Immanuel Kant nasceu em Abril de 1724, na cidade portuária de Königsberg – hoje Kaliningrado –, na Prússia Oriental. Embora fosse uma criança de saúde frágil, viveu feliz com os seus pais, o mestre seleiro Georg Kant e a mãe, Anna Regina. O filósofo teve sempre um grande carinho pelos seus pais e, muitos anos depois de morrerem, ainda lhes agradecia tudo o que tinham feito por ele.
No Outono de 1740, após completar oito anos de estudo no Friedrichskollegium, Kant ingressou na Universidade Albertina de Königsberg. Ali conheceu Martin Knutzen, de cuja mão descobriu o trabalho de Newton e de outros cientistas ingleses, embora este jovem professor mais à frente também viesse a boicotar a entrada do seu discípulo no corpo docente. Em 1747, Kant deixou a universidade da sua cidade natal, para trabalhar durante seis anos como professor particular em diferentes cidades na Prússia Oriental.
O professor leitor
Ao regressar a Königsberg, e depois de ter obtido o título de magister, tornou-se Privatdozent, professor-leitor cujo salário era pago pelos alunos. A sua situação poderia ser considerada precária, mas as suas aulas estiveram, durante anos, entre as mais concorridas. Naquela época, ainda estava longe a imagem de um homem extremamente metódico, como se tem de Kant hoje em dia. De facto, torna-se inclusive difícil imaginar a ideia de uma das suas alcunhas naquele tempo: o “magister galã”. Na verdade, aquele pequeno homem de aparência delicada sabia cuidar da sua imagem, estar na moda: sobre a peruca empoada, um tricórnio; camisa branca, colete e calças da mesma cor; meias cinzentas de seda e sapatos com fivela de prata. E, no cinto, uma espada curta que ele nunca soube como usar.
Personalidade metódica: Kant e a pontualidade.Uma das características que mais se destacam na personalidade do filósofo de Königsberg era o seu zelo pela pontualidade. Segundo se conta, vê-lo passar servia para que os seus vizinhos pudessem acertar os relógios.
Foi um amigo, o comerciante britânico Joseph Green, que supostamente ensinou a Kant a importância de chegar a horas depois de o fazer correr atrás do seu carro numa tarde em que o filósofo chegou um minuto depois da hora a que tinham combinado encontrar-se. Green, para além disso, despedia-se do amigo sempre à mesma hora, às sete em ponto, de modo que o hábito foi-se instalando no prussiano. A partir de então, Kant foi ajustando o seu próprio relógio a cada um dos seus hábitos diários, ao ponto de a História o descrever como um homem com uma das vidas mais monótonas e aborrecidas de todos os tempos. Todos os dias, como um relógio, saía às três e meia em ponto para passear por Königsberg, sem se importar com o tempo que fizesse; aquele que sabia o que iria fazer em cada momento do dia; o cavalheiro austero, metódico e grisalho que não gostava de mudanças. Na imagem, uma gravura de meados do século XIX que reproduz a casa de Kant em Königsberg, cidade onde nasceu, viveu e morreu.
Perante esta imagem de cavalheiro, no entanto, também se deve ter em conta a personalidade kantiana. O filósofo tornou-se, ao longo dos anos, um homem extremamente pontual e metódico, talvez até excessivamente apegado aos seus hábitos e costumes. Era também um hipocondríaco inveterado. A sua obsessão com a saúde chegou a tal ponto que elaborou um programa de medidas e actividades bastante simples, no qual recomendava, entre outras coisas, procurar um sono curto e profundo durante a noite e fazer exercício físico. Resguardava-se especialmente das correntes de ar e cuidava diligentemente da higiene para se proteger de doenças, já que não era a morte que o preocupava, mas sim o facto de se poder ver afastado do trabalho.
