Os abalos que sacudiam a ilha do Faial há vários dias não prenunciavam nada de bom. E não é pela força do hábito que se pode encarar com descanso as instabilidades da terra. Afinal, não deixa de ser um fenómeno relativamente normal nestas ilhas plantadas a meio do Atlântico, nos instáveis limites de diversas placas tectónicas e a curta distância da dorsal médio-atlântica. A população temeu pelos seus bens mas, como é habitual, entregou-se nas mãos de Deus e resguardou-se em súplicas misericordiosas. Nenhuma entidade divina, porém, poderia conter a força que vinha das entranhas da Terra – às 6h45 do dia 27 de Setembro de 1957, na ponta oeste da ilha, a cerca de cem metros dos ilhéus dos Capelinhos e a um quilómetro da costa, o mar aparentemente calmo entrou em ebulição, dele jorrando colunas de nuvens cinzentas e esbranquiçadas.

A cerca de cem metros dos ilhéus dos Capelinhos e a um quilómetro da costa, o mar aparentemente calmo entrou em ebulição, dele jorrando colunas de nuvens cinzentas e esbranquiçadas. 

José Soares da Cunha, conhecido por todos como mestre Rosairinha, foi o primeiro a detectar algo de anormal, alertado pelos gritos do irmão Daniel, mais abaixo, na estrada do farol. Era ele quem estava no posto de vigia da comunidade baleeira do Comprido, e esfregou os olhos ensonados perante tamanha visão. Estava ali para vigiar a presença de cetáceos, mas o que estava no mar era algo bem diferente de uma baleia. Correu para o farol e alertou o chefe faroleiro, o senhor Avelar, que quase não pregara olho nessa noite devido à forma como a torre abanara. Pouco depois, na cidade da Horta, as autoridades tomaram conhecimento da ocorrência.

O registo do fenómeno pela National Geographic. Fotografia Robert F. Sisson, National Geographic Creative.

Quando chegaram à ponta do Capelo, testemunharam o que lhes tinha sido transmitido por telefone a partir do farol – quatro pontos efervescentes no mar lançavam cinzas, escórias e vapores de água. José Silveira Rafael também vivia na comunidade baleeira. Aos 38 anos, era um homem calejado das intempéries do mar e já assistira a muita coisa. Mas nada como aquilo: “Vi-o rebentar e atirar pedras. Fazia muito barulho, deitava muito fumo. E a noite ficou escura como breu.” Hoje vive no lar de terceira idade da cidade da Horta e a memória prega-lhe algumas partidas, mas os 88 anos são suficientemente lúcidos para não se esquecer dos acontecimentos de 1957. Na altura, Maria Olívia Faria tinha 23 anos e, tal como hoje, vive no Capelo, povoação com localização privilegiada para ver o acontecimento.

“Vi-o rebentar e atirar pedras. Fazia muito barulho, deitava muito fumo. E a noite ficou escura como breu”

“Lembro-me de que primeiro começaram os tremores de terra miudinhos, mas depois os abanões tornaram-se mais fortes, pelo que fui com o meu marido para uma casa mais baixa. Só no dia seguinte, de manhã, é que o meu sogro me disse que tinha rebentado um vulcão.” Num relato apaixonado, continua a desfiar a memória de juventude. Sua e do vulcão. “Como não sabia bem o que era, deu-me grande curiosidade e quis ver: havia água a ferver, parecia um lago, mas não tinha medo nenhum, só me assustava de vez em quando com as explosões. Mas mesmo quando ele deitava coisas para o ar, fumo, areia e pedras, achava que era ao mesmo tempo muito bonito. Mesmo não sendo bom para a agricultura e para as casas, tive um pouco de pena quando me fui embora, porque não consigo mentir – as explosões eram mesmo muito bonitas, sobretudo à noite. Ainda agora, aos domingos, costumo passear com a família até ao vulcão. Está diferente, é verdade, mas continua a ser um bom vizinho.”


Lentamente, a vida vegetal regressa ao local onde, durante anos, apenas proliferaram cinzas. O bracel, planta endémica, foi das primeiras colonizadoras (em cima). Em baixo, um tesouro geológico: um emplastro, ou bomba de lava espalmada.

