Las Hoyas é fruto de uma das maiores revoluções ocorridas na vida terrestre.
Esta história começa com uma viagem ao passado. Partimos do sítio de Las Hoyas, localizado a cerca de 20 quilómetros da cidade de Cuenca, e recuamos 126 milhões de anos para aterrar num tórrido dia de Verão. Encontramo-nos num ecossistema subtropical formado por zonas pantanosas que, nesta estação seca, têm menos água. Na escala temporal geológica, estamos no Barremiano, a quarta idade do Cretácico Inferior. Localização? Uma formação geológica calcária conhecida como La Huérguina que aflora no que é hoje o município de La Cierva. O calor aperta, o termómetro ultrapassa 40°C. Um jovem crocodilo com cerca de 30 centímetros de comprimento, parcialmente desidratado, avança penosamente entre a vegetação, na qual abundam fetos, bosques de coníferas e também amplas zonas herbáceas. A paisagem é radicalmente diferente da que caracteriza actualmente a serra de Cuenca.
Naqueles tempos, conta Ángela Delgado Buscalioni, professora de Biologia na Universidade Autónoma de Madrid (UAM) e responsável por várias linhas de investigação no sítio de Las Hoyas, a actual Península Ibérica fazia parte de uma cadeia de ilhas oceânicas situadas entre o mar de Tétis e o oceano Atlântico que, por sua vez, formavam um importante corredor biológico e uma ligação evolutiva para as espécies de flora e fauna entre a Eurásia, a América e África.
Restam poucas horas de vida ao nosso crocodilo, cujos restos foram descobertos em meados da década de 1990. Pertencente ao grupo Eusuchia, é uma espécie próxima dos crocodilos actuais. Infelizmente para ele, as temperaturas elevadas evaporaram quase por completo as lagoas outrora transbordantes de água onde o juvenil passou os últimos tempos alimentando-se de insectos como gafanhotos e grilos, bem como de peixes, rãs e salamandras de pequeno porte. Se tivesse chegado a adulto, poderia ter atingido um metro e meio de comprimento, mas, exausto e débil, está prestes a morrer. Caminha de forma arrastada sobre as quatro patas, com a cauda roçando no solo enegrecido por recentes incêndios deflagrados pelo calor intenso. Entre a vegetação queimada há exemplares de Weichselia reticulata, um feto actualmente extinto que o fogo deixou fossilizado para a posteridade. Sobrevoam-na algumas aves, actualmente extintas, como as espécies Eoalulavis hoyasi e Iberomesornis romerali.
Há mais de 30 anos que os paleontólogos desenvolvem trabalhos sistemáticos em Las Hoyas. Camada a camada, expuseram milhares de fósseis extraordinariamente bem preservados.
Também há outras formas voadoras maiores, como o pterossauro Europejara olcadesorum, descrito pelos investigadores de Las Hoyas em 2012. Pequenos mamíferos correm nos arredores, esgravatando entre folhas secas em busca de escaravelhos. Entre eles, encontra-se o actualmente extinto Spinolestes xenarthrosus, um animal eutriconodonte maior do que um rato e de constituição robusta, cujo fóssil, descrito em 2015, permitiu observar até a evolução do pêlo nos mamíferos.
Também não faltam espécies de dinossauros deambulando por estas terras, como o Pelecanimimus polyodon (o seu nome significa “imitador de pelicanos” devido à papada que possuía, parecida com a desta ave). A sua peculiar dentição era composta por 220 microdentes. O Concavenator corcovatus (o nome significa “caçador corcunda de Cuenca”), de hábitos carnívoros e endémico da zona que, com quase cinco metros de comprimento, é o maior animal aqui encontrado. Os restos de ambos foram identificados em Las Hoyas em 1993 e 2010, respectivamente, num excepcional estado de conservação.
O director das escavações, Jesús Marugán, observa com a lupa um fragmento de fóssil de tubarão numa das lajes extraídas. Muitas contêm os vestígios de animais e plantas de há 126 milhões de anos.
