As tradições do povo Khevsur, da Geórgia, levam a crer que descendem de cavaleiros cruzados do século XII.
No distante ano de 1842, o jovem etnógrafo Arnold Zisserman chegou, pela primeira vez, a Tiblissi (sede do Estado georgiano) como oficial de uma divisão do exército czarista, devido ao sangrento conflito que opunha a Rússia às tribos montanhesas do Cáucaso setentrional. Não sabemos se escolheu voluntariamente esse destino, mas a verdade é que este o impressionou. Zisserman passou ali quase um quarto de século, viajando incansavelmente e tomando nota das tradições dos indómitos habitantes da região: informações muito valiosas sobre um mundo que, passado pouco tempo, mudaria para sempre. Por esse motivo, o seu livro Vinte e Cinco Anos no Cáucaso (1842-1867), publicado em russo, é uma autêntica mina de informação. Um dos capítulos mais fascinantes diz respeito a Khevsureti, uma zona de vales encaixados entre montanhas, situada no extremo nordeste da Geórgia.
Embora se encontre a apenas 150 km em linha recta da capital, Tiblissi, a região de Khevsureti permanece isolada do resto da Geórgia entre os meses de Outubro e Maio devido aos nevões que bloqueiam as vias de comunicação. Isto levou a que estes povos mantivessem tradições cujas origens se perdem na noite do tempo.
Um lugar no fim do mundo que, durante quase oito meses por ano, permanece isolado por abundantes nevões que tornam as passagens impraticáveis. Ali permaneceu Zisserman um Inverno inteiro, dedicando-se a transcrever os costumes dos seus habitantes, conhecidos durante séculos como hábeis guerreiros de espírito rebelde e que chegaram a formar a espinha dorsal do exército dos reis georgianos, dos quais sempre demonstraram ser fiéis servidores.
Os seus domínios transformaram-se num autêntico baluarte da cristandade face à ameaça islâmica representada pelas temidas tribos chechenas.
Uma lenda local
Analisando atentamente certos aspectos do seu folclore (cultura material, aspectos sociais e práticas religiosas), o estudioso russo chegou à surpreendente conclusão de que os khevsur seriam os últimos descendentes dos cruzados que ali tinham chegado muitos séculos antes.
Sobre a maneira como aqui chegaram, uma tradição local assegura que, durante a primeira cruzada (1096-1099), um grupo de cavaleiros provenientes da Lorena, sob as ordens de Godofredo de Bulhão, naufragou na costa da Turquia, enquanto se dirigia à Terra Santa.
Isolados do grosso do exército pelo inimigo muçulmano, não restou a esses homens outra alternativa senão marcharem para o interior, até, por fim, chegarem ao Cáucaso. Sem poderem voltar para trás, apoderaram-se de mulheres dos povoados vizinhos e fixaram-se nesses vales impenetráveis. Uma decisão que os seus descendentes nunca renegariam.
Lendas à parte, um dos elementos que mais surpreendeu Arnold Zisserman foi a armadura altamente invulgar dos khevsur. Embora naquela época as armas de fogo estivessem muito difundidas, aqueles homens continuavam a usar pesadas cotas de malha que os cobriam da cabeça aos pés, longas espadas de gume duplo com cabo em cruz e escudos redondos com as iniciais (A.M.D.) do lema dos cruzados, Ave Mater Dei. Haveria verdade nessa hipótese histórica extravagante?
Shatili, antiga capital dos khevsur, é composta por cerca de 150 casas. As janelas e varandas existem apenas nos pisos superiores, por motivos defensivos.
Panóplia cruzada
O explorador norte-americano Richard Halliburton, que visitou a região em 1935, também ficou fascinado com os costumes especiais e o conjunto de tradições com muitos séculos de antiguidade dos khevsur sem nenhuma explicação plausível. Halliburton recorda que a cota de malha “tem quase vinte mil anéis de ferro e veste-se como uma espécie de túnica. Tem as mangas curtas, mas as luvas de malha cobrem os antebraços. Esta armadura é acompanhada por um capacete de malha metálica com um buraco para o rosto”. Quem a estudar com atenção, recorda o autor, não hesitará em datá-la do século XII. O seu fabrico, por outro lado, parece francês. Outro elemento curioso da sociedade khevsur, relacionado com uma possível tradição europeia, era o complexo sistema de duelos.
Em meados do século XX, o escritor Gordon Cooper descreveu-o da seguinte forma: “Vestidos com armaduras, os duelistas posicionavam-se frente a frente. Ao sinal acordado, iniciavam o combate, dando golpes de espada e tentando ferir-se, amparando os golpes e dando voltas como um par de galos de luta. As lâminas das espadas chocavam, resvalavam sobre as armaduras e embatiam contra os escudos de pele, que se usavam mais para desviar os golpes do que para amortecê-los.”
As mulheres não eram, normalmente, autorizadas a assistir a estes espectáculos. É por isso surpreendente saber que eram elas, mais particularmente, uma certa donzela, as responsáveis por pôr-lhes fim, abanando um lenço na zona de combate.
Mulher Khevsur. Painel de cobre por G. Gabahvili. Reprodução. 1922.
Os cépticos
Será realmente possível que as origens deste povo tão beligerante remontem à chegada dos cruzados, entre os séculos XI e XII? Segundo os historiadores modernos, a hipótese, embora fascinante, não tem qualquer fundamento. As origens dos khevsur seriam muito mais antigas, pois gregos e romanos já falavam na sua presença. Além disso, os seus vales, chamados Pkhovio e Pshavi, são citados num famoso manuscrito do século VII, numa referência às primeiras tentativas de evangelização empreendidas trezentos anos antes, quando a Geórgia, com a conversão do rei Mirian III, decidiu abraçar a fé cristã.
Leais, mas com foros próprios. Os Khevsur eram guerreiros magníficos, que alardeavam o seu valor, lealdade e, sobretudo, os seus desejos de liberdade. Fiéis aos reis da Geórgia, eram livres de eleger os seus líderes, chamados khevisberi. Um conselho especial de anciãos, igualmente eleito, tomava decisões sobre o bem comum e tinha a última palavra em matérias como as declarações de guerra e de paz, as missões diplomáticas junto do inimigo e a administração da justiça.
Mas estas constatações não bastam para explicar com clareza as numerosas e surpreendentes anomalias que distinguem esta comunidade dos povos vizinhos. Às insólitas características do seu armamento há que acrescentar a existência de, pelo menos, oito palavras na sua língua que remetem para o alemão antigo. Foi por essa razão que alguns etnógrafos georgianos da década de 1930, como Sergi Makalatia e Giorgi Tedoradze, propuseram a hipótese de soldados de origem ocidental que, de forma voluntária ou em resposta a um pedido expresso dos monarcas georgianos, teriam decidido estabelecer-se nessa terra no século XII, onde criaram postos militares para ajudar os georgianos preexistentes e já cristianizados.
Estes cruzados rapidamente perderam parte das suas características peculiares e adoptaram os usos e costumes locais. Por outro lado, souberam manter algumas tradições, quiçá atraindo a participação dos habitantes locais: as regras militares, o armamento, algumas palavras dos seus dialectos de origem e certos costumes religiosos. A favor desta tese, devemos referir que, nalguns documentos medievais, em várias ocasiões se faz menção a grupos ou contingentes de soldados “ocidentais” que se encontravam nas fileiras do exército georgiano: na batalha de Didgori (1121), por exemplo, na qual o exército do rei David IV venceu os selêucidas, surgem cem a duzentos cavaleiros francos entre as suas fileiras.