No segundo milénio antes de Cristo, a queda da última dinastia suméria levou a um século de caos e vazio de poder na Mesopotâmia. Esta situação permitiu a entrada de povos seminómadas, oriundos do deserto da Síria, que se misturaram com os povos sumérios. Entre estes grupos destacaram-se os amorreus, um povo tribal que se apropriava livremente das terras para os seus rebanhos e que, logo que se estabeleceram, começaram a controlar algumas rotas comerciais. Com eles inaugurou-se o período Paleobabilónico, caracterizado pelo surgimento de uma série de cidades-estado como Isin, Larsa, Mari, Assur e Babilónia, cujas dinastias seriam amorreias. Tratava-se de Estados independentes que frequentemente lutavam para defender e expandir as suas rotas comerciais: Isin controlaria a rota do golfo Pérsico até que Larsa dela se apoderou; Assur, o comércio de metais da Anatólia; Mari enriqueceria com o comércio da Síria, e Susa e Eshnunna monopolizariam as rotas da Ásia.
Marduk, o deus principal de Hamurabi
Na Mesopotâmia, cada cidade tinha um deus tutelar, que a protegia e garantia a prosperidade. Uma das mudanças fundamentais de Hamurabi foi a substituição do deus do vento, Enlil, e a adoptação de um deus secundário, Marduk, provavelmente de origem amorita.
Para facilitar a aceitação de Marduk, este foi sincretizado com outras divindades populares, acrescentando-lhes os seus atributos, como a magia ou a vegetação, e símbolos, como o dragão-serpente ou a enxada. Para o exaltar aos olhos do povo, foi situado na origem da cosmogonia babilónica, como reflecte o poema Enuma Elish (Quando no alto), onde se relatam os feitos de Marduk e se reescreve a história dos deuses. Desta forma, Marduk passou a ser o criador do universo em vez do seu pai, Ea, e, consequentemente, o único legitimado para o governar com as suas leis. O lugar de adoração diária de Marduk era a Esagila da Babilónia, um templo elevado onde predominava a estátua da divindade antropomórfica e cujo culto era uma transposição das necessidades humanas: era-lhe oferecido alimento, mantinham-no limpo e vestiam-no. Na imagem, pormenor de um cilindro ilustrado com Marduk sobre o dragão-serpente (Museu Britânico, Londres).
A Babilónia viria a participar mais tarde neste agitado cenário político, uma vez que, na altura, não era mais do que uma pequena cidade no Sul da Mesopotâmia onde os amorreus, liderados por Sumuabum, se instalaram em 1894 a.C. Com ele iniciou-se uma dinastia cuja cidade dispunha de condições inferiores às restantes cidades à sua volta, mais fortes e consolidadas. Desde então, o pequeno território da Babilónia viu sucederem-se cinco reis, sem que, durante um século, a sua situação tivesse qualquer melhoria. No entanto, em meados do século XVIII a.C. as contendas entre as outras cidades começaram seriamente a ameaçá-los, pelo que Sim-Mubalite, o quinto rei desta dinastia, teve de travar as tentativas de invasão da cidade de Ur. De seguida, quase pela primeira vez, a Babilónia empregaria a força militar contra as cidades de Isin, Larsa e Assur. Depois destes encontros bélicos, o rei da Babilónia decidiu reforçar as suas defesas, iniciando uma série de campanhas de expansão e construção de fortalezas. Entretanto, o rei Rim-Sin de Larsa alcançava o domínio de importantes cidades-estado, como Eshnunna e Isin, ao estabelecer uma coligação contra Sim-Mubalite, a quem veio a derrotar. Este, para não se submeter ao seu domínio, optou pela diplomacia e conseguiu chegar a um acordo pacífico com ele.
O rei letrado
Hamurabi, como sexto rei da dinastia babilónica, viria a suceder a seu pai Sim-Mubalite e herdar a tarefa de manter a independência da Babilónia face a estas cidades beligerantes. Nascido por volta de 1811 a.C., Hamurabi, contrariamente ao seu pai e ao seu avô, recebeu um nome amorreu (Amurapi), cuja língua derivava do acadiano, a língua comum da Babilónia. Este gesto refiectia os laços que os babilónios sentiam em relação à sua tribo ancestral, à qual estavam ainda mais vinculados do que ao próprio território. No âmbito da especulação, tudo leva a crer, pelos seus actos e disposições, que a formação de Hamurabi terá sido infiuenciada pela educação suméria que recebiam os filhos das classes privilegiadas.
