicas da arquitectura, iniciou um projecto de identificação das fortalezas associadas às guerras da Restauração, entre 1640 e 1668, nas regiões do Minho e da Galiza, no contexto do Plano Director FORTRANS. Os exércitos lêem a paisagem de uma maneira muito própria. “Ocupam elevações porque isso lhes permite controlar melhor o adversário”, diz. “Procuram portelas e zonas de passagem para preparar emboscadas ou travar avanços.” Durante a década e meia do seu projecto, Rebeca Blanco-Rotea habituou-se a olhar para a paisagem como um engenheiro militar, distinguindo a raia húmida (a fronteira natural marcada pelo rio Minho – o único ponto da fronteira comum delimitado por um rio) da raia seca.


Em 2006, com a disponibilização da ferramenta Google Earth, Rebeca analisou o território da antiga freguesia do Extremo. “Não foi uma busca aleatória”, lembra. “Na década de 1980, o arquitecto Jaime Garrido Rodríguez tinha feito um levantamento exaustivo das estruturas principais associadas a este período nos dois lados da fronteira.” Existia também uma dissertação de mestrado, de 1996, de João Viana Antunes, com uma descrição sumária das fortificações. Caíra, porém, um manto de esquecimento sobre elas. Mulheres pastoras levavam os rebanhos para a elevação do Bragandelo. “Vistas do ar, as duas estruturas são espectaculares. O Bragandelo, particularmente, exibia um estado de conservação fantástico. Confrontei essas imagens com fotografias aéreas captadas em 1957 e 1958 e deduzi que havia forte probabilidade de se poder confirmar no terreno a presença do forte.”

guerra de trincheiras

Passaram quatro anos. Em 2010, no âmbito da sua investigação de mestrado, a arqueóloga fez prospecção na zona e alguns desenhos preliminares. Ao nível do solo, porém, o Bragandelo é uma estrutura complexa.

Dir-se-ia que um gigante enraivecido enrugou de propósito a paisagem e o local chegou a ser usado ilegalmente como pista improvisada de motocross.

Em 2016, com uma bolsa de pós-doutoramento da Junta da Galiza e a desenvolver na Universidade do Minho, a arqueóloga dispôs por fim da oportunidade de realizar trabalho de campo, contando também com o entusiasmo do Município de Arcos de Valdevez, que viu nesta página rasurada da história uma oportunidade de valorização turística e de conhecimento. No terreno, foi então possível perceber que o interior do forte era mais complexo do que o previsto, com casernas, casas de soldados, trincheiras e uma configuração de fortaleza única na região. Um voo LIDAR, financiado pela Comunidade Intermunicipal do Minho em 2019, forneceu a informação de que estes fortes dispunham de outras fortificações secundárias associadas. “Percebemos que o sistema defensivo era mais complexo do que pensávamos.” Em 2021, foram também identificadas, por baixo do coberto vegetal, as trincheiras de assalto ao forte, que terão servido a dado momento para uma tentativa de o tomar pelo lado de fora. No século XVII, a própria maneira de conduzir a guerra estava a mudar.


Luís Fontes, Arqueólogo da Universidade do Minho, escavou a fortaleza de Valença durante década e meia. É uma das fortalezas abaluartadas mais notáveis da Península Ibérica. Velho castro da Idade do Ferro, Valença (antiga Contrasta à época de Dom Sancho I) assumiu um papel importante durante a Idade Média, pois dali controlavam-se as duas vias naturais de passagem entre a Galiza e o Minho: a antiga via romana por terra e o rio Minho. “Descobrimos que o sistema de defesa era mais articulado do que se pensava. Identificámos cinco fortes secundários, dois dos quais em excelente estado de conservação, bem como trincheiras, redutos e baterias”, explica.

fortaleza

A fortaleza abaluartada de Valença foi escavada durante década e meia por Luís Fontes da Universidade do Minho. Entre várias descobertas sobre o sistema defensivo, o arqueólogo identificou fortes secundários e trincheiras de ligação.

A Guerra da Restauração foi a oportunidade para colocar em marcha algumas inovações que vinham a ser testadas na Europa desde a integração da pólvora no esforço de guerra. “As fortificações medievais tinham por norma uma torre muito alta e uma muralha que a circundava. Eram pensadas para serem vistas à distância e aguentarem um tipo de impacte produzido por armas de arremesso, como a catapulta ou as flechas”, comenta Rebeca Blanco-Rotea. A introdução da pólvora alimentou então a reflexão entre os engenheiros militares. “Testaram-se fortalezas em cubo, depois os bastiões e, por fim, os baluartes, com frequência em forma de flecha. As suas muralhas são agora mais baixas e de alvenaria. Os muros são ataludados. Diluem-se na paisagem. E o sistema defensivo requer agora uma articulação entre a fortaleza abaluartada, os fossos escavados, os fortes exteriores, os revelins ou as meias-luas.”

Enquanto escavou em Valença, no âmbito dos trabalhos de requalificação da cidade com vista a uma candidatura a Património Mundial da UNESCO, Luís Fontes pôde estudar o processo de construção destas fortalezas. “O primeiro factor notável é a rapidez”, diz. “É extraordinária a mobilização de recursos para construir fortes em pouco tempo. O segundo factor notável é o facto de a maioria dos fortes ter paramentos de pedra, ao passo que o miolo é preenchido com o desaterro que resultou da abertura dos fossos.” De alguma maneira, são uma assinatura da pressa com que a guerra no século XVII era travada e da necessidade de aproveitar tudo o que estava à mão.

Os dois fortes do extremo não eram inexpugnáveis. Em 1658, após o cerco de Monção, foram tomados com facilidade pelas forças galegas. Uma vez mais, a ironia do conde da Ericeira comentou esses dias: “Com dois mil infantes e trezentos cavalos, [o exército castelhano] marchou com eles a 7 de Dezembro e achou os fortes guarnecidos com gente da ordenança de tal qualidade que, fazendo maior confiança nos pés [do] que nas mãos, os desampararam antes de serem investidos.” Por outras palavras, não houve luta – só fuga.

minho

A ampulheta do tempo nunca pára e estes vestígios já esquecidos têm enorme potencial pedagógico e turístico, se identificados nos planos directores municipais e acarinhados. No Bragandelo, o Município de Arcos de Valdevez pôs em marcha um ambicioso projecto de requalificação, que exigirá a extensão das figuras de protecção a todas as novas estruturas identificadas e a criação de um roteiro turístico. A investigação prossegue nos próximos anos. Ao trabalhar nos dois lados da fronteira, Rebeca Blanco-Rotea constatou que “o estado de conservação destas fortalezas é desigual”. Para os portugueses, as fortificações tornaram-se um símbolo da sua independência; no lado espanhol, representam a perda de um território. “Talvez isso explique o motivo pelo qual se conservaram estruturas espectaculares em Portugal, ao passo que, do lado galego, existiu uma ocultação subconsciente”, diz.

       Talvez essa seja a derradeira motivação para preservar o que resta dos anos em que a guerra conduziu milhares de vizinhos a estas paisagens idílicas para lutarem entre si. Em 1662, quando as hostilidades cessaram na região, os exércitos retiraram-se “com tanta alegria dos povos de um e de outro reino, havendo-se divulgado a prática que os dividiu”. A fronteira voltou então a ser um espaço de comunhão e partilha.