Depois de esquadrinhar com as patas o fundo do pântano e de constatar que este está praticamente seco, o crocodilo claudica finalmente, tomba e morre. O seu corpo inerte cai sobre o tapete microbiano que cobre o leito, formado por uma comunidade simbiótica de algas e bactérias que desencadeiam o processo que assegurará ao crocodilo um bilhete para a eternidade.
“Os tapetes microbianos, compostos por algas que respiram oxigénio e bactérias anóxicas, formam um conjunto indissolúvel capaz de sobreviver tanto durante os ciclos temporais em que a água abunda como naqueles em que esta escasseia ou, simplesmente, não existe”, explica Ángela D. Buscalioni. É fascinante aquilo que sucede quando um organismo cai em cima dessa camada de mucilagem, mucosa e aderente: as algas, que encontram nesse cadáver uma fonte de nutrientes, apressam-se a cobri-lo com os seus filamentos, tecendo à sua volta uma espécie de casulo.
No espaço de apenas uma semana, o corpo fica coberto por completo e, no interior, as bactérias, que sustentam um ambiente com pouco oxigénio, impedem que se decomponha. É curioso que o elemento químico que nos dá vida, o oxigénio, seja igualmente o maior detonador do processo através do qual todos os organismos, ao morrerem, se transformam em formas mais simples de matéria, até voltarem de novo a fundir-se com a natureza.
Um pântano do cretácico.
O sítio de Las Hoyas é um exemplo singular e um ecossistema de zonas húmidas do Cretácico Inferior (em cima, recriação artística). Ángela Delgado Buscalioni, bióloga da Universidade Autónoma de Madrid e directora do Centro para a Integração em Paleobiologia (CIPb), diz que, naquela época, há 126 milhões de anos, o que é hoje a Península Ibérica era uma ilha entre o mar de Tétis e o oceano Atlântico ( mapa paleogeográfico). Aquele oceano do Mesozoico banhava as costas dos continentes e, muito depois, daria origem ao mar Mediterrâneo. Situada entre a Eurásia, a América e África, aquela ilha permitiu a propagação e diversificação da fauna e da flora.
Ilustração: Óscar Sanisidro. Fonte: Las Hoyas, a Cretaceous Wetland (Editor Friedrich Pfeil). Mapas: Anyforms Design. Fontes: Jesús Marugán Lobón; Christopher R. Scotese, Projecto Paleomap.
“Graças a esse processo, conduzido pelas algas e pelas bactérias, o corpo permanece preso num espaço vazio, semelhante a um sarcófago, desidrata e fica como que mumificado”, explica Jesús Marugán Lobón, actual director das escavações de Las Hoyas e especialista em macroevolução. Resultado? Uma espécie de réplica fossilizada, algo parecido com o que acontece com os estromatólitos, que brindam os paleontólogos com magníficos postais em alta definição, enviados desse passado distante.
No entanto, não é só a qualidade e preservação da grande maioria dos fósseis de Las Hoyas (70% do total) que é extraordinária, pois a jazida também surpreende pela grande variedade de espécies de flora e fauna que as escavações trouxeram à luz. Foram identificadas aqui 201 espécies de 118 famílias diferentes que incluem plantas, algas, insectos, peixes, rãs, crocodilos, lagartos, dinossauros, mamíferos, aves… Entre os animais encontraram-se muitas larvas e crias, levando os cientistas a pensar que este era um lugar utilizado como refúgio, uma espécie de berçário cretácico.
Além desses tapetes microbianos “embalsamadores” que tantas alegrias deram aos cientistas, ocorreu aqui nessa época outro fenómeno natural que explica a colossal diversidade de espécies encontradas. Trata-se de um evento conhecido como Revolução Terrestre do Cretácico (RTC). “Foi um período em que os ecossistemas terrestres e as paisagens mudaram para sempre”, explica Jesús Marugán. “Devemos recordar que, até ao Cretácico Inferior, a vida no mar era mais diversificada do que a terrestre. Depois, apareceram as plantas com flor, as angiospérmicas, e a Terra passou por uma transformação espectacular.”
E qual a causa de uma metamorfose tão extraordinária? “Em grande parte, ela aconteceu devido às flores”, assegura o investigador. Estas engenhosas e formidáveis estruturas reprodutivas foram evoluindo, de modo a tornarem-se atraentes para os insectos e outros animais, que se encarregam de empreender tanto a polinização, ao viajarem de flor em flor, como de dispersar as sementes, normalmente excretando-as depois de ingeridas. Além disso, as plantas com flor crescem e expandem-se mais depressa do que as restantes, que não as possuem.