Durante os seus primeiros anos na faculdade, Kant deu aulas de diversas disciplinas: Lógica, Metafísica, Ciências Naturais, Matemática, Geografia Física, Ética… A maior parte do dia passava-a atrás do púlpito, repetindo, como se lamentava, as suas lições de forma enfadonha. Por isso, com os anos foi adaptando a sua forma de leccionar, para ensinar os seus alunos a pensar por si próprios. Tratava-se de aplicar aquele princípio iluminista que sempre defendeu: “Atreve-te a saber!” Não suportava que os seus alunos tomassem notas de forma mecânica; o que queria mesmo era que entendessem o que lhes explicava. Sempre que era necessário, voltava atrás, apresentava exemplos compreensíveis e, se fosse preciso, era inclusive capaz de contar uma piada. Gostava de provocar os alunos e gerar um debate aberto com eles.
O período crítico
Foram muitas as ofertas que Kant recebeu para leccionar noutras universidades, mas nunca as aceitou. Tinha apenas de esperar que surgisse um lugar para ele no claustro da Albertina. E assim foi: no final de Março de 1770, foi nomeado catedrático de Lógica e Metafísica na sua querida universidade. Para isso, antes teve de defender publicamente a dissertação Princípios formais do mundo sensível e inteligível, obra considerada como o ponto de partida do chamado “período crítico” do filósofo. Kant alcançara a sua meta, mas ainda haveria de compor a sua grande obra-prima. No momento, tinha já a tão desejada posição e desfrutava, pas ados já os 40 anos, do reconhecimento e admiraç o do público. Para isso contribuiu muito o seu ensaio Observações sobre o sentimento do belo e do sublime (1764), um sucesso editorial que fez dele um dos autores de moda.
Esta escultura do filósofo encontra-se em Berlim, na igreja (hoje museu) de Friedrichswerdersche.
Kant esteve sem publicar nenhum outro te o durante mais de uma década, embora tenha co tinuado a trabalhar e a encher o seu escritório de livros, papéis e rascunhos até que, no Verão de 1780 – o mesmo ano em que integrou a reitoria da universidade, – terminou a Crítica da razão pura, publicada um ano depois. Segundo o filósofo, todo o conhecimento começa com a experiência, mas não está limitado por ela. Uma grande parte dele procede directamente da actividade cognitiva do indivíduo, pelo que tem um carácter a priori, ou seja, está fora da experiência.
O conhecimento empírico é arbitrário e, como tal, contingente; o conhecimento a priori é universal e necessário. A Crítica representou uma verdadeira “revolução copernicana”, pois rompia com uma tradição secular que considerava que o conhecimento estava directamente ligado aos objectos. Pelo contrário, Kant parte do princípio de que os objectos estão directamente ligados ao nosso conhecimento. No entanto, o livro foi recebido com alguma frieza, pois era muito difícil de ler, demasiado complicado inclusive para os colegas do professor de Königsberg. Apesar disso, seis anos mais tarde, quando foi publicada uma segunda edição, a filosofia crítica começou a afirmar-se. A rejeição inicial do público foi substituída não só pela aceitação da obra, mas também pelo engrandecimento do seu autor. Em 1788, veio à luz a Crítica da Razão Prática e, dois anos depois, a Crítica do julgamento.
Polémicas e imperativos
Já com 60 anos, muitas outras grandes obras de Kant estavam ainda por chegar. De dia para dia o número de críticos ao trabalho do mestre ia aumentando, embora também o fizesse o número de seguidores. Entre os primeiros não tardou a revelar-se um dos seus antigos alunos, Johann Gottfried Herder, com quem rapidamente estalou a polémica na sequência da publicação da Ideia para uma história universal do ponto de vista cosmopolita (1784). Nesta obra, Kant apresentava uma alternativa à ideia de filosofia da história proposta por Herder, que defendia a dependência humana do telos natural geral. Kant, por seu lado, argumentava que a liberdade não dependia de nenhum tipo de revelação ou de necessidade natural, mas do esforço humano social e constante. A partir daqui, começou a vislumbrar-se um choque entre os princípios iluministas e o início do Romantismo. Para Kant, aquelas ideias pareciam um regresso a velhas superstições; para Herder, as ideias kantianas representavam uma justificação da tirania.
