Depois da morte do seu esposo Tutmés II, Hatchepsut assumiu aos poucos todo o poder até se autoproclamar faraó.

No Antigo Egipto, o faraó ostentava um poder absoluto. Concentrava em si toda a autoridade política e religiosa. Para os seus súbditos, era um deus na terra, descendente do ser supremo que criara o mundo na origem dos tempos e só ele podia manter a ordem em tudo o que era criado.

O vizir Rekhmiré, da XVIII dinastia, definiu em palavras simples um conceito teológico de grande complexidade: “O que é o rei do Alto e do Baixo Egipto? É o deus graças ao qual existe vida, o pai e a mãe de todos os homens, ele apenas, sem igual.” Para os egípcios, era natural que uma função com essa autoridade fosse exercida por um homem.

Os reis eram identificados com Hórus, o deus celeste da mitologia egípcia, representado como um homem com cabeça de falcão. No entanto, sabemos que, ao longo da história egípcia, algumas mulheres superaram a sua condição de esposas ou mães e ocuparam o trono real.

De todas elas, a que mais se destaca – porventura com excepção da famosa Cleópatra VII – foi Hatchepsut, no início da XVIII dinastia, fundada em 1552 a.C. Filha e esposa de reis, Hatchepsut governou o Egipto durante um longo período e fê-lo sozinha: não se limitou a assegurar a regência de um faraó menor de idade, como sucedeu com outras rainhas. Ao invés, apresentou-se ela própria como faraó.

Uma família de mulheres poderosas

Desde o seu início, a XVIII dinastia caracterizou-se pelo relevante papel desempenhado pelas mulheres da família real, mães e esposas de reis. O primeiro faraó da dinastia, Ahmés, iniciou o seu reinado em 1552 a.C. sob regência da mãe, a rainha Ah-hotep I, mulher de grande personalidade que acumulou importantes responsabilidades.

É significativo lembrar que o enxoval funerário da rainha incluía um machado cerimonial com o título de Ahmés e um colar do qual pendiam três grandes moscas de ouro. Este tipo de colar era uma condecoração concedida por mérito militar, o que leva a crer que Ah-hotep I o tivesse ostentado ao comando do exército. O faraó Ahmés casou-se com a irmã, Ahmés-nefertari, a qual, à morte do seu esposo, exerceu a regência durante a adolescência do seu filho, o jovem príncipe Amen-hotep I, preparando-o para o que foi um reinado próspero e de expansão do Egipto.

O início da dinastia fora marcado pela falta de um herdeiro varão, um problema frequente na genealogia real do país. Tutmés I, o sucessor de Amen-hotep I, não era filho deste, mas provavelmente do seu irmão mais velho, que morreu antes de subir ao trono, e de uma dama do harém (Sesiseneb) que não pertencia à família real. Já convertido em faraó, Tutmés I também não teve filhos varões do seu matrimónio com a Grande Esposa Real, a princesa Ahmés, e o casal gerou apenas filhas. Uma delas faleceu jovem (Amenemhat); a outra era Hatchepsut, que herdou o título de “Esposa de Deus”. O faraó teve três filhos varões, mas tinham sido concebidos com uma concubina do harém, Mutnefert.

Os egiptólogos acreditam que a indisponibilidade de um herdeiro varão legítimo terá sido uma das razões que levaram Tutmés I a pensar que a sua filha Hatchepsut, embora mulher, lhe poderia suceder.

Somente ela, entre os seus descendentes vivos, era aparentada directamente com a XVIII dinastia através da sua mãe, Ahmés, uma princesa de sangue real, filha de Ahmés, o fundador da dinastia, e da sua esposa e irmã Ahmés-nefertari.

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A renovação do poder.
Nesta cena da Capela Vermelha de Karnak pode ver-se Hatchepsut, com traços masculinos , celebrando o ritual de corrida do Heb-sed, um festival essencial que servia para renovar o poder do rei. 

