Quando os portugueses chegaram à Índia, em 1498, cedo se aperceberam da existência de uma outra grande civilização, igualmente consumidora das especiarias produzidas pela Ásia do Sul. Pouco interessados na geografia de Marco Polo, não buscavam o Cataio ou o Cipango, como fazia Colombo enquanto navegava pelas Caraíbas e ao longo da costa centro-americana, mas ouviram falar dos “chins”, cujo império ficava a oriente, para lá de Malaca. E se não havia chineses nas águas do Índico, as mercadorias do Celeste Império circulavam pelos mares da Índia, e em 1504 as porcelanas já eram usadas por D. Manuel I como oferta diplomática. Em 1508, quando o rei português enviou uma armada a descobrir Malaca, ordenou igualmente que inquirissem sobre os “chins”. Foi precisamente no porto malaio que se deu o primeiro encontro luso-chinês.
Macau foi sempre intrigante para os ocidentais. Esta imagem de uma aguadeira perto da fachada de São Paulo foi publicada na National Geographic em 1969.
Fotografia Joe Scherschel
A conquista de Malaca por Afonso de Albuquerque, em 1511 (cujo 500.º aniversário se celebrou em 2011), contou com o apoio discreto dos mercadores chineses aí estabelecidos. Passados dois anos, deu-se a chegada do primeiro oficial da Coroa portuguesa a Cantão (Guangdong). Iniciou-se então um comércio intenso e altamente lucrativo que duraria oito anos. No entanto, em 1521, a situação inverteu-se, pois o poder naval dos portugueses assustou as autoridades chinesas. E como as embarcações portuguesas traziam apenas produtos da Ásia do Sul, não eram um parceiro necessário aos olhos chineses.
Os portugueses, bem recebidos nos portos do País do Sol Nascente, enfrentaram a hostilidade dos oficiais do Império do Meio.
Durante dois decénios, aventureiros portugueses continuaram a frequentar o litoral da China, desafiando os mandarins regionais, mas contando com alguma cumplicidade de populações costeiras. Era um jogo do rato e do gato, que muitas vezes teve um fim trágico, como tão bem relatou Fernão Mendes Pinto em “A Peregrinação”, publicada postumamente em 1614. Nas suas deambulações pelo mar da China, alguns mercadores chegaram às praias de Tanegashima, em 1543. A descoberta do Japão pelos portugueses alterou radicalmente a situação: embora de relações cortadas, os chineses desejavam a prata nipónica, e os japoneses procuravam a seda do Celeste Império. Logo os aventureiros lusos entraram neste jogo de trocas. Bem recebidos nos portos do País do Sol Nascente, continuaram a enfrentar a hostilidade dos oficiais do Império do Meio, mas persistiram e demonstraram, simultaneamente, que tinham poder militar para derrotar a pirataria que infestava o litoral chinês.
A população da cidade foi sempre maioritariamente chinesa. Esta imagem
dos arquivos da National Geographic de 1969 documenta a pressão demográfica sentida neste curto território.
Fotografia Joe Scherschel
Finalmente, no início dos anos 1550, as autoridades de Cantão reconheceram a importância estratégica dos “frangues” – esses estranhos bárbaros, vindos de longe, hábeis no comércio, eficazes na guerra, mas pouco numerosos. Aos poucos, mostravam-se úteis e menos ameaçadores. Gente desorganizada, actuando a título privado, os aventureiros do mar da China ganharam poder negocial quando a Coroa interveio no negócio sino-nipónico e monopolizou a rota China – Japão. O fidalgo Leonel de Sousa chegou à região em 1553 e conseguiu negociar com os mandarins em nome de todos os portugueses. Em 1554, obteve-se, finalmente,
autorização para o estabelecimento na foz do rio das Pérolas, dez anos depois de terem iniciado o trato da prata e da seda.
No início dos anos 1560, Macau era já o porto dos portugueses na China.
