Se imaginar a Lusitânia como um território conquistado pelos romanos correspondendo, de forma aproximada, ao que é hoje Portugal, ficará surpreendido com os reparos que a historiografia coloca actualmente a esta visão geográfica do nosso passado remoto. Reconhece-se que essa ideia foi forjada pelos manuais que formaram gerações de portugueses, mas, antes deles, por muita da produção histórica que abordou o tema desde o século XVI. Embora já tenha sugestivos antecedentes, foi em particular a partir do século XIX que esta equivalência ganhou cores marcadamente nacionalistas, tendo continuado bem viva a mesma tradição na primeira metade do século XX.

É importante esclarecer que o tratamento deste tema nada tem que ver com a avaliação de uma suposta ligação histórica entre os antigos lusitanos e os portugueses. Procura-se, acima de tudo, uma imagem breve do seu território e das suas gentes, de alguns dos seus traços mais originais, tendo como base a visão de outros, mas na qual não se pode vislumbrar uma correspondência geográfica. A Hispânia entra na rota dos povos do Mediterrâneo Oriental pelo menos desde o século IX a.C., momento em que começam a ganhar um carácter sistemático os contactos de fenícios com o Extremo Ocidente e que nela se instalam algumas comunidades originárias da longínqua Tiro. 

No entanto, os textos que nos dão conta da fisionomia destes povos do extremo da Europa devem-se essencialmente aos autores clássicos. É essa visão de viajantes gregos e conquistadores romanos que nos vão dando uma perspectiva deste mundo distante, tanto do ponto de vista geográfico como no plano cultural.

Santuario romano
ALEXANDRE VAZ

O santuário romano do Alto da Vigia, em Sintra, foi redescoberto no século XXI. Francisco de Holanda, porém, deixara no século XVI um desenho conjecturado de como poderia ser a disposição do culto ao deus Oceano, após tomar conhecimento da descoberta de uma ara com inscrições e de a mesma ter sido mostrada a Dom Manuel I.

O fim das terras e os enigmas do mar

Estes textos falam de um território que estava para lá do mar interior (do “nosso mar”, diziam os latinos), que era banhado pelo Oceano, essa imensidão de água que circundava o universo e no qual diariamente mergulhavam o Sol, a Lua e os astros. Esta é a primeira ideia que a geografia antiga tem da fachada ocidental da Hispânia, em particular do seu ponto extremo, só para alguns o promontório Magno ou Olisiponense.

Tornou-se famosa a estranha afirmação de Posidónio segundo a qual “o Sol é maior quando se põe, nas regiões vizinhas do Oceano, e que, ao extinguir-se, tem um som semelhante ao do mar a sibilar, pelo facto de cair nas suas profundezas” (Str. 3.1.5). É certo que Estrabão, que recolhe esta notícia, se encarrega de a desmentir, mas ela, por si, ilustra bem as fantasias que podiam andar associadas a este mundo desconhecido.

Para os antigos, esse confim do mundo tinha especial significado e foi particularmente assinalado pelos romanos, para quem a chegada ao extremo das terras habitadas e do seu domínio era um aspecto carregado de simbolismo. Não admira que um dos legados de Augusto, ao completar a conquista do Noroeste da Hispânia aí tenha colocado uns altares (as Aras Sestianas), homenageando com eles a figura desse imperador, sublinhando o seu domínio que se estende até ao extremo do mundo. Também se explica que, no Alto da Vigia, sobre a Praia das Maçãs, tenha existido um santuário sobranceiro ao Atlântico, dedicado ao Sol, à Lua e ao Oceano, onde se homenageiam várias figuras imperiais e se pede “pela eternidade do império e pela saúde do imperador”. Este é um espaço propício ao desenvolvimento de mitos e, em torno dele, os gregos inventaram coloridas narrativas, como alguns dos famosos trabalhos de Hércules, um dos quais consiste em roubar os bois a Gérion, que habitava na ilha de Eritea, uma das ilhas do arquipélago gaditano, a qual, segundo informação de Plínio, era colocada por alguns autores “em frente da Lusitânia”. É neste contexto que o semideus teria procedido à abertura que permitia a passagem entre o Mediterrâneo e o Atlântico, dando origem às duas “Colunas” que se designam genericamente com o seu nome. Não menos fantasiosas são algumas das informações a respeito do Atlântico, um espaço povoado de monstros e seres mais ou menos fabulosos, mas marcados sempre pela sua natureza excepcional.

