Perguntava Sting na sua famosa canção “Russians”, em 1985, “How can I save my little boy from Oppenheimer’s deadly toys?” (Como posso salvar o meu filho dos brinquedos mortais de Oppenheimer?). Referia-se à bomba atómica, à qual quarenta anos antes um cidadão japonês conseguiu escapar... duas vezes. Na superfície, o indivíduo em questão é uma anomalia história. É o homem que sobreviveu a ambas as explosões nucleares em Hiroshima em Nagasaki, mas a sua história encerra uma lição bem mais profunda e importante para o que somos e seremos como Humanidade.

UMA MANHÃ SOALHEIRA EM HIROSHIMA E UMA LUZ MAIS INTENSA QUE MIL SÓIS

Chamava-se Tsutomu Yamaguchi. Natural de Nagasaki, trabalhava desde 1930 na Mitsubishi no design de petroleiros; mas no dia 6 de Agosto de 1945, estava em Hiroshima, a caminho do trabalho. Atrasado, caminhava veloz rumo ao escritório da Mitsubishi, onde contava finalizar os pormenores de um projecto que devia entregar nesse dia. A sua expectativa era terminar o mais rápido possível e regressar à sua cidade natal, estar com a sua família. No meio deste bulício, escutou o barulho de motores sobre si. Era um bombardeiro B-29; e do seu ventre saiu um pequeno objecto com dois pára-quedas que descia lentamente sobre o solo.

 

Eram 8h15 da manhã, o dia instalava-se, mas segundos depois, Yamaguchi assistiu a um relâmpago de luz e um estrondo tremendo que cavalgaram na sua direcção sobre a cidade. A três quilómetros do ponto de impacto, o engenheiro foi projectado violentamente antes de se proteger, por instinto, numa vala de irrigação.

 

atomic bomb hiroshima mushroom clouda
ARCHIVO GBB/CONTRASTO/REDUX

Uma nuvem em forma de cogumelo paira sobre a cidade japonesa de Hiroshima a 6 de Agosto de 1945, depois de os EUA terem lançado a primeira bomba atómica alguma vez utilizada em guerra. Três dias depois, uma segunda bomba atómica destruiu a cidade de Nagasaki. O Japão rendeu-se a 15 de Agosto.

Quando a comoção terminou e despertou da inconsciência, horas depois, arrastou-se para o exterior e sentiu dores no corpo todo. Um dos seus tímpanos rebentara, a parte superior do corpo tinha queimaduras graves. Procurou um lugar onde pudesse abrigar-se. Pelo caminho, foi ajudando a desenterrar cadáveres que se encontravam entre destroços. A Hiroshima onde começara a manhã era agora um imenso espaço terraplanado.

Finalmente, encontrou um abrigo militar, preparado para proteger de ataques aéreos. Enquanto encontrou alguns colegas, questionando o que lhe acontecera, não se sentiu seguro. Tinha a certeza de que aquele local, supostamente de protecção, não serviria contra a bomba que testemunhara. Era completamente diferente de qualquer outra que conhecia ou ouvira falar. E tinha razão. Yamaguchi assistira à detonação da Little boy, a primeira bomba atómica a ser usada em cenário de guerra. A contagem futura de vítimas seria de cento e quarenta mil mortos, sendo que muitas dezenas de milhar morreriam nas décadas seguintes como consequência de envenenamento por radiação.

Hiroshima, à altura uma das mais importantes cidades industriais do Japão e em séculos anteriores centro de operações militares, seria no futuro conhecida como a primeira mártir do átomo. Porém, Harry Truman, presidente dos EUA, escolhera-a, juntamente com o Estado-Maior das Forças Armadas americanas, precisamente pela sua posição estratégia como lar de uma das forças militares mais importantes da estratégia nipónica de defesa do Sul do País.

Às vítimas mais imediatas, na ordem dos cento e quarenta mil, seguiram-se muitas dezenas de milhar nas décadas seguintes como consequência de envenenamento por radiação.

No entanto, a maior parte das vítimas eram civis. Como Truman mais tarde repetiria, era necessária uma demonstração de força para obrigar o Japão a render-se. Para obrigar ao final de uma guerra que o Imperador nipónico afirmara publicamente querer levar até aos limites drásticos: vencer ou morrer tentando. Hiroshima era, na sua visão, esse exemplo.

Hiroshima
Domínio Público

A pele da paciente está queimada num padrão que corresponde às partes escuras de um quimono usado na altura da explosão. Fonte: National Archives and Records Administration

Figuras que o rodearam nesse período – como o seu sucessor na presidência Dwight Eisenhower ou o general Douglas MacArthur, que comandava todo o teatro de operações dos EUA no Pacífico – afirmaram mais tarde ter-se oposto à bomba antes de esta ser lançada. No entanto, não existem quaisquer provas nesse sentido. Sendo que também não há evidências de que a campanha de bombardeamentos incendiários constantes que os americanos haviam usado nas semanas anteriores a 6 de Agosto de 1945 não estivesse a forçar os Japoneses até ao ponto de ruptura.


…E NOVAMENTE EM NAGASAKI

Tudo isto eram considerações geopolíticas e morais que não eram prioritárias para Yamaguchi. No dia seguinte, embora ferido, quis regressar a Nagasaki. Estava preocupado com a situação da sua família. Traumatizado pelo que lhe acontecera, soube que, incrivelmente, algumas linhas de comboio se mantinham abertas, incluindo a que viajava até à sua cidade natal. Deslocou-se a pé e pelo caminho assistiu a um cenário atroz. Atravessou rios a nado, porque as pontes haviam sido todas destruídas – contaria mais tarde as visões dos corpos inchados acumulados, alguns deles fundidos.