Nos anos que se seguiram, os agentes lusos dispersaram-se por várias ilhas do delta, mas o monopólio decretado pela Coroa levou a que a circulação entre a China e o Japão passasse a ser feita por uma grande nau, cuja viagem começava e acabava em Goa. Em 1557, a nau fundeou em Macau e fez aí a longa escala de dez a onze meses que antecedia a passagem para o arquipélago do Sol Nascente, enquanto os mercadores vendiam as especiarias, compravam a seda nas feiras de Cantão e aguardavam a mudança da monção. A qualidade do porto levou a que nos anos seguintes a grande nau do trato, imortalizada pelas imagens dos biombos namban, repetisse a escala, o que motivou uma rápida concentração dos mercadores nesse porto. No início dos anos 1560, Macau era já o porto dos portugueses na China. As primeiras casas pouco consistentes começaram a dar lugar a outras de sobrado, com vários andares; o povoado ganhava perenidade e a riqueza do comércio dava-lhe brilho.
Um dos primeiros mapas minuciosos
de Macau data de 1639, pela mão do cosmógrafo António de Mariz Carneiro. Imagem "Descrição A Fortaleza de Sofala e das Mais da Índia", Gravura 51.
O início da década de 1560 foi marcado, por isso, pela hesitação dos mandarins. Macau era uma cidade aberta, sem muralhas que a defendessem, mas poderia tornar-se numa colónia de estrangeiros incrustada no território do Celeste Império, o que gerava receios num país repetidamente invadido ao longo dos séculos. Uma vez mais, a crise foi superada por uma nova demonstração de “utilidade” pelos portugueses. Fornecedores de prata nipónica, vencedores da pirataria, os homens de Macau colaboraram, em 1564, no combate a uma guarnição que se rebelara. O poder de fogo dos navios lusos foi decisivo e o crédito obtido permitiu que a cidade crescesse à sombra dos lucros do comércio sino-nipónico.O último terço do século XVI correspondeu a um período de riqueza e de cosmopolitismo, que deixou a sua marca indelével na cidade. Macau desenvolveu-se em torno de dois pólos – um católico, de matriz luso-asiática, e um chinês, composto predominantemente por chineses de Fujian. Nesta época, eram sobretudo as redes de Fujian (província a norte de Guangdong, onde se localiza Macau) que controlavam os circuitos marítimos do comércio externo chinês, pelo que os seus agentes logo se instalaram nesta nova escápula do comércio oceânico na Ásia.
O espírito da cidade de Macau era um produto desse
encontro mestiçado e contraditório.
Os portugueses, por sua vez, formavam um grupo mestiçado, típico da sua diáspora asiática. É sabido que não chegaram mulheres europeias a Macau no século XVI, pelo que os “portugueses” da cidade eram compostos por um punhado de homens nascidos em Portugal e por um grupo bem mais numeroso de luso--asiáticos, filhos ou netos de portugueses do reino, mas cujas mães eram indianas, malaias, siamesas, chinesas ou japonesas, por exemplo, e cujos pais já podiam ser mestiços nascidos na Índia ou em Malaca, na primeira metade da centúria quinhentista. Tinham, pois, uma aparência asiática, sabiam línguas locais, muitos tinham sido educados em meios não-cristãos, ou pelo menos familiares às crenças, lendas e folclore das mais variadas partes da Ásia.
Ao mesmo tempo, vestiam à europeia, usavam chapéu, eram católicos e tinham nome português. Fruto de dois mundos diferentes, correspondiam, sem dúvida, ao espírito da cidade de Macau, ela própria um produto desse encontro mestiçado e contraditório, em que uma cidade habitada maioritariamente por não-cristãos que não falavam português era afinal um pólo irradiador do cristianismo e da cultura portuguesa pela Ásia Oriental.
O padre jesuíta Manuel Teixeira, aqui fotografado para uma reportagem da National Geographic de 1992,
foi o autor de uma vasta obra sobre Macau. Fotografia Joe Scherschel.
A cidade cresceu significativamente nos últimos anos de Quinhentos, mas todos os edifícios continuavam a ser construídos em madeira, ao modo da terra, inclusive as igrejas.
