No ano em que Guilherme III de Orange e Maria II Stuart foram coroados reis de Inglaterra, Irlanda e Escócia (1689) triunfavam, em grande medida, as ideias políticas de um velho filósofo convencido de que um bom governo passava pelo estabelecimento de um sistema político baseado no pacto entre o rei e o seu povo. Este homem era John Locke e as suas ideias foram fundamentais na luta mantida durante décadas contra os caprichos absolutistas dos últimos Stuart. Locke não era certamente um revolucionário, mas o destino colocou-o no centro do redemoinho de um momento histórico transcendental para a Inglaterra. O facto de ter crescido numa família puritana marcou a sua personalidade e incutiu nele um sentido inabalável de dever, o qual ficou patente nas suas firmes convicções, tanto políticas como religiosas.

Tempos tranquilos

John Locke nasceu em Wrington no Verão de 1632, embora tenha passado os seus primeiros anos em Pensdorf, perto de Bristol. O seu pai era um advogado rural que ocupara alguns cargos na administração local, ainda que não desfrutasse de um estatuto social relevante. Apesar disso, e graças a uma das amizades que fez durante a guerra civil inglesa (1642-1651), foi possível enviar o filho para Londres, a fim de que completasse os seus estudos do ensino secundário na prestigiada escola de Westminster. Em 1652, o jovem Locke – já interessado pela filosofia – obteve uma bolsa para ingressar no Christ Church College de Oxford, onde acabou por se tornar mestre em Artes, seis anos mais tarde.

Começava então a sua carreira como professor associado do College, onde foi leitor, censor e tutor, e onde deu também aulas de Grego e Retórica; além disso, estudou, por conta própria, Medicina e Filosofia natural (ou seja, ciências experimentais). Travou amizade com o eminente médico Thomas Sydenham – pioneiro no tratamento de doenças infecciosas – bem como com outros cientistas do gabarito do versátil Robert Boyle. Neste período, aprendeu o valor da observação atenta como meio para descobrir os segredos da natureza, uma ideia que acabaria por sintetizar anos depois, no seu Ensaio sobre o entendimento humano (1690), obra na qual assentava as bases do empirismo, ao negar a existência de ideias inatas e ao defender o papel fundamental da experiência na origem e confirmação dos conhecimentos. Foi tal a sua entrega à ciência que chegou a converter a sua casa num autêntico laboratório. Em 1668, entrou mesmo para a Royal Society de Londres.

Durante aqueles anos, também se familiarizou com a obra de Descartes, que fez despertar o seu interesse pela mecânica. No entanto, o pensamento lockiano alinhava-se mais com os postulados do cientista e teólogo Pierre Gassendi, célebre pelas suas críticas à escolástica e ao cartesianismo.

Uma nova perspectiva

Em 1666, Locke conheceu Lorde Anthony Ashley Cooper, uma das figuras mais infiuentes na Corte. Este ficou impressionado com os conhecimentos de medicina daquele professor e não tardou a oferecer-lhe emprego. Um ano depois, em Junho de 1667, Locke já se encontrava na casa londrina de Lorde Ashley e, dois meses depois, supervisionou a operação ao fígado à qual o seu novo patrão teve de se submeter. A intervenção foi um sucesso, o que fez de Locke um dos seus amigos e confidentes mais próximos.

Locke

A divisão de poderes e o parlamentarismo. Locke soube dar consistência a algumas ideias que outros antes dele já tinham enunciado. Os escritos de Locke e as abordagens que neles defendia – em consonância com as aspirações de uma burguesia em ascensão – serviram de base teórica à Revolução Gloriosa de 1688-1689 que pôs fim à monarquia absolutista dos Stuarts.