O novo rei não seria um iletrado como os nómadas amorreus que invadiram a Mesopotâmia. Na realidade, terá aprendido a escrita cuneiforme nas tabuletas de argila onde o ummia, ou professor, ensinava o conhecimento da época, baseado na religião, na botânica e na matemática. Da mesma forma, a própria irmã de Hamurabi, Iltani, terá recebido alguma educação, uma vez que, segundo consta nos textos, era naditu, ou seja, uma sacerdotisa que vivia no templo, uma classe de elite de mulheres activas com capacidade de realizar transacções e outras operações que as mulheres comuns não conseguiam desempenhar.
Ciência desenvolvida. Esta tabuleta, que data da época de Hamurabi, marca o início conhecido da matemática.
Quando Hamurabi assumiu o poder no ano 1792 a.C. teria apenas cerca de 20 anos. Nada se sabe sobre a sua personalidade, além do que se depreende das suas obras. Assim, os seus primeiros cinco anos de reinado não falam apenas da sua moderação ao não se envolver nos confiitos que o rodeavam, mas refiectem também a sua capacidade de planeamento, uma vez que nesse período se dedicou a consolidar o seu poder dentro do seu reino, que organizou dotando-o de um exército e protegendo a cidade cercando-a com uma muralha, usando o rio Eufrates e os seus afiuentes como elementos defensivos naturais. A sua sensibilidade para a ordem viria a manifestar-se com a reorganização da cidade, onde se construíram templos e palácios que dominavam as linhas de ruas estreitas de casas de adobe que formavam a singular retícula da Babilónia.
Do exterior, o novo monarca herdou do pai o seu principal oponente, o rei Rim-Sin de Larsa. Ciente do poder do larso, não o enfrentou directamente, arrebatando-lhe primeiro outras cidades a sul, como Isin e Uruk.
Continuou de seguida, de forma eficaz, para leste e para norte até estender as suas fronteiras, em quatro anos, até aos antigos territórios da Suméria e do Império Acadiano.
Nessa política expansiva Hamurabi nem sempre utilizou a força militar, empregou também a diplomacia quando lhe era conveniente para enfrentar inimigos que considerava superiores e geriu habilmente os tempos, sabendo esperar por um momento de fraqueza do seu adversário para atacar. Por esta razão, durante algum tempo manteve relações de cooperação com Eshnunna e Mari, pois a situação estava tão dividida que não havia um rei que pudesse enfrentar todos os outros, era necessário coligar-se. Neste sentido, escreveria o monarca de Mari: “... dez ou quinze reis seguem Hamurabi da Babilónia; outros tantos, Rim-Sin de Larsa…”. Amparado neste statu quo de diplomacia, Hamurabi interrompeu, durante uma década, as campanhas militares e dedicou-se à consolidação dos seus novos Estados, dotando-os de fortalezas e melhorando, de uma forma geral, as suas condições de vida, através de obras públicas, como canais para reduzir os danos das inundações dos rios e água para as plantações, a fim de melhorarem a sua produtividade, cujas colheitas conduziam à riqueza do Estado. Impulsionou também um modelo de monarquia teocrática, difundindo entre os vários Estados as suas ideias político-religiosas, através de templos e estátuas das divindades do novo panteão babilónico presidido por Marduk.
Senhor da Mesopotâmia
Uma especial aliança de Hamurabi foi a que manteve com Zinrilim de Mari, graças à qual se protegeria do ataque das cidades do Norte. Este apoio permitiu-lhe, após quinze anos de espera desde que iniciara o seu reinado, atacar o rei Rim-Sin no momento em que este tinha perdido as suas principais cidades, e apoderar-se de Larsa (1760 a.C.). Com a derrota do seu principal inimigo, Hamurabi iniciaria uma década de campanhas vitoriosas com as quais expandiu o seu império até ao Mediterrâneo, a noroeste, e até ao golfo Pérsico, ao sul. No entanto, para o seu aliado, o rei de Mari, esta ânsia conquistadora fê-lo temer por si próprio e quebrou a aliança com Hamurabi, que reagiu tomando a sua cidade em 1759 a.C. Talvez fosse uma resposta com alguma carga emotiva pela traição do seu aliado, sobretudo a julgar pela inusitada contundência, com a qual, dois anos depois, respondeu a uma tentativa de rebelião de Mari, a qual destruiu até às suas fundações.