A visão ficaria com ele para sempre, mas só lhe interessava chegar à estação e voltar para casa, onde chegou a 8 de Agosto. A primeira coisa que fez foi dirigir-se ao hospital e tratar dos seus ferimentos. Os médicos recomendaram-lhe repouso, mas o engenheiro de 29 anos não queria conviver com as imagens de Hiroshima, precisava de se concentrar em algo. Na manhã seguinte, então, foi trabalhar na sua fábrica; e enquanto explicava ao patrão tudo o que acontecera na manhã de seis de Agosto, encontrando neste a incapacidade de acreditar que uma só bomba conseguiria destruir uma cidade inteira, Fat Man, o segundo engenho nuclear a ser usado na História em cenário de guerra, detonou.

 

Museu da Bomba Atómica de Nagasaki
Shutterstock

Exposição no Museu da Bomba Atómica de Nagasaki, na cidade onde o Fat Man – o segundo engenho nuclear a ser usado na História em cenário de guerra – foi detonado a 9 de Agosto de 1945. Um dos primeiros forasteiros a visitar esta então vila de pescadores foi Fernão Mendes Pinto. 

Novamente, a mais ou menos três quilómetros de onde Yamaguchi se encontrava. Novamente, o mesmo cenário: corpos em seu redor, um silêncio mortal, mórbido, nos segundos a seguir à explosão. A fábrica foi obliterada, mas desta vez, a fortuna de Yamaguchi protegeu-o por completo: saiu incólume. Desmaiara de novo, mas sobrevivera uma segunda vez. O problema maior que teve no imediato foi uma infecção. Esta deveu-se a não conseguir substituir as ligaduras que lhe protegiam as queimaduras; e como tal, passou a semana seguinte a vomitar.

Em Nagasaki, morreram à volta de quarenta mil pessoas no impacto inicial. Yamaguchi resistiu. A sua esposa também, juntamente com o filho bébé de ambos. Yamaguchi, traumatizado, mal foi capaz de pronunciar palavra nos dias seguintes à explosão de Nagasaki; e durante quase 50 anos, foi incapaz de falar sobre o assunto. Depois do fim do conflito, num toque surreal, trabalhou como tradutor para o exército aliado que estava de plantão no Japão.

O casal teve mais duas filhas e quando em 1957 o governo japonês criou o conceito legal de hibakusha, designando os sobreviventes de uma explosão atómica, Yamaguchi candidatou-se aos vários privilégios que o estatuto concedia. Nessa altura, voltara a trabalhar para a Mitsubishi e vivia relativamente saudável com a família, mergulhado nos seus traumas, mas feliz o suficiente para deixar o passado para trás. No entanto, com o passar do tempo e o fantasma da guerra nuclear a pairar sobre o mundo, Yamaguchi foi sentindo a necessidade de falar da sua experiência, lembrar as vítimas, aqueles que não tinha tido a sua sorte. Ou azar. Conta que em 1981 ouviu um discurso de João Paulo II tratando a tragédia de Hiroshima como o da mão humana. Acordou nele uma vontade de fazer algo, mas sentiu vergonha, embaraço pelo facto de não se considerar uma real vítima atómica – tirando o tímpano rebentado, não sofrera outros danos visíveis – e e também pelo estigma que durante várias décadas as vítimas de Hiroshima e Nagasaki carregaram no país, como doentes infecciosos da radiação, como se pudessem espalhar a sua doença a outros. Por isso mesmo eram muitas vezes preteridos em empregos ou simplesmente… em casamento. 

VENCENDO O ESTIGMA DA VÍTIMA

Todos estes obstáculos desapareceram em 2005, quando o filho de Yamaguchi, aquele que era bébé aquando de Nagasaki, morreu de cancro. Abriu-se à exposição pública, surgindo em dois documentários sobre as explosões e com 90 anos – espantoso, quando pensamos no que passou naqueles quatro dias em 1945. Pediu pela primeira vez o passaporte e viajou até Nova Iorque, onde discursou perante uma audiência no edifício das Nações Unidas. A sua figura impressionou jornalistas e cineastas que o entrevistaram. Enquanto que com outros sobreviventes as memórias parecem distantes, uma colecção de fragmentos dispersos, Yamaguchi vive ainda o passado, é uma prova do mesmo, uma encarnação daquele fantasma luminoso que levou Oppenheimer a considerar-se a Morte destruidora de mundos.

Em 2009, foi reconhecido como o único duplo sobrevivente atómico pelo Governo japonês. No ano ano seguinte, faleceria de cancro no estômago, com a impressionante idade de 93 anos. A sua esposa falecera dois anos antes e tantos eles como os filhos sofreram de problemas relacionados com radiação após 1945. 
Tendo-se tornado numa celebridade momentânea, correspondendo-se com Barack Obama ou recebendo a visita de James Cameron, a luta interior de Yamaguchi reflecte-se na totalidade nos poemas que escreveu já idoso. As recordações vivas, mais do que presentes:

 

“Os corpos estão empilhados uns sobre os outros. E o chão nunca secará
Está empapado da gordura de todas as pessoas que arderam e morreram”

 

Tsutomu Yamaguchi, o homem duas vezes amaldiçoado e abençoado, mas eternamente assombrado pelo fantasma da bomba atómica.