Foi assim que apareceram as flores, que se propagaram por todo o lado, colonizando novos territórios e evoluindo mais rapidamente do que as suas rivais e se abriram na Terra novos nichos ecológicos que rapidamente foram aproveitados pela multiplicidade de espécies emergentes. Tantas, que a biodiversidade terrestre acabou por superar a marinha de forma descomunal: na actualidade, apesar de os oceanos cobrirem 70% da superfície do planeta, entre 80 e 95% de todas as espécies existentes habitam ecossistemas terrestres.
O sítio de Las Hoyas é considerado do tipo Konservat-Lagerstätte. O termo, de origem alemã, define as jazidas que acolhem restos fósseis excepcionalmente bem preservados ou completos, como este feto Weichselia, cujas duas grandes frondes aparecem expostas in situ no calcário.
Juntamente com as formas sobreviventes da transição do Jurássico para o Cretácico, são palpáveis em Las Hoyas as primeiras evidências dessa revolução da vida vegetal e animal no planeta. Fruto da RTC surgiu uma grande quantidade de insectos e também de lissanfíbios (os anfíbios contemporâneos), tartarugas, lagartos, crocodilos, pterossauros, dinossauros, aves primitivas e mamíferos eutriconodontes. A vida também se diversificou nos ambientes aquáticos e proliferaram sobretudo tipos modernos de algas carófitas, insectos aquáticos (incluindo dípteros, heterópteros e coleópteros) e peixes teleósteos. Graças às características deste sítio, o registo de tamanha revolução da vida ficou magnificamente perpetuado nas suas lajes de calcário litográfico.
De volta à nossa nave do tempo literária, regressamos à época actual e aterramos nesta mesma paragem. É Primavera e estamos na década de 1980. Uma borboleta Tomares ballus, da família dos licenídeos, sobrevoa este baldio solitário junto do solo, sob o olhar atento de um apaixonado por fósseis chamado Armando Díaz Romeral, que observa o lepidóptero com atenção, pois pertence a uma espécie que ele, grande conhecedor do território, nunca vira ali antes. A dada altura, a borboleta pousa numa das lajes e, maravilha das maravilhas, Armando Díaz descobre nela a marca de uma libélula fóssil. É uma das muitas marcas do passado que descobrirá nesse local, incluindo a que seria, sem o saber, uma das primeiras jóias descobertas em Las Hoyas: os restos de uma pequena ave chamada Iberomesornis.
Armando Díaz Romeral não era o único que por aqui passeava, atento ao que escondiam estas paragens. O geólogo Santiago Prieto suspeitava que aqui existissem restos de grande valor, sobretudo desde que um pedreiro apontara numerosos fósseis claramente apreciáveis nos revestimentos das paredes de várias casas locais, feitas com lajes calcárias. O geólogo descobriu de onde tinham sido extraídas essas pedras planas e encontrou peças excepcionais. Decidiu então abordar a Universidade Complutense de Madrid, onde estudara, que lhe sugeriu por sua vez que contactasse um perito em paleontologia da Universidade Autónoma de Madrid (UAM) chamado José Luis Sanz.
Santiago encontrou-se com ele e mostrou-lhe vários fósseis: um pequeno anfíbio, um peixinho, uma folha… Impressionado, Sanz decidiu organizar uma visita ao sítio com alguns alunos. Nessa manhã de Julho de 1985, entre os alunos, um grupo de estudantes de biologia da UAM carregados com mochilas e cantis, encontrava-se uma jovem bióloga chamada Ángela Delgado Buscalioni.
Uma vez chegado ao local, José Luis Sanz apercebeu-se do seu potencial e tomou as medidas necessárias para que, nesse mesmo Verão, começassem os trabalhos de exploração, apoiados pela Junta de Comunidades de Castilla-La Mancha e por sucessivos programas nacionais de investigação. Seria o tiro de partida para mais de trinta anos de escavações.