TRABALHOS HERCULES
Museu do Louvre, em Paris

Um dos trabalhos de Hércules, repetidamente aproveitado pela arte, foi   roubo dos bois de Gérion. O episódio teria tido lugar na ilha de Eritea, que Plínio situa em frente da Lusitânia.

No amplo elenco de maravilhas que povoavam o Atlântico, que emerge na obra de Plínio, o Velho, pode recolher-se esta informação: “Tenho fontes de informação, ilustres membros da ordem equestre, que dizem ter sido avistado por eles, no oceano Gaditano, um homem marinho com o corpo totalmente semelhante ao nosso; e que este subia aos navios durante a noite e imediatamente se começava a adernar o lado em que ele se sentava e, se ali permanecia muito tempo, chegava mesmo a afundá-los /…/. Turrânio relatou que deu à costa no mar Gaditano um animal que entre as duas aletas da ponta da cauda media 16 codos [cerca de 7 metros], tinha cento e vinte dentes, os maiores de nove polegadas, os mais pequenos de seis” (Plin. nat. 9.10-11). Plínio, como se vê, recolhe informação que circulava e que traduzia certamente uma ideia bastante difundida, mesmo em pessoas de certo nível social, sobre os monstros e prodígios com que a imaginação povoava o Atlântico, como o homem marinho ou estranhos animais, tão espantosos pela sua dimensão como pelas suas características. 

São as informações a respeito das descomunais dimensões de criaturas marinhas (como peixes e moluscos) que, sendo na sua generalidade idênticas às que se conheciam, apresentavam dimensões de tal modo excepcionais, que eram dignas de registo como fenómenos extraordinários.

Neste caso, é ainda o geógrafo Estrabão que nos apresenta a mais rica visão global desse universo marinho: “Também os congros parecem monstruosos, já que ultrapassam em tamanho os que se encontram nas nossas regiões, e também são maiores as moreias e o resto destes peixes – diz-se que em Carteia existem búzios e múrex com 10 cotilas [2,39 litros] e, nas regiões mais exteriores, a moreia e o congro pesam mais de 80 minas [36,81 kg], o polvo um talento [27,53 kg] e as lulas e espécies similares têm 2 codos [cerca de 90 cm]. Também é grande o número de atuns que aqui confluem, provenientes do resto do litoral exterior; são gordos e grossos. Alimentam-se da bolota de uma azinheira que cresce no mar /…/” (Str. 3.2.7).

Em última análise, também alguns fenómenos naturais acabaram por causar surpresa aos viajantes e conquistadores da Hispânia. Entre os aspectos mais salientados pelos autores clássicos, especialmente pelos geógrafos, encontra-se o espanto pela dimensão das marés e os seus efeitos, tidos, naturalmente, como algo de excepcional, tendo em conta que a experiência de gregos e romanos se limitava ao âmbito do Mediterrâneo. É uma vez mais Estrabão quem nos proporciona uma visão mais completa dessa realidade, fornecendo elementos concretos que traduzem precisamente o seu carácter único, digno de registo entre as curiosidades científicas que não podiam escapar a um geógrafo bem informado.

Apesar de nunca ter estado na Hispânia, o geógrafo do século I d. C., recompilando informação que circulava no seu tempo, descreve-as desta forma: “As subidas do mar durante as enchentes da maré inundam-nas de tal maneira que nelas se navega nada pior do que nos rios, mas até melhor, pois a navegação parece-se com as descidas fluviais, sem qualquer obstáculo, e ainda com o mar a ajudar, devido à enchente da maré, como se fosse o curso de um rio.” Não deixa, de qualquer modo, de assinalar os seus perigos, causados pela impetuosidade de algumas das marés, que chegam a arrastar animais na sua torrente.

chicanes
LUÍS QUINTA

O castro de Chibanes, uma fortificação do concelho de Palmela, foi sucessivamente ocupada desde o terceiro milénio antes de Cristo. Tudo indica que, durante as campanhas militares romanas, terá sido palco de confrontos entre os exércitos invasores e a população indígena. Posteriormente, foram-lhe reservadas funções militares e domésticas.