Naquele mesmo ano de 1784, Kant tentou responder à famosa pergunta do seu livro O que é o Iluminismo? (“a saída do homem da minoria de idade causada por ele próprio” – escreveu). No ano seguinte, apresentou a Fundamentação para uma metafísica dos costumes, em que defendia o valor autónomo da personalidade humana, além de qualquer raça, nacionalidade ou classe. De acordo com a proposição kantiana, o ser humano deve pensar por si mesmo, pois foi-lhe dado o intelecto para o poder usar livremente. Como tal, o mestre repudiava qualquer tipo de fanatismo, que considerava destrutivo da razão. Foi aqui que surgiu a ideia do “imperativo categórico”, uma fórmula simples que sintetiza a ideia da vida racional: “Age de modo a que não trates nunca o ser humano como um simples meio ou instrumento para os teus próprios fins, mas considera-o, sim, sempre como um fim em si mesmo.” O indivíduo nunca deve perder de vista que deve ser dono da sua própria vida e, como tal, não deve deixar que nada o escravize. Da mesma forma, a referida liberdade não deve impedir a relação com os outros, uma vez que o ser humano vive em sociedade. E, para regular a actividade, nada melhor do que o dito imperativo.
Em 1786, ascendeu ao trono prussiano Federico Guilherme II, que pouco tinha que ver com o tio, o iluminista Frederico II. No início, tudo continuou igual, mas o desencadear da Revolução Francesa, em 1789, rapidamente fez temer que o fogo revolucionário penetrasse nas fronteiras alemãs. Houve mudanças no gabinete ministerial e os antigos iluministas tiveram de dar lugar a homens de visão curta. Kant, que animara Johann Gottlieb Fichte, pai do idealismo alemão, a publicar o seu Ensaio de uma crítica de toda a revelação (1792), apresentou, pouco depois, A religião dentro dos limites da mera razão (1793). Não tardou a ver-se obrigado a acatar a ordem real que o coagia a deixar de escrever sobre religião, embora pudesse continuar a escrever sobre muitos outros temas, incluindo a teoria política.
Ainda muito por dizer
Ultrapassados já os 70 anos, Kant assistia ao fim do Século das Luzes e comprovava, receoso, que uma grande guerra se avizinhava. Foi então que escreveu A paz perpétua (1795), um pequeno tratado que chamou, inclusive, a atenção de Napoleão. A este texto, um grande sucesso, seguiu-se-lhe a Metafísica dos costumes (1797), onde, além de refiectir sobre questões como a esperança na sociedade, as instituições sociais e as leis devidamente constituídas, defendeu a divisão de poderes e condenou toda a tirania.
Neste relevo, realizado no século XIX por Ernst Rietschel para a Universidade de Leipzig, no âmbito do ciclo “História cultural da Humanidade”, aparecem grandes artistas, pensadores e cientistas, como Mozart, Goethe ou Humboldt, entre outros. Kant está ao centro; é a figura sentada.
Depois deste trabalho, as suas forças começaram a faltar. Chegara o momento de se retirar para a sua casa e continuar a trabalhar a partir dali. Considerava que ainda tinha muito para dizer e o tempo corria contra si. Antes de morrer tinha de tentar responder a uma última pergunta vital: o que é um homem? De facto, o seu interesse pelo tema não era novo e remontava já às suas leituras de Hume e Rousseau realizadas muitos anos antes. Tentou responder a essa pergunta através da sua Antropologia de um ponto de vista pragmático (1798), trabalho em que refiectiu sobre como a autoconsciência torna o indivíduo uma pessoa.
Esta seria a última obra de Kant, cuja publicação foi pessoalmente preparada por ele. A partir daí começou um acentuado declínio, tanto físico como mental. Os seus passos tornaram-se vacilantes, faltava-lhe o equilíbrio, adormecia no seu cadeirão, as visitas cansavam-no e tinha cada vez mais dificuldade em seguir o fio de uma conversa. Tentava trabalhar nos seus novos projectos, mas a sua mente ficava nublada durante dias. No Outono de 1803, o velho filósofo começou a consumir-se muito rapidamente, era apenas uma sombra do que fora, pouco mais do que um pavio das tochas do Iluminismo. Poucos meses depois, em Fevereiro de 1804, o seu relógio parou definitivamente.