De Grande Esposa Real a regente

Existem testemunhos da predilecção do rei pela sua filha. No segundo ano do seu reinado, durante a festa de Amon, o oráculo divino indicou a Tutmés I que o país das Duas Terras, o Egipto, pertenceria a Hatchepsut, ou seja, que ela lhe deveria suceder. Essa narrativa ficaria gravada num bloco rochoso da Capela Vermelha, que Hatchepsut ergueu em Karnak vários anos mais tarde, quando ela própria se sentou no trono do Egipto.

Noutra ocasião, o faraó viajou com Hatchepsut até ao delta e aí disse aos seus súbditos: “Esta é a minha filha e eu nomeio-a como minha representante. Também é minha herdeira do trono, sentar-se-á neste magnífico local e ela vos comandará.” Hatchepsut cresceu com a crença de que o seu destino seria a governação, e os indícios que nos chegaram sugerem que ela ajudou o pai nas suas funções. Num texto inscrito anos mais tarde no templo de Deir el-Bahari, exaltava-se a beleza da princesa divinizada e já destinada ao trono: “Sua Majestade transformou-se, cresceu muito e vê-la é mais belo do que qualquer outra coisa. A sua aparência […], a sua conduta […], o seu modo de realizar os rituais […], o seu fulgor, são os de uma divindade.”

O desejo de Tutmés I não foi satisfeito e o seu sucessor no trono foi Tutmés II, um dos filhos que tivera com Mutnefert. Hatchepsut, porém, não foi afastada do poder.

Antes da morte do pai, casou com o meio-irmão, transformando-se na Grande Esposa Real por via matrimonial. Era uma forma de transmitir legitimidade ao novo faraó, dado que no Antigo Egipto considerava-se que a Grande Esposa Real era a depositária da essência divina recebida dos antepassados e transmitida aos descendentes.

Tutmés II morreu ao fim de três anos de reinado. O trono voltava a ficar sem um herdeiro varão legítimo, já que Hatchepsut gerara apenas duas filhas. O sucessor do faraó falecido foi Tutmés III, fruto de uma esposa secundária do antigo rei. E, uma vez mais, Hatchepsut viu – como sucedera à morte do pai – um varão, cuja mãe não tinha sangue real, interpor-se no seu caminho.

Com 25 anos, Hatchepsut respeitou a tradição e assumiu a regência durante a menoridade do príncipe. Ao fim de algum tempo, adoptou o título de faraó. Ignora-
-se o motivo para este passo que carecia de precedentes próximos. As suas antecessoras, as rainhas Ah-hotep e Ahmés-nefertari (mães do primeiro e do segundo faraós da XVIII dinastia), tinham exercido a regência sem serem coroadas; Hatchepsut foi-o.

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Templo de Deir El-Bahari
Hatchepsut construíu o seu templo funerário na montanha de Tebas. Num dos relevos que a decoram, a rainha mostra  a sua concepção divina, que a legitima como faraó.

Eleita pela divindade

É redutor afirmar que a sua única motivação foi a ambição. O sentido do dever, a educação, a consciência de ser herdeira de uma ilustre linhagem e a admiração pela obra realizada pelo seu pai, Tutmés I, devem ter sido factores decisivos que levaram Hatchepsut a assumir a responsabilidade do governo. Havia que consolidar o império que Tutmés I começara a criar e isso requeria um dirigente forte e não uma criança faraó. Terá sido essa igualmente a intenção da classe dirigente egípcia, dos nobres e dos poderosos sacerdotes do clero de Amon, que deram a sua aprovação à subida ao trono de uma mulher, um acto raríssimo na história desta civilização.

É indubitável que a decisão de Hatchepsut exigiu uma operação de legitimação e de propaganda para que ela fosse reconhecida como verdadeiro faraó tanto pela elite como pelo povo do Egipto. É provável que essa estratégia tenha sido elaborada pelas pessoas mais próximas da rainha, contando com a total aprovação do clero de Amon e do seu representante máximo, o sumo sacerdote Hapuseneb.