“Devemos a Sanz as primeiras grandes descobertas: alguns dinossauros e também aves incríveis, como a Iberomesornis, do tamanho de um pardal, com asas curtas dotadas de uma garra cada uma, e a Eoalulavis, a primeira ave mesozóica na qual se observa a existência de um dedo polegar dotado de mobilidade graças ao qual poderia realizar um voo manobrável”, explica Jesús Marugán. “Os seus trabalhos sobre as aves mesozóicas revelaram também a sua identidade reptiliana e forneceram pistas sobre o seu parentesco com os dinossauros.”
É impossível relatar em pormenor nestas páginas todas as descobertas feitas aqui. “Las Hoyas é um sítio único, tanto pela quantidade e variedade de vestígios fossilizados tão bem conservados que contém, como pela investigação tão sistemática que nele se tem realizado desde 1985”, sublinha Ángela Buscalioni. Embora seja um sítio com apenas cerca de sete hectares, não deixa de oferecer surpresas constantes. Só nas escavações do Verão passado, dizem os investigadores, extraíram-se cerca de duzentos fósseis de fetos, insectos, peixes, uma tartaruga e um trilho com várias pegadas de um crocodilo em ambiente pouco profundo.
Agora, explica Jesús Marugán, fazendo uma simulação informática, “estamos a enfrentar a fase 3.0 da investigação. A 1.0 foi a descrição da diversidade, empreendida por José Luis Sanz. A 2.0 foi dirigida por Ángela Buscalioni e centrou-se na ecologia do sistema. Agora, na 3.0, queremos averiguar a estrutura deste sistema, as inter-relações entre os organismos, as cadeias tróficas”. Para tal, recorreram a modelos matemáticos complexos que permitem aos bioinformáticos fazer simulações e averiguar o papel desempenhado por diferentes espécies. A tecnologia progrediu muito nestas três décadas, com a computação e a microscopia, embora os instrumentos utilizados para escavar continuem a ser o martelo e o cinzel. A tomografia computorizada deu outro contributo, sublinha Jesús Marugán. “Este exame imagiológico permite observar as peças em três dimensões através de técnicas não destrutivas que, virtualmente, ‘extraem’ o fóssil da matriz sem o danificarem, para que possamos observá-lo com uma precisão nunca vista, de até três micrómetros. Isso para não falar no sincrotrão, que possibilita alcançar a nanoescala.” Os drones também ajudam os paleontólogos a fazer a composição do local graças à captura de imagens zenitais das escavações. Todas estas novas técnicas e metodologias permitirão observar um antigo ecossistema integral de forma inédita.
Mas será que ainda se espera encontrar surpresas paleontológicas em Las Hoyas ao fim de 35 anos de trabalho? “Uf, temos aqui trabalho para gerações inteiras! Dos 70 mil metros quadrados de superfície do sítio, só actuamos em cerca de 8.500”, afirma o paleobiólogo. Ou seja, só foi explorada cerca de 12% da jazida e, nessa pequena percentagem, encontraram-se cerca de 25 mil fósseis, hoje armazenados no Museu Paleontológico de Castilla-La Mancha (MUPA), situado na cidade de Cuenca. Esta é, sem dúvida, a colecção-rainha do centro, onde também se pode apreciar uma exposição que explica o essencial sobre o local, um tesouro geológico equiparável a outros tesouros da paleontologia, como os sítios de Yixian, na China, e Messel, na Alemanha, que também colhem fósseis num extraordinário estado de conservação e que ajudaram os peritos a aprofundar a história passada do planeta.
“Em Las Hoyas, trabalhámos em pequenas parcelas delimitadas nos últimos 25 anos, abrindo níveis milímetro a milímetro, camada a camada, registando na vertical tudo o que aparece, o que nos permite desvendar a ecologia daquela época”, conta Jesús Marugán. Pergunto-lhe qual é o seu sonho e responde-me: “Continuar a fazer o mesmo, mas numa superfície maior, com 50 ou 100 metros quadrados, e deixar a descoberto uma grande janela para o passado que revele a evolução em tempo real de como o mundo era há 126 milhões de anos.” Uma viagem no tempo a golpe de martelo e cinzel que ninguém sabe quantas novas surpresas trará.