Também Manuel de Vargas Garcia foi um espectador privilegiado. Vive na cidade da Horta, entretido com o alindamento do seu jardim, e não tem dificuldade em recuar 60 anos no tempo: “Estava no Varadouro a passar férias e senti vários tremores de terra nessa tarde. Claro que fiquei preocupado, mas não liguei muito, tanto mais que à noite, apesar de muito escuro, tudo ficou mais calmo. Mas não dormi nada, porque os abalos voltar a surgir. Quando amanheceu, decidimos voltar para a Horta e só quando chegámos é que soubemos que havia um vulcão. Depois, voltei lá várias vezes para ver o fenómeno.” E o fenómeno marcou-o para toda a vida: “Parecia uma panela de água a ferver, intercalada por explosões. Nessa altura tinha 35 anos, por isso recordo-me perfeitamente. Era, aliás, um sítio que conhecia muito bem, pois aquela baía era um paraíso de fauna e de flora, e costumava ir para ali pescar. Claro que quando apareceu o vulcão, tudo isso acabou.” Mas a nostalgia desses tempos nunca abandonou o espírito de Manuel Garcia: “Sempre que posso, ainda vou lá vê-lo para saber como está o vulcão que vi crescer.”

A proximidade do vulcão com a povoação do Capelo, visível nesta fotografia de Dezembro de 1957, provocou romarias diárias ao local. Fotografia John Scofield e Robert F. Sisson.

A erupção submarina prosseguiu nos dias seguintes, enchendo o lugar de cinzas, escórias, roncos assustadores e cheiros sulfurosos. Os campos de cultivo e as pastagens cobriram-se de cinzento e as casas das imediações, nomeadamente no Capelo e no Norte Pequeno, ruíram ou abateram com a força dos tremores e pela acumulação da cinza. Surgiram, assim, os primeiros sinistrados, embora não houvesse vítimas a lamentar. Cinco dias depois, o vulcão já tinha emergido do mar e formara uma ilhota – baptizada de  ilha Nova – de forma anelar, com 600 metros de diâmetro e 30 de altura. Duas semanas depois, crescera mais 200 e 70 metros, respectivamente. Ao longo do mês de Outubro, com a acumulação dos materiais expelidos, formou-se um istmo que abraçou os ilhéus dos Capelinhos e aproximou a ilhota da costa.


Entre 1957 e 1958, os faialenses foram alunos de uma aula de geologia ao vivo. Da esquerda para a direita: Maria Olívia Faria tinha 23anos em 1957 e vivia a dois passos do vulcão. Aos 38 anos, o mestre Rafael era baleeiro experimentado. Manuel de Vargas Garcia tinha 35 anos e passava férias perto do local.

A actividade incrementou e a coluna de vapores e cinzas atingiu grande altura, sobretudo porque parte da cratera era aberta ao mar, sendo assim inundada pelas vagas. Ninguém sabia o que iria acontecer, mas os receios eram fundamentados – a terra não parava de tremer. Nada que impedisse que, no meio deste turbilhão incandescente, alguns loucos corajosos tenham arriscado a pele para garantir a soberania daquele pedaço de terra fumegante para o Estado português. Havia receio de que a ilha Nova fosse reclamada por outra nação, como senão estivesse já em águas territoriais portuguesas. No dia 13 de Outubro, então, o jornalista Urbano Carrasco, do “Diário Popular”, e o cineasta Carlos Tudela, da RTP, entre outros, desembarcaram na ilha vulcânica e, ziguezagueando entre bombas e cinzas lançadas pela cratera principal, fincaram no solo uma bandeira portuguesa. Regressaram felizes e foram recebidos como heróis – um final feliz para um dos episódios mais surrealistas da história dos Capelinhos. 

A cerca de 20 quilómetros dos Capelinhos e integrada no mesmo alinhamento de falhas geológicas, a extraordinária Caldeira registou também forte actividade fumarólica após a madrugada de 13 de Maio de 1958 Em poucas semanas, felizmente, adormeceu.