Ao contrário de Thomas Hobbes, John Locke considerava que o estado natural não equivale à situação de guerra, pois o ser humano não é um ser agressivo, mas sim social. Por esta razão, Locke argumentava que o poder supremo do Estado deve emanar do povo, que elege um parlamento para o representar, em clara oposição ao absolutismo. Para garantir a protecção desses direitos, o filósofo inglês defendia a divisão dos poderes legislativo, executivo e judicial – tal como defendeu o francês Montesquieu –, sobrepondo o primeiro em relação aos restantes, como meio de garantir os“direitos naturais” individuais dos membros da sociedade. A democracia torna-se, portanto, segundo o pensamento lockiano, um instrumento para colocar o poder político ao serviço da liberdade e da propriedade. Na imagem, Sessão da Câmara dos Comuns, óleo de Peter Tillemans, realizado por volta de 1710.

A associação com Lorde Ashley foi um dos marcos na vida de Locke; ao lado dele, o filósofo iria ser testemunha directa da agitada vida política da Inglaterra pré-revolucionária. A infiuência do nobre seria ainda decisiva no próprio pensamento político e moral de Locke. Este abandonou a ideia relativa à preeminência da ordem e a segurança do Estado sobre os súbditos – em linha com Hobbes – para passara a considerar que, acima de tudo, devia primar a protecção dos direitos do indivíduo. Da mesma forma, a transição do puritanismo, no qual fora educado, para postulados mais abertos ficou patente no seu Ensaio sobre a tolerância (1667). Locke defendia a tolerância, entre outras coisas, pelas vantagens que esta podia ter não só no plano religioso, mas também no económico, como ficou plasmado nas Províncias Unidas.

Em 1672, Ashley, já como Conde de Shaftesbury, foi nomeado Lorde-chanceler – o cargo ministerial mais alto – enquanto Locke passou a ocupar-se das questões relacionadas com a política eclesiástica. Um ano depois, o chanceler descobriu que Carlos II assinara um pacto secreto com o francês Luís XIV, pelo qual se comprometia a converter-se ao catolicismo em troca de ajuda financeira e, se necessário, também militar. Depois disso, considerou que existia um plano que ameaçava não só reintroduzir o absolutismo monárquico em Inglaterra, mas que implicava também uma submissão política à todo-poderosa França.

O Lorde-chanceler declarou-se, então, abertamente inimigo do absolutismo, do catolicismo e de França, o que acabou por provocar a sua cessação em 1673. Locke seguiu o seu amigo alguns meses mais tarde, e juntos redigiram um panfieto – publicado de forma anónima em 1675 – no qual alertavam o povo de Inglaterra para o perigo que se escondia. Uma iniciativa como aquela poderia ser considerada um acto de sedição, pelo que Locke decidiu que o mais conveniente era abandonar Inglaterra.

A questão da legitimidade

Na Primavera de 1679, parecia que o perigo passara e Locke regressou ao seu país. Depois dos três anos passados em França, deparou-se com o facto de Shaftesbury ter voltado a contar com o favor real e ocupava agora o cargo de presidente do novo conselho criado por Carlos II. Apesar de tudo, mantinha-se firme na sua ideia de defender as “liberdades de Inglaterra” frente à opressão que representava o catolicismo, encarnado na figura de Jacobo, irmão católico do soberano e herdeiro ao trono. Acreditava que este faria da monarquia inglesa uma tirania à francesa, de modo que Shaftesbury, como cabeça do partido Whig, solicitou a aprovação de uma norma que excluísse da sucessão ao trono qualquer católico (a chamada Exclusion Bill).

O rei não aceitou, mas iniciou-se o debate entre os principais grupos políticos, tories whigs. Os primeiros, em linha com o rei, rejeitavam a Exclusion Bill e defendiam a doutrina da origem divina do poder. Os segundos defendiam que o poder político repousava sobre um contrato e, consequentemente, toda a resistência é legítima quando o poder comete abusos. No contexto destes debates, Locke começou a amadurecer as suas ideias sobre legitimidade política.

Locke

Locke na sua maturidade. O filósofo foi retratado pelo pintor holandês Herman Verelst em 1689, ano em que Locke regressou a Inglaterra vindo dos Países Baixos. O quadro pertencia ao seu amigo, o parlamentar Edward Clarke, de quem se conserva uma abundante correspondência com Locke (National Portrait Gallery, Londres).

