20 de Maio de 1942. É um dia especial na vida da capital. À estação do Rossio, em Lisboa, chegam três comboios oriundos de Berlim, trazendo duas centenas de diplomatas, cônsules, jornalistas e empresários americanos surpreendidos pelo ataque japonês a Pearl Harbor em Dezembro de 1941 e com a declaração de guerra dos Estados Unidos às potências do Eixo. Durante meses, estes dignitários estiveram retidos no campo especial de Bad Nauheim, prisioneiros de um confronto que não anteciparam. Do lado alemão, há outros tantos, retidos nas cidades americanas pelos mesmos motivos. Após meses de negociação, a neutral Lisboa foi o destino para a troca de prisioneiros de guerra. Às 19 horas, chega ao Rossio o primeiro comboio. Na plataforma, Agostinho Lourenço, director da polícia política, supervisiona as operações, acompanhado por vários polícias e representantes do Ministério dos Negócios Estrangeiros e das legações envolvidas.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
O barão Von Hoyningen-Huene, aqui fotografado durante uma troca de prisioneiros de guerra no porto de Lisboa, foi o embaixador alemão em Lisboa de 1934 a 1944. Foi interrogado depois da guerra
no Tribunal de Nuremberga.
Cada passageiro entrega o passaporte, que fica retido como caução até embarcar de regresso a casa num dos cinco vapores colocados à disposição. Lourenço zela para que não existam atritos. Vários membros da delegação americana dirigem-se com voracidade aos restaurantes vizinhos. Outros matam as saudades da praia no Estoril. A imprensa destaca a presença de Reynolds Packard, jornalista da United Press, que se celebrizara na cobertura da Guerra Civil Espanhola, mas ignora dois homens cujos actos nas próximas horas definirão muito do que se mostrará ao mundo nos próximos três anos. Um é alemão, oficial das SS, a quem é atribuída a autoria da célebre fotografia de Estaline com Ribentropp assinando o pacto de não-agressão entre a Alemanha e a URSS, em 1939. Chama-se Helmut Laux.
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Nesta rara fotografia de data indeterminada, Helmut Laux figura à direita, com a sua inseparável máquina fotográfica. Detido após a Segunda Grande Guerra Mundial, Laux defender-se-ia, alegando que fora apenas um repórter fotográfico e viria a trabalhar na imprensa alemã após a guerra.
Em teoria, vem em representação da revista Berliner Illustrierte Zeitung, mas a sua missão é delicada: vai tentar seduzir o companheiro de viagem, um homem que conhece desde 1940 e sobre o qual Joseph Goebbels, numa entrada do seu diário sensivelmente nesta data (19 de Maio de 1942), considerara: “Os seus ataques são dirigidos contra a propaganda alemã e visam-me pessoalmente. Nunca tive Lochner em grande conta”. O segundo interveniente é esse mesmo, o americano Louis P. Lochner, que foi, até à declaração de guerra, o correspondente da Associated Press em Berlim, recebendo o Prémio Pulitzer em 1939 pela sua cobertura de atrocidades nazis, como a Noite de Cristal de 1938. Fez o que pôde como repórter de um país neutro, encurralado num sistema censório e com a missão de contar ao mundo o que se passava em Berlim.
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O Boeing 314 Clipper foi um dos mais famosos hidroaviões da Pan American. Eram comuns em Portugal antes e durante o conflito.
Agora, está aliviado por regressar a casa, embora certamente se interrogue sobre o que será o seu futuro num mundo com novas fronteiras. No comboio com destino a Lisboa, segundo oficial alemão contará aos seus interrogadores em 1946, Laux propõe a Lochner um modelo de negócio: ele criaria uma agência na Alemanha, a Bureau Laux, e as duas partes continuariam a trocar fotografias. O regime alemão enviaria fotografias do quotidiano na frente e da actualidade política e o mesmo sucederia a AP em Nova Iorque e Londres. O facto de os países envolvidos estarem em guerra seria um pormenor na operação, desde que se assumisse um cordão sanitário, um intermediário capaz de assegurar o negócio num país neutro. Lochner aceita a proposta com a condição de que a sede da AP, em Nova Iorque, seja informada. Recomenda que Laux discuta o tema com uma terceira pessoa: o jornalista Luiz Caldeira Lupi, correspondente da AP em Lisboa. Lupi e Laux assinam pouco depois um contrato. Está em curso, na Primavera de 1942, um dos mais estranhos negócios da Segunda Guerra Mundial. Não é possível calcular quantas fotografias serão trocadas entre Nova Iorque e Berlim graças a tal secreto a AP em Nova Iorque e Londres. É provável que entre dez mil e quarenta mil fotos tenham sido enviadas dos Estados Unidos para a Alemanha e o mesmo número tenha atravessado o Atlântico na direcção contrária. Até recentemente, a opinião pública internacional acreditava que todo o comércio germano-americano teria sido interrompido com a entrada dos Estados Unidos na guerra, no final de 1941. Este dossier prova que não.