Os olhos azuis do senhor Rafael readquire um brilho quando fala dos Capelinhos: “A minha casa ficou cheia de cinzas e areias, mas as paredes aguentaram. O vulcão ali tão perto fez-me ir para Castelo Branco, juntamente com alguns amigos da altura.” Para trás, ficou a vivência na comunidade baleeira do Comprido, mas não a vida do mar: “Aos 38 anos, já tinha arpoado muita baleia, mas, mesmo depois do vulcão, continuei a ser baleeiro. Passávamos entre o vulcão e a costa, mas já não havia tantos bichos como antigamente. Coisas do vulcão.” Mas nem isso faz com que o antigo caçador de baleias ganhe algum rancor ao cone fumegante: “O vulcão foi a minha companhia diária durante muitos anos, mas desde que vim para o lar que não o vejo. Pode parecer estranho, mas sinto um pouco a falta dele.” Quem não tem saudades do Capelinhos é a senhora Maria Olívia, porque, sempre que quer, basta-lhe assomar à janela de sua casa para facilmente o distinguir: “Depois de o ter visto pela primeira vez, a terra continuou a tremer, e depois veio a lava. Voltei lá, mas só uma vez. Chegou-me. Depois, o meu marido disse-me para irmos para a cidade, porque era mais seguro. Fomos a pé até Castelo Branco e reparámos que havia fendas na estrada e que muitas casas tinham ruído. E fomos o caminho todo a rezar.”

Mais de dois metros de cinzas soterraram muitas casas nas imediações do vulcão. Algumas, porém, teimam em resistir (em baixo). Em cima, uma imagem da falha que rompe pelo Faial e se prolonga pelo fundo marinho.

A população do Faial vivia em permanente estado de ansiedade e temor, o que não impediu que o vulcão tivesse atraído imensas pessoas ao Capelo, por um lado para o ver com os próprios olhos, por outro para encontrar protecção divina. Por todo o Faial, bem como nas ilhas vizinhas, as missas e as procissões foram espontâneas, e as súplicas ao Divino Espírito Santo procuravam apaziguar a força da natureza – nos Açores, a religiosidade sempre foi um refúgio. Na noite de 28 para 29 de Outubro, a ira do Capelinhos por fim amainou – o mar manso engolira o vulcão, como que por artes mágicas. Restavam apenas duas ilhotas de cinzas e uma ténue fumarola no lugar da antiga cratera. A boa nova espalhou-se rapidamente, os agradecimentos ao Divino Espírito Santo correram todas as igrejas e capelas e as famílias prepararam-se para regressar aos seus lares arruinados e cobertos de cinza. Ninguém podia saber, na altura, que a pequena ilha colapsara para dentro da própria cratera activa, provocando o seu afundamento. Acompanhado de alguns abalos, o vulcão expeliu jactos de água fervente, vapor e gases azulados quentíssimos, acompanhado por um forte cheiro a enxofre, que foram por todos considerados os últimos estertores de um condenado à morte.


Na imagem, o governador Freitas Pimentel observa o reacordar vulcânico na companhia de uma equipa da National Geographic que, em 1957, se deslocou ao Faial para relatar a actividade deste vulcão submarino. Fotografia Robert F. Sisson.

Na noite do dia 3 de Novembro, porém, o vulcão ressuscitou e regressou com uma força até então nunca vista: grandes explosões, jactos de vapores, cinzas e escórias de tal forma intensos que, num curto espaço de dias, a nova ilha (deslocada cerca de cem metros em relação à anterior) cresceu, alargou-se e inchou. Rapidamente criou um istmo que não só engoliu os ilhéus dos Capelinhos, como, apenas uma semana depois, se ligou a terra firme na costa oeste do Faial, acoplando-se ao que resta do antigo e grandioso vulcão Costado da Nau. À medida que os dias iam passando, o vulcão aumentou, o istmo alargou ao ponto de o Capelinhos se ter transformado numa península e o seu carácter explosivo intensificou-se, a que não é alheio o facto de, tal como na erupção submarina original, a água do mar estar em contacto com a chaminé activa. A noite de 12 para 13 de Maio de 1958, contudo, corresponde a uma nova página na vida do vulcão. Uma crise sísmica, que registou cerca de 500 abalos de maior ou menor intensidade, varreu o Faial, o que provocou um reajustamento da estrutura subterrânea do edifício vulcânico. O Capelinhos atingia o seu apogeu.