Deste modo, Hatchepsut revestiu-se dos atributos masculinos característicos do faraó: nas estátuas que se conservaram da rainha, ela é representada com a barba real, de saioite e nemés, a cobertura divina do faraó. Também adoptou os nomes que correspondiam aos soberanos egípcios e que foram acrescentados ao seu nome de Hatchepsut, “a que está à cabeça das nobres damas”. Esses nomes foram Useret Kau, “a poderosa de kas”; Uadjet Renput, “a florescente de anos”; Netjeret Hau, “a divina de aparência”; Maatkaré, “o verdadeiro ka de Ré” (o ka é a força geradora da vida). Como se depreende, os nomes destacavam a força pessoal da rainha e a sua estreita relação com a divindade.

As construções erguidas por Hatchepsut eram acompanhadas de imagens e textos destinados a legitimar a sua coroação. O oitavo pilone do templo de Karnak, por exemplo, contém um discurso atribuído a Tutmés I, mas escrito no reinado de Hatchepsut. Nele, o rei dá graças à tríade tebana (os deuses Amon, Mut e Khonsu) por ter permitido que o Egipto permanecesse sob a autoridade da sua filha, “o rei” do Alto e do Baixo Egipto, Maatkaré. Menciona-se também o oráculo que Amon pronunciou em favor de Hatchepsut quando esta era ainda uma jovem princesa, apresentando-a como a soberana que tornaria o país próspero sob seu comando. 

Talvez o argumento mais convincente para justificar o direito de Hatchepsut ao trono tenha sido a teogamia: a ideia de que a rainha nascera da união milagrosa da sua mãe com o deus Amon, a divindade principal do panteão egípcio na XVIII dinastia. Por esta razão, Hatchepsut foi aceite e abençoada por todos os deuses, o que a legitimava para ocupar o trono do Egipto. 

Condenada ao esquecimento

Tudo isto é mostrado numa série de relevos em Deir el-Bahari, o templo que Hatchepsut mandou construir perto do Vale dos Reis dedicado a Amon, à deusa Hathor e ao culto do ka ou ao alimento vital de Hatchepsut e do seu pai Tutmés I. As cenas ilustram o momento em que Amon adopta a aparência de Tutmés I para cortejar a rainha Ahmés e conceber com ela a sua filha divina Hatchepsut. Noutro relevo, relata-se a expedição comercial que a rainha organizou ao país de Punt (talvez na actual Somália). Nem falta sequer a alusão ao nascimento divino de Hatchepsut, pois num parágrafo Amon disse-lhe: “Eu sou o teu pai”, e é o mesmo deus que pede à rainha que envie uma frota a Punt para lhe trazer incenso para o seu culto.

Hatchepsut reinou durante mais de duas décadas, garantindo a continuidade da sua linhagem ao casar a sua filha mais velha, Neferuré, com o seu sobrinho Tutmés III.

Enquanto reinou, criou as condições do apogeu que o país do Nilo viveria depois de Tutmés III assumir o poder solitário, após a morte da rainha. A posteridade foi severa com a sua recordação. O próprio Tutmés III, no final do seu reinado, quis apagar os vestígios da rainha e ordenou que destruíssem a sua imagem e o seu nome de todos os monumentos.

Do mesmo modo, o nome de Hatchepsut não aparece na Lista real de Abido, uma relação de soberanos do Egipto desde Menés, o primeiro faraó. Esta famosa lista foi gravada num templo de Abido pelo faraó Seti I, que governou o Egipto duzentos anos depois de Hatchepsut. A lista omite os nomes de outros soberanos como os do faraó-herege Akhenaton e os seus sucessores Semenkhkaré, Ai e Tutankhamon. É provável que se tenha decidido legar à posteridade apenas os nomes dignos de recordação e, ao que tudo indica, para os autores dessa lista, o nome de Hatchepsut não seria um deles