“Lisboa tornou-se um centro internacional de notícias que dificilmente poderia ser mais complicado” (Joseph Goebbels)
Graças às investigações de alguns académicos alemães, o esquema foi posto a nu em 2017, o que permitiu também conhecer o papel nele desempenhado por Lupi e pelo regime salazarista. Sabia-se que, antes da entrada dos Estados Unidos na guerra, a Alemanha permitia a exportação de fotografias sobre o conflito, mas desconhecia-se que a troca prosseguira, conduzida apenas pela Associated Press. A investigação confirmou que a agência preparou, com anos de antecedência, a sua permanência em Berlim, no caso de os jornalistas estrangeiros serem obrigados a deixar a Alemanha, como sucedeu.
A ponta do novelo
O assunto foi investigado num primeiro momento por uma professora da Universidade de Potsdam, Harriet Scharnberg, que publicou um artigo com o título "O A e o P de propaganda – a Associated Press e o fotojornalismo nazi". Scharnberg dedicou a sua pesquisa ao papel desempenhado por fotógrafos alemães que trabalhavam para a AP e eram simultaneamente membros das SS.
Biblioteca Nacional
Vários jornalistas visitaram as potências europeias antes do início da guerra em acções de propaganda. O português Torres de Carvalho publicou várias entrevistas com dirigentes alemães em “Nazis”.
Outro investigador, Peter Longerich, voltou a sua atenção para o papel assumido pelos burocratas responsáveis pela propaganda do regime hitleriano. Coube a um terceiro académico, Norman Domeier, a revelação pormenorizada do intercâmbio fotográfico. O trabalho desses investigadores e as críticas ao papel dúbio da organização durante o conflito forçaram a AP a admitir o esquema. Semanas depois, num longo documento, a AP apresentou à opinião pública as razões para o seu comportamento, embora mantivesse restrito o acesso de investigadores aos seus arquivos. Ao pesquisar a figura do jornalista Louis Paul Lochner (1887 – 1975), cujo espólio se encontra aberto à consulta na Sociedade Histórica do Wisconsin, Domeier deparou com um documento de 40 páginas, escrito em inglês por um funcionário de nome Willy Brandt (sem relação com o político do mesmo nome). Muito antes da declaração de guerra, desafiando as chefias de Nova Iorque, Lochner providenciara a separação da operação da AP na Alemanha em duas empresas distintas. Uma lidava com o noticiário e foi conservada como empresa estrangeira; a segunda foi transformada numa empresa de direito alemã e a sua especialidade era a produção e comercialização de fotografias. Hitler não permitia o trabalho de fotógrafos estrangeiros na Alemanha, pelo que a AP alemã passou de imediato a valer milhões, graças à dimensão da operação. Como empresa alemã, foi obrigada a despedir os trabalhadores judeus logo após a sua constituição. O documento de Willy Brandt era uma confissão, e começava com uma patética frase: “Chefe, não fique zangado comigo!” Escrito em 1946, relatava como a AP alemã trabalhara em ligação com uma agência de nome Laux, criada por um SS-Obersturmführer, Helmut Laux, fotógrafo pessoal do ministro dos Negócios Estrangeiros Ribbentrop.
Brandt descreveu o comércio de fotos: um correio aéreo era enviado para Lisboa, diariamente, por mala diplomática, com as fotos que os alemães permitiam que o público norte-americano tivesse acesso; Luís Lupi e Firmino Marques da Costa (que conduzia uma agência fotográfica, cujos custos suportava na delegação lisboeta do Comércio do Porto, um dos seus postos profissionais) providenciavam cópias das fotografias, enviando-as para a sede da AP em Nova Iorque e para a delegação de Londres.
Inicialmente, as fotos da AP enviadas por mala diplomática para Berlim eram reservadas a Hitler, Himmler, Goebbels e poucos mais. Com o tempo, as fotos começaram a ser usadas em material de propaganda. Tornou-se também frequente a manipulação de fotografias. Pressionada, a AP não conseguiu clamar desconhecimento do negócio. Argumentou que o departamento de censura montado em Washington durante a guerra (curiosamente, chefiado por um jornalista da agência) aprovara o que se passava. O negócio com o Bureau Laux – defendeu a agência – permitiu que a informação fotográfica entre os Estados Unidos e a Alemanha não tivesse conhecido um blackout já que, mesmo defeituosa, era preferível existir alguma informação a nenhuma.
Lisboa como centro de trocas
“Lisboa tornou-se um centro internacional de notícias que dificilmente poderia ser mais complicado”, escreveu Goebbels em 1941, cerca de oito meses antes do encontro na capital entre Laux e Lochner. Hitler mostrava-se cioso de ver documentos de guerra. Não é difícil imaginar que, no seu círculo restrito, tenha sido cozinhada esta solução imaginativa. Pouco depois da conversa entre os dois homens no comboio, Lupi telegrafou para Berlim, confirmando que a sede em Nova Iorque concordava com as premissas do negócio. Mais perto do final do ano, o jornalista português enviou a Helmut Laux o contrato assinado – contrato esse que o oficial das SS mostrou com regozijo em Berlim, embora preferisse não mencionar que a AP não assinara directamente nada – apenas um representante semi-oficial da agência. A AP, por sua vez, em documentos internos, designou o processo pelo nome de código “Wurzel”.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
A diplomacia portuguesa enfrentou um dos seus maiores desafios no final da década
de 1930, procurando manter a improvável neutralidade. Na fotografia de 1937, Salazar figura entre o embaixador alemão e o general Karl-Erich Külenthal.