Visões sobre os recursos da Lusitânia

Se o mar oferece estes prodígios, também a terra proporciona alguns fenómenos dignos de nota. Entre os mais conhecidos encontra-se o fabuloso caso das éguas fecundadas pelo vento, que se regista no território da antiga Olisipo (actual Lisboa). O facto maravilhoso é recolhido por vários autores, que dele dão diversas particularidades, sendo especialmente sugestivo o resumo que dele faz o enciclopedista Plínio, o Velho (século I d. C.): “É seguro que na Lusitânia, junto ao ópido de Olisipo e ao rio Tejo, as éguas, viradas para a brisa do favónio, recebem um sopro fecundante e assim concebem, gerando uma cria velocíssima, mas que não ultrapassa os três anos de vida.”  A fama dos cavalos lusitanos que é também conhecida dos autores clássicos vem, provavelmente, de muito longe, sendo notório que os romanos se referem com frequência às capacidades da cavalaria do inimigo.

Portanto, a fisionomia da Lusitânia não se fazia apenas de fantasias, mas era igualmente marcada por realidades, entre as quais se referem os seus recursos mineiros. De uma forma geral, o Ocidente da Hispânia tinha ganhado fama, desde a mais remota Antiguidade, pela sua riqueza em metais preciosos, transformando-se, assim, numa espécie de Eldorado do mundo antigo.

Sabemos que os fenícios desde cedo perceberam isso, e da sua apetência pelos metais preciosos não restam grandes dúvidas. No entanto, os verdadeiros exploradores intensivos desses recursos foram os romanos, que levaram a outro nível o seu aproveitamento dos recursos minerais e geológicos deste território. Nos primeiros tempos de ocupação, Roma retirou da Lusitânia amplas riquezas, entre as quais se tornou particularmente famoso o ouro do Tejo, a ponto de este ser conhecido como um dos principais rios auríferos do mundo. 

Exploraram em especial os depósitos das suas margens e dos seus afluentes (Erges, Pônsul, Ocreza, Alagón, Jerte), actividade de que ficaram, em alguns casos, amplas extensões de seixos lavados, que deram origem às chamadas “conheiras”, das quais o mais notório exemplo é o Conhal do Arneiro, junto das Portas de Ródão. Apesar da intensa exploração no período romano, o ouro de aluvião do Tejo continuou a ser recolhido, em período medieval, moderno e até ao século XIX. A fama do rio Tejo teve amplos ecos na literatura latina e, em certos autores, gerou-se mesmo a ideia de que nele corriam, além de ouro, também pedras preciosas. Parece tratar-se de mais uma invenção da literatura do tempo, mas assente provavelmente na circunstância de ser bem conhecida a exploração de granadas, no monte Suímo, em Belas, nas proximidades da antiga Olisipo (Lisboa).

 

 

Visões sobre o território e as suas gentes

Habituados a muitos séculos de fronteiras relativamente estáveis, o nosso olhar moderno pode ter dificuldade em compreender a instabilidade que caracterizava o espaço ocupado pelos diversos povos no mundo pré-romano. Ainda que possamos ter uma ideia do território dessas entidades, especialmente depois de a conquista romana ter fixado as populações, pode ser complexo definir a distribuição espacial de alguns deles ao longo do tempo, como acontece com os lusitanos.

Uma das principais dificuldades reside em explicar a razão pela qual alguns autores parecem situá-los no extremo ocidental entre o Douro e o Tejo e, ao contrário, as guerras que receberam o seu nome e nas quais se tornou famoso Viriato, colocam a sua acção em terras muito distantes. A tradição historiográfica, reflectida nos manuais escolares pelos quais muitos de nós estudaram, pretendia que os lusitanos e Viriato estivessem especialmente vinculados à serra da Estrela, aspecto que faz parte das convicções mais generalizadas. Na realidade, Viriato andou sempre muito distanciado desses lugares que lhe atribuíram sem olharem bem para as narrativas clássicas, que parecem totalmente claras. 