Treze meses de volúpia criadora - Entre 1957 e 1958, o vulcão registou intensa actividade, ora agigantando-se através da erupção de materiais, ora recuando pelo contacto com a água e pelo refrear da sua própria instabilidade. Num arquipélago que integrou a conservação da natureza na sua oferta turística, é importante olhar pelo vulcão dos Capelinhos, diz Victor Hugo Forjaz. Afinal, brinca, “se há whale-watching [observação de baleias], faz todo o sentido ter volcano-watching [observação de vulcões]”. Infografia: Anyforms. Consultor: Victor Hujo Forjaz, Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores. Fonte: “Vulcão dos Capelinhos”, 1997, Vol.I: Retrospectivas.

27 de Setembro de 1957 - Depois de fortes abalos sísmicos, torna-se visível à superfície a emissão de gases a partir de vários centros activos; 10 de Outubro de 1957 - A ilha Nova tem 30m de altura e 600m de diâmetro. Dada a temperatura, a emissão de materiais revela um tom acinzentado; 15 de Novembro de 1957 - Um istmo liga o vulcão aos ilhéus dos Capelinhos. O cone vulcânico regista agora intensa actividade; 17 de Novembro de 1957 - De noite, a lava vencera a acção do mar e surgem sete repuxos incandescentes que, a meio do dia 17, se concentram em três chaminés. A lava recobre parte das cinzas; 4 de Novembro de 1958 - Aspecto no fim da actividade. São visíveis a antiga linha de costa de 1957, um anel de cinzas submarinas e, no interior, o cone central da fase terrestre; Actualidade - A força da erosão é visível nesta perspectiva actual do vulcão. Em cinco décadas de actividade incessante, o vento e o mar produziram inúmeros golpes no vulcão dos Capelinhos, mero reflexo da pujança registada entre 1957 e 1958. A picotado, assinala-se aproximadamente o contorno costeiro dos Capelinhos no fim da respectiva actividade, em Outubro de 1958.

Subitamente, às22horas, a cratera principal esguichou lava muito fluida durante algumas horas, assim gerando um efémero, mas excepcional, lago havaiano que emitia finíssimos e raros cabelos de peleia dourados e vítreos, levados pelo vento. Seguiram-se grandes e luminosas explosões strombolianas como fogo-de-artifício, emissões de bombas vulcânicas e torrentes de lava escorreram pelas vertentes –  um espectáculo simultaneamente sublime e dantesco, que atormentou a população. 24 de Outubro de 1958 corresponde ao último dia de vida activa do vulcão, uma surpreendente reforma antecipada. A cratera principal limitou-se à emissão esporádica de gases sulfurosos e uma ou outra fumarola deu ténues sinais de vida, mas os roncos e as explosões calaram-se de vez na chaminé vulcânica. O Capelinhos emudeceu. Ou, simplesmente, adormeceu.

Seguiram-se grandes e luminosas explosões strombolianas como fogo-de-artifício, emissões de bombas vulcânicas e torrentes de lava escorreram pelas vertentes.

Num arquipélago de origem vulcânica como os Açores, o mais natural é existirem vulcões e demais fenómenos geológicos associados. É assim aqui, como na Madeira, Cabo Verde e Canárias. Em termos vulcanológicos, os Açores “beneficiam” da sua situação geográfica, numa zona de confluência e divergência das placas tectónicas Americana, Eurasiática e Africana, para além da própria micro-placa açoriana. Daí a regularidade de ocorrência de vulcões, furnas, fumarolas e géiseres ao longo dos tempos. Neste contexto, o nascimento do vulcão dos Capelinhos não foi meramente obra do acaso. Para se ter a devida noção, basta subi-lo e olhar para o topo da ilha do Faial, na direcção da Caldeira. Como numa fila indiana, perfilam-se sete cones vulcânicos: Costado da Nau, Cabeço do Canto, Caldeirão, Cabeço Verde, Cabeço do Fogo, Cabeço dos Trinta e Caldeira. E, para o lado leste da ilha, alinham-se mais uns quantos, o que indica claramente a falha geológica que “dilacera” o Faial e se prolonga pelo fundo submarino. Mas o que distingue o vulcão dos Capelinhos é o facto de ter sido a primeira erupção submarina devidamente observada, documentada e estudada, desde a nascença até ao estado moribundo. Como brinca Victor Hugo Forjaz, presidente do Observatório Vulcanológico e Geotérmico dos Açores, também ele testemunha da emersão do Capelinhos, “o vulcão apareceu em condições privilegiadas: junto a uma ilha habitada, com estrada, farol e telefones privativos!”


