Por vezes, há a tendência a pensar o período da Reconquista como um conflito binário, com as forças portuguesas e espanholas de um lado e todas as forças muçulmanas do outro. A realidade, como quase sempre, é um pouco mais complicada do que isso.

Não só existiram indivíduos de grande renome que lutaram pelos dois lados, conforme a conveniência do momento (é o caso, por exemplo, do conhecido El Cid ou de Geraldo Sem Pavor, que está hoje imortalizado no nome da praça central de uma das cidades que conquistou para o lado europeu, Évora), como mesmo do lado muçulmano havia divisões e alianças inesperadas.

Neste último caso, um indivíduo particularmente emblemático foi Abu-l-Qasim Ahmad ibn al-Husayn ibn Qasi (atalhando, Ibn Qasi), um líder sufi que foi aliado de Afonso Henriques, reinou sobre Mértola e Silves e que permanece vivo na memória histórica destas terras, mesmo que não na do país. Mas quem foi esta figura?

Quem foi Ibn Qasi?

Abu-l-Qasim Ahmad ibn al-Husayn ibn Qasi nasceu alegadamente em Silves, em ano incerto do séc. XII, numa família de muladis, ou seja, antigos cristãos convertidos ao islamismo após a conquista do Sul da península. É especulado que o seu nome de família, Qasi, será uma corruptela do latim Cassius, que seria o nome ancestral da sua família.

Apesar de ter nascido numa família com alguns bens, ficou órfão relativamente cedo e, depois de viajar pela Península Ibérica e Norte de África, visitando líderes religiosos, prescindiu da maior parte dos seus bens e da sua herança e mandou construir um ribat, estrutura fortificada que servia ao mesmo tempo de local de culto e de infraestrutura militar, num promontório perto de onde é hoje a Arrifana, no concelho de Aljezur.

arrifana
Luís Quinta

Ruínas arqueológicas da Arrifana. 

É aqui que escreve alegadamente a sua principal obra, O Descalçar das Sandálias, onde explicita a sua filosofia religiosa, de origem sufi, levando ao aumento dos seus seguidores e à fundação de um novo movimento, o Muridismo (do qual os praticantes se denominam muridines), auto-denominando-se Ibn Qasi como mahdi (uma figura muito importante em termos religiosos, um profeta final, comparável a uma segunda vinda cristã). 

Em breve, Ibn Qasi e os seus seguidores tentariam transformar este crescimento de influência em poder político efectivo, procurando conquistar o que é hoje o castelo de Monteagudo à regente dinastia dos Almorávidas. A tentativa falha e Ibn Qasi esconde-se até reaparecer na conquista, desta vez com sucesso, de Mértola, onde entra triunfante a 14 de Agosto de 1144 e é denominado imam (um líder da comunidade muito importante, com conotação religiosa).

Dois senhores da região, Ibn Wazir e Ibn al-Mundhir rebelam-se também contra os Almorávidas e prestam-lhe vassalagem, obtendo respectivamente o domínio de Beja e de Silves como recompensa, sendo que o último é enviado por Ibn Qasi em conquistas sucessivas de Niebla, Huelva e numa tentativa falhada de cerco a Sevilha, que o obriga a recuar aos seus domínios.

Ibn Wazir, insultado pela aparente preferência de Ibn Qasi por al-Mundhir, alia-se ao senhor de Córdoba contra o seu até aí aliado e acaba por derrotar e capturar al-Mundhir, enviado por Ibn Qasi para o castigar. Ibn Qasi, alarmado, tenta pedir ajuda ao Califado Almóada, do Norte de África, mas sem sucesso, e acaba por perder Mértola, depois de pouco mais de um ano de reinado, para Ibn Wazir.

Muralhas do castelo medieval na cidade de Silves, região do Algarve
SHUTTERSTOCK / Pawel Kazmierczak

Muralhas do castelo medieval na cidade de Silves, região do Algarve. 

Ibn Qasi foge então para África e intercede pessoalmente junto dos líderes dos Almóadas, que se aliam a ele e lançam, poucos anos depois, uma ofensiva sobre o Sul da Península Ibérica que conquista sucessivamente Jerez, Niebla, Mértola e Silves. Ibn Wazir rende-se e declara fidelidade aos Almóadas, participando ambos os antigos aliados ao assalto (com sucesso, desta vez) dos Almóadas a Sevilha.

Como paga pelo seu contributo, é dado a Ibn Qasi o domínio sobre a sua Silves natal, mas, no caos político subsequente à queda da dinastia dos Almorávidas e substituição pelos Almóadas, este aproveita uma onda de declarações de independência política de diversos senhores locais para também ele se declarar independente.

No entanto, quando os restantes “reis” locais juram mais tarde fidelidade ao líder dos Almóadas, Ibn Qasi recusa, e procura em contrapartida uma aliança com os cristãos, mais precisamente com Afonso Henriques, que tinha recentemente conquistado Lisboa e cuja independência face a Castela admirava. Afonso terá aceitado esta aliança e enviado, simbolicamente, um presente de um cavalo, de um escudo e de uma lança para a cimentar simbolicamente.

Porém, este tinha sido um erro fatal de Ibn Qasi. Descontentes com a sua aliança com o líder cristão, os Almóadas patrocinam um golpe (possivelmente liderado por al-Mundhir, antigo aliado de Ibn Qasi) bem-sucedido, com, alegadamente, a cabeça de Ibn Qasi a ser separada do seu corpo e exibida cravada na lança que lhe teria sido oferecida por Afonso Henriques, acompanhada por gritos de “Aqui está o mahdi dos cristãos!”. Corria o Verão de 1151.

Sem o seu mahdi, os muridinos tentam ainda resistir no seu último reduto, Tavira, mas ataques sucessivos lançados desde Cacela acabam por levar à extinção deste movimento. Do breve reinado de Ibn Qasi nada restou… Ou não será bem assim?

Ibn Qasi: o seu legado na cultura

Embora Ibn Qasi e os seus seguidores tenham sido esmagados pelos Almóadas, a sua memória continua viva nas terras de que um dia foi senhor, e tem sido inclusive celebrada nas últimas décadas.

Em Mértola, uma estátua de Ibn Qasi foi erguida às portas do castelo, olhando sobre a "Vila-Museu" do cimo do seu corcel. Em Silves, a sua vida foi tema da Semana Medieval local, com reconstituições dos seus feitos.

Em Novembro de 2019, a ACTA – Companhia de Teatro do Algarve encenou a peça “Ibn Qasi – O Rei Iniciado do Algarve”, focada na vida de Ibn Qasi e na sua ligação a Afonso Henriques, com Luís Vicente no papel principal. Na Arrifana, o séc. XXI veio voltar a revelar o antigo ribat de Ibn Qasi, uma estrutura única no país, que ganhou muito recentemente estatuto de protecção devido ao seu valor arqueológico.