A partir daqui, o esquema de intercâmbio foi simples: a AP enviava para Lisboa as fotos que pretendia que chegassem à Alemanha. Luís Lupi (1901 – 1977) liderava a representação da AP em Lisboa desde a década de 1930, desafiando a polícia política e a celebrada neutralidade desenhada por Salazar. Com fama de anglófilo e evidente colaboração com os serviços ingleses durante a Guerra Civil Espanhola e talvez nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial, Lupi não se fez rogado em trabalhar com o outro lado. Ao abrigo deste acordo, cabia-lhe fazer cópias com a ajuda de Marques da Costa (que trabalhava também no Diário de Notícias e que integraria, em Setembro de 1942, a redacção do novo Diário Popular), entregando-as na Embaixada da Alemanha que, por sua vez, as enviava para Berlim por mala diplomática. As fotografias alemãs que chegavam a Lisboa eram duplicadas e endereçadas a Nova Iorque e a Londres.
Não se sabe quanto a AP e Luís Lupi terão lucrado com o negócio, que só cessou com o final da guerra. Mas sabe-se que, já perto do fim das hostilidades, Lisboa foi substituída por Estocolmo, Berna e Istambul. É difícil acreditar que Salazar não tivesse conhecimento do esquema, mas não encontrámos qualquer documentação que o certificasse. A polícia política do ditador aparentemente nunca tentou interferir no assunto, embora sempre acompanhasse as actividades de Lupi. Por muito menos do que esta operação, o jornalista chegou, aliás, a ser preso. Lupi terá tratado com Brandt dos pormenores quotidianos do negócio, mas Laux veio mais vezes a Lisboa, reunindo-se na casa do jornalista português em Pedrouços.
Arquivo Nacional da Torre do Tombo
Horace Zino, adido de imprensa da embaixada inglesa em Lisboa, reúne os jornalistas anglófilos, como Lupi (em pé, à esquerda, de óculos).
Com frequência, Lupi dava essa morada como sede da organização La Prensa Asociada. Conhecem-se pelo menos mais duas viagens. Em Maio de 1943, o Daily Mail noticiou que, no aeroporto de Sacavém [sic], fora detido um cidadão alemão que tentava contrabandear material fotográfico. O seu nome era Helmut Laux e foram-lhe apreendidas duas Leicas, lentes especiais e película dentro de um saco de cabedal que o oficial das SS não declarara na alfândega. Presume-se que Laux, portador de passaporte ministerial, não foi sequer encarcerado porque não há qualquer auto de detenção nas ordens de serviço da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE). Ficou só o embaraço do episódio.
A derradeira visita
A terceira visita de Laux a Lisboa foi agora confirmada no Arquivo Histórico Diplomático. Em 1944, já com o rumo da guerra pendendo para o lado anglo-americano, Helmut Laux e Rudolf Kircher pediram em 21 de Março para visitar Lisboa durante três semanas. Informaram que viriam por Berlim e desejavam tratar de um assunto importante com a secção de imprensa da Legação alemã. O tema – admitiu Helmut Laux, em 1946 – era a renovação do acordo com a Associated Press, que seria de facto assegurada nesta altura. No documento da Legação Alemã, Laux era apresentado como jornalista e funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reich e Kircher simplesmente como jornalista. A PVDE autorizou por despacho de 11 de Abril a visita, mas o processo demorara tanto – e a pressa era tamanha – que os dois alemães já tinham partido de Berlim, pelo que foi pedida nova autorização de entrada, desta vez via Madrid. Ambos entraram na fronteira no dia seguinte. O contrato foi renovado em Maio, com assinatura de Lupi. Semanas mais tarde, no Verão de 1944, o Bureau Laux assegurou uma segunda via de negócio, comerciando fotos por Estocolmo, que garantia mais rapidez na chegada a Berlim das cobiçadas imagens. A história manteve-se oculta durante quase oitenta anos. Lupi não as mencionou nas suas memórias. Marques da Costa propôs, na década de 1980, à Secretaria de Estado da Cultura a aquisição do seu valioso espólio fotográfico, mas Teresa Patrício Gouveia indeferiu a proposta por falta de verbas �� talvez o espólio contivesse mais pistas. Laux e Brandt esforçaram-se por provar, depois da guerra, que tinham sido mero jornalistas durante o conflito. E a Associated Press não teve especial vontade de assumir que negociara com os nazis parte da sua independência. Restavam apenas rumores que estranhavam que tantas fotografias da Alemanha hitleriana publicadas na imprensa americana tivessem a comprometedora legenda: “Via Lisboa”. Hoje percebe-se porquê.
Cinemateca Portuguesa
Casablanca, filme de 1942, dramatiza
a situação dos expatriados aliados em território ocupado – no caso, em Marrocos sob governação de Vichy. O filme termina com a fuga da heroína para a segurança de
Lisboa neutra, mas repleta de espiões.