Ciência e religião andam de mãos dadas no contexto açoriano da vulcanologia. Na imagem: no Instituto de Meteorologia, um sismograma de 25 Abril de 2007 recorda que as ilhas estão sempre no fio da navalha. 

Mais que ninguém, Victor Hugo Forjaz conhece o Capelinhos como a palma da sua mão e tem a história do seu desenvolvimento na ponta da língua – além de ser seu acérrimo defensor: “Na realidade, este tipo de erupção submarina deveria ser conhecida como de tipo capeliniano e não de tipo surtseyano, como é designada entre a comunidade científica. A questão é que, apesar de o Capelinhos ter aparecido primeiro, os islandeses registaram a patente antes que nós tivéssemos feito diligências nesse sentido. Foram eles que ficaram com os louros.” O Surtsey, ao largo da costa sul da Islândia, só emergiu em 1963, mas quem ficou para a nomenclatura científica foi mesmo este “primo” islandês do Capelinhos. O aparecimento do Capelinhos marcou profundamente a ilha do Faial no aspecto físico e a população local no estado de alma. Terrenos agrícolas estéreis, colheitas perdidas, campos de pasto inutilizados, casas destruídas e um certo medo do desconhecido, tudo isso aportou à ilha através do vulcão – felizmente, não ceifou uma única vida humana. Mas todos estes factores contribuíram para que os sinistrados do vulcão – aqueles que sofreram mesmo na pele as consequências e aqueles que aproveitaram a “onda” – tivessem razões para embalar a trouxa e zarpar. Os Estados Unidos e até o Canadá passaram a ser um objectivo, tanto mais que os Açores são quase a meio caminho entre a Europa e a América.

“Na realidade, este tipo de erupção submarina deveria ser conhecida como de tipo capeliniano e não de tipo surtseyano, como é designada entre a comunidade científica".

Num curto espaço de tempo, a demografia do Faial caiu para mais de metade, cerca de 12mil habitantes. Os restantes aproveitaram as condições favoráveis de emigração ao abrigo de um decreto do então senador John Fitzgerald Kennedy, que se preparava para assumir a candidatura à presidência. O estado da Califórnia, particularmente, acolheu os açorianos de braços abertos, ao ponto de estes terem, ao fim de pouco tempo, direito a voto. Curiosamente, John Kennedy foi eleito presidente dos Estados Unidos por ter vencido, à tangente, as eleições no estado da Califórnia… Não surpreende, assim, que seja numeroso o contingente açoriano na América do Norte. Por lá criaram raízes e família mas muitos nunca deixaram de sonhar com o regresso. Foi o caso de Maria Humberta Dutra Matos, a primeira bebé a nascer dos sinistrados que emigraram. Nasceu em Rhode Island a 15 de Fevereiro de 1960 mas, hoje, está à frente do café que abriu no Capelo – com o sugestivo nome de “O Vulcão”. Quando o Capelinhos caiu num sono profundo, alguns voltaram, mas não deixam de se mostrar agradecidos ao que os Estados Unidos lhes ofereceram. Basta olhar para o orgulho com que exibem, nos cafés e nas ruas do Faial, as camisolas com o nome de cidades e de estados norte-americanos. Hoje, o Faial, a bem da verdade, não se mostra muito diferente do que era há 60 anos.


O velho sismógrafo, ainda operacional, que registou a actividade de 1957/1958.

A vida pacata tão bem descrita por Vitorino Nemésio está bem presente no espírito dos ilhéus, mas a cidade da Horta alindou-se, o afamado “Peter” galgou fronteiras, a marina cresceu, o aeroporto tem ligações directas ao continente e a rede viária está um “brinco”. O que está diferente, mesmo, é o vulcão dos Capelinhos. Primeiro, acrescentou território à ilha, depois entrou em coma profundo e, entretanto, encolhe à medida que o tempo passa. Em média, o mar comeu 20 metros por ano ao cone e às lavas por ele derramadas, ainda que o processo tenha diminuído nos últimos tempos. Mas o edifício vulcânico mostra como a erosão o afecta: basta subi-lo para ver como muito material basáltico derrocou, algumas vertentes já cobertas de verde ameaçam ruir e mais de metade da cratera principal sucumbiu. O ilhéu Grande dos Capelinhos, tragado aquando da erupção, está novamente a descoberto. É em redor do vulcão, numa paisagem lunar, que acontecem grandes movimentações. Ainda lá está a rampa de acesso dos botes dos baleeiros ao mar, ainda lá estão casas soterradas pelas cinzas e o farol, mas uma nova edificação foi erguida em Agosto de 2008:  o Centro de Interpretação do Vulcão dos Capelinhos, da Secretaria Regional do Ambiente, ganhou corpo e ostenta, como marca mais visível, a cúpula de vidro que coroa o farol, entretanto desentulhado das cinzas que o envolviam até meio.