O deus Shamash. O deus mesopotâmico Shamash era o deus da justiça, adoptado como divindade principal do panteão de Hamurabi. Na imagem, tabuleta votiva babilónica dedicada a Shamash. Datada do século IX a.C., está conservada no Museu Arqueológico de Istambul.
Uma vez convertido em Senhor da Mesopotâmia, Hamurabi não pararia até tomar a mítica Assíria e saquear a sempre ameaçadora Eshnunna. Na Lista Real, onde se compilam os principais marcos dos reis da Babilónia, o último feito de Hamurabi data do ano 43 do seu reinado, quando “fixou a muralha de Sippar, a cidade primaveril de Utu, com uma grande quantidade de terra”. É simbólico que a última acção do seu reinado tivesse sido dedicada ao deus do Sol (Utu em sumério, Marduk em babilónio), o escolhido para governar o seu império. Três anos antes da sua morte em 1750 a.C., a Babilónia elevara-se como a capital de toda a Mesopotâmia e Hamurabi autoproclamava-se rei da Suméria e Acádia e rei das Quatro Regiões da Mesopotâmia.
Pilares do império
Depois de mais de quatro décadas de reinado, Hamurabi convertera um pequeno reino da Mesopotâmia num império. Se anteriormente os reis eram apoiados por conselhos de sacerdotes, nobres e militares, agora o rei era a voz do deus Marduk. Esta divindade seria um pilar fundamental para unir os povos de origem multiétnica, mas favoreceriam também esta tarefa de homogeneização cultural a utilização de uma mesma língua, o acadiano, e a existência de apenas um único código legal.
Quando os amorreus chegaram à Mesopotâmia, a língua que se falava era o sumério, mas à medida que se foi declinando a importância política do antigo império, impôs-se o babilónio, uma língua derivada do acadiano que se falaria em toda a região conquistada. Foi neste babilónio clássico que se escreveu o grande legado de Hamurabi: o seu código de leis, que é o mais extenso da Antiguidade e de grande valor para uniformizar, sob as mesmas regras, todos os povos conquistados. Através destas, não só se ordenavam as relações sociais de todos os súbditos, mas, fundamentalmente, regulavam-se as relações económicas, pois ficavam fixados os contratos, os empréstimos, as sociedades comerciais, as penas por fraude e até os contratos de trabalho. Este Direito babilónico penetraria em toda a Ásia Menor através dos comerciantes e, durante séculos, todas as relações contratuais se baseariam nele. Por outro lado, para garantir o cumprimento das leis, Hamurabi modificara o anterior costume, no âmbito do qual eram os templos e os seus sacerdotes que administravam a justiça. Agora era o próprio deus Marduk que a conferia ao rei, convertendo assim as decisões e acções do monarca em desejos dos deuses.
A estela de Hamurabi, encontrada em Susa é uma de várias cópias que o monarca mandou gravar para que fossem distribuídas nas praças das cidades de forma a que ninguém pudesse ignorar a lei. Com os seus símbolos, a mensagem que o monarca babilónio passava para os seus súbditos era clara: as leis são sagradas, pois são ditadas pelo próprio deus Marduk. Actualmente, a estela encontra-se no Museu do Louvre, em Paris.
1 HAMURABI. É considerada a única representação completa de Hamurabi, pois não existe unanimidade em considerar que a estátua sem cabeça encontrada em Susa represente o rei Hamurabi.
2 O DEUS MARDUK. O deus não apoia os pés no chão pois está acima dos humanos. A importância que se deu a esta divindade foi tal que conduziu à alteração da epopeia da criação a seu favor.
3 VARA DA JUSTIÇA. Numa atitude devota, o rei recebe da divindade a vara para medir a justiça que torna as leis sagradas.
4 AS LEIS. O texto, em escrita cuneiforme, enumera 282 leis (embora não estejam todas incluídas); entre elas a célebre “olho por olho”.
Os instrumentos ideológicos com os quais Hamurabi uniu o seu império, viriam a ser, consequentemente, as obras que melhor definem o perfil do soberano da Mesopotâmia, pois ao longo dos séculos foi-lhe atribuída a reputação de protector do povo, de benfeitor que cuida da agricultura e da irrigação dos campos, de um rei justo e, definitivamente, de um príncipe sábio.