Actualmente, as ruínas de São Paulo são um dos ex-líbris da cidade – a imponente fachada de pedra da antiga igreja dos Jesuítas, cuja construção decorreu nos primeiros anos do século XVII, até 1640. O resto do edifício, contudo, era todo de madeira, pelo que a urbe macaense quinhentista teria um aspecto mais próximo ao de uma cidade asiática do que a uma cidade colonial tradicional.
A sua evolução era seguida atentamente pelas autoridades chinesas. Vale a pena recordar que a autorização para a fixação dos portugueses num porto do rio das Pérolas resultou, sobretudo, da satisfação de interesses específicos dos mandarins de Cantão. No entanto, essas decisões foram sempre supervisionadas pela capital e, com o passar do tempo, Macau tornou-se um pólo da política externa chinesa por onde passavam diplomatas em representação de diversos países ocidentais.
É atribuído ao jesuíta Carlo Spínola o projecto da Igreja da Madre de Deus. Enviado ao Japão (que proibira todos os pregadores em 1614), ele viria a ser martirizado em fogo lento em 1622. Imagem Colecção particular de Daniele Frison.
A aparição de concorrência europeia na região, na viragem do século XVI para o XVII, e o fim do trato com o Japão, em 1639, puseram em cheque o modelo mercantil em que assentou a emergência de Macau, mas entretanto a cidade criara raízes, quer por via da sua população mestiça quer pelo desenvolvimento de circuitos comerciais com outras regiões asiáticas. Por isso, foi capaz de sobreviver a todos os desafios a que foi sujeita.
Cidade chinesa, apesar de administrada por portugueses durante cerca de 450 anos, perseverou dentro dessa lógica de um convívio gerador de uma ligeira fusão e, porque nunca se tornou numa cidade colonial, foi sempre vista como um parceiro interessante pelas autoridades chinesas… até aos nossos dias.
A indústria do jogo diversifica a oferta e descongestiona o centro histórico. A aposta de Macau nos casinos começou com o Casino Lisboa na década de 1970. Fotografia Paulo Barata.
MACAU EM DATAS
Séc. XIV a XVI Pescadores de Cantão
e Fujian estabelecem-se na península.
1553 Primeiro desembarque
de portugueses no território,
embora clandestino.
1557 Portugueses autorizados a
fixarem-se em Macau.
1569 Fundação da Santa Casa
da Misericórdia.
1576 Criada a diocese de Macau
por bula de Gregório XIII.
1622 A mais forte tentativa holandesa
de tomar a cidade é repelida.
1638 Portugueses expulsos do Japão. Comércio com a China afectado.
1637-40 Conclusão das obras da Igreja
de Madre de Deus, anexa ao Colégio
de São Paulo.
1728 Fundação do seminário jesuíta
de São José.
1762 Jesuítas expulsos de Macau.
1835 Incêndio destrói Igreja da Madre
de Deus e o Colégio de São Paulo.
1841 Afirmação de Hong Kong como colónia britânica gera crise em Macau.
1850 Legalização do jogo no território.
1862 Tratado de Tiajin reconhece que Macau é uma colónia portuguesa.
1906 Emitidas as primeiras patacas.
1966 Motim de chineses pró-comunistas leva à renúncia portuguesa de ocupação perpétua sobre Macau.
1970 Primeiro casino de grande escala
do território: Hotel e Casino Lisboa.
1976 Macau passa a ter o estatuto de território chinês sob administração portuguesa.
1987 Declaração sino-portuguesa
sobre o futuro de Macau.
1999 Retorno de Macau à China.
2001 Fim do monopólio do
jogo da Sociedade de Turismo
e Diversões de Macau.
2005 Receitas do jogo ultrapassam,
pela primeira vez, as dos casinos de
Las Vegas (EUA). O centro histórico
é classificado pela UNESCO como Património Mundial.
João Paulo Oliveira e Costa é director do Centro de História de Além-Mar e consultor de História da Expansão da National Geographic-Portugal. Esta reportagem foi originalmente publicada na edição especial "Macau Património Mundial", de Março de 2011.