Mas o edifício vulcânico mostra como a erosão o afecta: basta subi-lo para ver como muito material basáltico derrocou, algumas vertentes já cobertas de verde ameaçam ruir e mais de metade da cratera principal sucumbiu.

O arquitecto Nuno Lopes, responsável pelo projecto, defende que “o centro procura que o visitante sinta o fenómeno do Capelinhos, até porque grande parte do percurso é feito subterraneamente para que se tenham as noções de claustrofobia e soterramento provocadas pela erupção. Felizmente, a sensação não é angustiante, porque não passam de maquetas, hologramas, filmes e projecções”. A ideia de arrancar como complexo partiu da comemoração dos 100 anos do farol. À época, as estruturas estavam soterradas, danificadas, votadas ao abandono e até vandalizadas. “Apareceu o projecto para recuperação e para dotar a paisagem de informações preciosas que possam explicar tudo o que se relaciona com a erupção de 1957. Mais que isso, pretende-se dar uma visão geral da geologia e da vulcanologia, como um museu vivo e interactivo”, explica NunoLopes. As entidades esperam que o centro traga dignidade a um fenómeno geológico praticamente único em Portugal e que comporte uma mais-valia turística e pedagógica de modo a que mais visitantes aportem ao Faial.  E a verdade é que, em 2012, foi nomeado pelo European Museum Forum para melhor museu da Europa. Apesar de não ter entrado propriamente para a nomenclatura da vulcanologia, o vulcão dos Capelinhos trouxe até ao Faial um sem-número de especialistas e jornalistas. Por lá passaram repórteres portugueses e estrangeiros, além das visitas de estudo do geógrafo Orlando Ribeiro e do “pai” da vulcanologia moderna, Haroun Tazieff.

Durante décadas, o centenário farol do Capelo funcionou como registo visual da quantidade de cinzas acumuladas. 

Quem igualmente ficou marcado pelos acontecimentos de 1957 foi Victor Hugo Forjaz: “Nunca me hei-de esquecer. Vim pela mão do meu pai, que era vice-presidente em exercício da Junta Geral do Distrito da Horta e, mesmo tendo 16anos, fiquei maravilhado. De tal forma que, hoje, posso garantir que foi o Capelinhos que me orientou a vida e me entusiasmou a seguir esta via – se não fosse a sua existência, não seria seguramente vulcanólogo. Nem eu, nem a vaga de geólogos e interessados que formaram uma nova geração de investigadores portugueses.” No miradouro que dá para a Caldeira, a visão é estonteante: as nuvens a rasar os rebordos, a vegetação com laivos tropicais a subir pelas veredas a pique e lá em baixo, bem no fundo da cratera, lagoas e cones liliputianos. “Quando o Capelinhos entrou em erupção, também houve emissões de gases aqui na Caldeira”, explica o professor Forjaz, mas, felizmente, o vulcão lá do Capelo funcionou como escape da pressão existente lá em baixo”, diz, enquanto aponta para o solo e para fendas bem visíveis. “Se tudo se tivesse concentrado aqui na Caldeira, poderia ter sido trágico.” No miradouro junto ao farol dos Capelinhos, Victor Hugo Forjaz olha para o vulcão avermelhado e diz, emocionado: “Sabe, já vi muitos vulcões, percorri o mundo com colegas só para os contemplar, mas este será, sempre, o ‘meu’ vulcão.” É natural que, mais cedo ou mais tarde, surja “outro” Capelinhos no mar, em frente a este agora silencioso – só não se sabe quando. “Espero viver para assistir a nova erupção. Era o maior gosto que podia ter, desde que não houvesse baixas humanas. Algo belo e inofensivo.” Nós também – e os amantes dos vulcões agradeciam.

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