Por fim, o rei dissolveu o Parlamento, assumiu um poder absoluto e os whigs começaram a ser perseguidos. No Verão de 1681, Shaftesbury foi preso, acusado de alta traição. Após ter sido libertado, no final de 1682, fugiu para as Províncias Unidas, onde viria a morrer algumas semanas depois. Locke, como membro do círculo mais próximo de Shaftesbury, não tardou a sentir também ele o empenho dos espiões do rei, que seguiam de perto os seus passos e procuravam encontrar nos seus escritos o mais pequeno indício que o pudesse incriminar. Assim se passaram vários meses até ao Verão de 1683, quando o rei e o seu irmão escaparam da chamada conspiração de Rye House, um plano para os sequestrar e assassinar urdido por homens próximos de Shaftesbury. Embora Locke não estivesse envolvido, a perseguição a que se viram submetidos os whigs fê-lo embarcar, pouco depois, para a Holanda, em busca de um refúgio seguro.

Mudança de cenário

No seu exílio holandês, Locke prontamente entrou em contacto com outros refugiados, tanto ingleses que fugiam de Carlos II, como huguenotes franceses. A sua presença em ambientes revolucionários rapidamente fez dele um “traidor” aos olhos do rei, que solicitou, sem sucesso, a sua deportação para Inglaterra. O facto de estar numa lista negra levou Locke a considerar que o melhor era ser prudente e abandonar de novo o país. Refugiou-se no estudo e escreveu a sua famosa Carta sobre tolerância (1689). As experiências vividas em Inglaterra, França e nos Países Baixos convenceram-no de que o governo devia não só assegurar a liberdade religiosa e de consciência dos indivíduos, mas que devia também separar as esferas religiosa e política.

O pensador britânico completou outras importantes obras, entre elas os Dois tratados sobre o governo civil – um claro golpe ao despotismo absolutista –, e deixou praticamente concluído o seu Ensaio sobre o entendimento humano, texto com que finalmente se daria a conhecer.

Durante a sua estada nos Países Baixos, é possível que Locke tenha conhecido o candidato ao trono de Inglaterra, Guilherme III de Orange e a sua esposa, Maria, filha do católico Jaime II. Seria precisamente com ela que regressou a Inglaterra, no início de 1689, ano em que foram publicadas as três obras referidas anteriormente. Desde o seu regresso a Inglaterra, Locke desfrutou do favor real, bem como do reconhecimento público. Velho e doente, teve de recusar uma oferta para exercer como diplomata. Mas, em troca, aceitou ser assessor em questões económicas, fiscais e monetárias da Board of Trade. Contudo, o que mais se destaca neste período é a infiuência das suas ideias na redacção da Bill of Rights (Declaração de Direitos), a qual consagrou a superioridade da lei – o Parlamento – sobre a vontade do rei.

l4

Sobre a educação. Locke, que estudou e foi professor no Christ Church College de Oxford (na imagem), publicou, em 1693, o tratado Alguns pensamentos sobre a educação, destinado a tornar-se uma obra clássica. “Creio poder garantir – escreveu o filósofo – que, em cem pessoas, há noventa que são o que são, boas ou más, úteis ou inúteis para a sociedade, devido à educação que receberam.”

Locke passou os últimos anos da sua vida em casa da filósofa Damaris Masham, no condado de Essex. A sua anfitriã era filha do filósofo Ralph Cudworth, que fora amigo de Locke até à sua morte. Durante esse período, o pensador continuou a teorizar sobre política, filosofia, economia, pedagogia e teologia, além de manter intensa correspondência com amigos e colegas de toda a Europa, incluindo o filósofo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz.

Locke sofreu continuamente de problemas respiratórios, mas, em 1704, a sua saúde piorou gravemente. No dia 28 de Outubro, enquanto Damaris Masham lhe lia os Salmos, Locke expirou pela última vez. Foi sepultado em High Laver, perto de Oates.

No seu epitáfio, escrito pelo próprio, apresentava-se ao mundo: “Aqui jaz John Locke. Se se pergunta que classe de homem era, ele próprio lhe diria que foi alguém feliz com a sua mediania. Alguém que, embora não tivesse ido muito longe nas ciências, não procurou mais do que a verdade.”