Basta ler Apiano, que descreve os principais episódios das guerras lusitanas, para se perceber que Viriato e os seus companheiros andaram em campanha contra os romanos especialmente por terras do extremo sul da Hispânia, às vezes em zonas bem distantes daquelas que tradicionalmente se atribuem à Lusitânia.

De resto, a província da Lusitânia, que só virá a ser criada nos finais do século I a.C. (mais de um século depois da morte de Viriato, em  139 a.C.) não inclui quase nenhum dos territórios em que ocorreram os principais momentos dos conflitos. Talvez a única excepção notória seja a incursão dos lusitanos no espaço dos cónios, aliados dos romanos, e o ataque à sua cidade, Conistorgis, que se costuma situar em terras algarvias.

Parece evidente que, nas chamadas guerras lusitanas, se combate pelo controlo de cidades, de territórios, ou melhor, pelo controlo de terras férteis. Não é por acaso que essa questão é sublinhada pelos próprios chefes romanos, com Galba à cabeça. Este consegue, em determinado momento, forçar os lusitanos a depor armas com a falsa promessa de terras, reconhecendo ao mesmo tempo que essa era a principal carência desse povo. E vai ser o comportamento indigno do romano que vai dar origem, como relatam os textos antigos, ao conflito que se desenvolveu, especialmente com Viriato, o qual estaria entre os que escaparam ao massacre dos lusitanos indefesos. Na descrição dos conflitos, sobressaem alguns aspectos que, para os autores clássicos, marcam a natureza do povo e que reflectem uma cultura bem distinta da dos conquistadores.

Devemos, em primeiro lugar, ter em conta que estes nunca consideram ilegítima a sua presença na Hispânia, nem as acções que desenvolvem para ir estendendo o seu domínio. E, como é habitual na sua visão das coisas, os inimigos, que têm outros comportamentos e uma ética diferente nas atitudes e na guerra, são normalmente latrones (“bandidos”) e, por isso, se compreende que Viriato seja às vezes visto como o rex latronum (“o chefe dos bandidos”). Os latinos estranham as suas técnicas de guerra, sublinhando a forma desordenada como se organizam a combater ou batem em retirada, o modo como preparam as emboscadas e outros aspectos que se apresentam como estranhos à sua tradição. É natural que um olhar do outro se associe geralmente a uma visão negativa do seu comportamento, até porque tem a condição de inimigo.

No caso concreto da figura de Viriato, todavia, dá-se uma circunstância muito especial. Surpreendem, em primeiro lugar, as pormenorizadas informações que temos a seu respeito, com indicações sobre a sua origem, os seus hábitos, não faltando o episódio do seu casamento e, naturalmente, o da sua morte traiçoeira. Esse retrato de Viriato, que nos chegou especialmente através do texto de Diodoro Sículo, que elogia tanto as suas qualidades, já foi interpretado como o perfil de alguém que parece corresponder a um modelo filosófico grego, mais baseado, portanto, em lugares-comuns do que no conhecimento da personagem real, que é perfeitamente natural. Trata-se, portanto, de um retrato construído à medida de um pensamento filosófico e não tanto de informação biográfica que resulte de um conhecimento real dessa figura.

Esta é a visão de uma parte dessa Lusitânia mais antiga, da que é palco das primeiras incursões militares romanas no Ocidente. A construção mais tardia, levada a cabo por Augusto nos finais do século I a. C., vai excluir a maioria destes territórios do que ele irá denominar como província da Lusitânia, que tem uma fachada atlântica que se estende do Guadiana ao Douro, mas que na sua parte setentrional penetra até às terras de Toledo e Ávila.

Compreende-se que seja esta última realidade, que se manteve ao longo de tantos séculos, que marcou a historiografia e que uma tendência para simplificar as coisas tenha procurado ver nela uma prefiguração de Portugal. Não podemos, enfim, esquecer que, como tudo o está sujeito a um processo evolutivo, também a questão dos lusitanos e do seu território nos deve chamar a atenção para o perigo das visões estáticas da História. 

Artigo publicado originalmente na 39ª Edição Especial História da National Geographic – A Lusitânia Romana, Fronteira do Mundo Antigo.