No Nordeste de Portugal, em 1991, enquanto arqueólogo encarregado do acompanhamento do projecto da barragem do Baixo Côa, Nelson Rebanda reconheceu a temática e o estilo paleolítico da gravura de cavalo de Mazouco que descobrira dez anos antes, numa rocha ao ar livre situada a centenas de metros do sítio onde deveria ser construído o paredão.
Desde a publicação da gravura de Mazouco em 1981, tinham aparecido em Espanha e no Sudeste da França, imagens gravadas, do mesmo estilo que as encontradas em grutas e abrigos rochosos, atribuídas ao Paleolítico, mas desta vez sobre rochas exposta à luz solar.
Pedro Guimarães
A conjugação no mesmo sítio arqueológico entre arte e vestígios das actividades quotidianas de caçadores-recolectores, encontrada pela primeira vez em 1999 no sítio do Fariseu, replicou-se em 2020, no mesmo meandro, mas uma centena de metros a montante. As escavações realizadas em frente da rocha 9, onde já tinha sido detectado um traço isolado nos anos 2000, revelaram, ocultada por sedimentos, a porção visível do traço picotado, de cerca de 50cm pertencente a uma figura de auroque macho com mais de 3,5 metros. Em 2021, os trabalhos arqueológicos expuseram 10 metros de um imponente painel gravado, na maioria com auroques fêmeas, cavalos, um veado e uma cerva. A descoberta de mais um painel gravado de dezenas de figuras, das quais a maior gravura paleolítica conhecida, só comparável a alguns dos auroques pintados à entrada da gruta de Lascaux, confirma o potencial de preservação de rochas ocultadas por sedimentos nas margens do rio Côa e o carácter monumental de algumas das manifestações gráficas, em gruta como ao ar livre, o princípio do Paleolítico Superior.
A descoberta de mais gravuras no vale do Côa, um afluente da margem esquerda do rio Douro, divulgada na imprensa nacional em Novembro de 1994, mudou a nossa concepção da arte paleolítica, considerada, até então, como uma arte das cavernas e alterou o nosso conhecimento do povoamento paleolítico do Sudoeste Europeu. Mas conseguiria parar uma barragem de 100 metros de altura? Os defensores da construção da barragem propunham deslocar algumas das rochas “mais significativas” e submergir as outras. Utilizaram dois argumentos principais para questionar a cronologia paleolítica das gravuras do Côa.
De um lado, apontaram a ausência de sítios atribuíveis ao Paleolítico Superior (40.000-12.000 anos) no vale do Côa e, em geral, no interior da Península Ibérica. Por outro, alimentaram críticas semelhantes às que já tinham sido formuladas na década de 1990 após a publicação das datações de 36.000 anos obtidas para os carvões utilizados nas pinturas da gruta Chauvet. Essas datações contrariavam a classificação estilística de referência de Leroi-Gourhan, fundamentada na comparação da morfologia e de convenções estilísticas com pinturas datadas por radiocarbono (quando é utilizado carvão) ou placas de osso ou pedras gravadas encontradas em níveis datados.
Pedro Guimarães
Os artistas do Côa representaram os animais seus contemporâneos que viviam num clima mais frio do que o actual. As gravuras estão na superfície de afloramentos ao ar livre nas margens do rio. Os animais mais representados são o cavalo e o auroque, o antepassado dos nossos bovinos domésticos (ver pg. 64-65, com a rocha 9 do Fariseu) seguidos, em efectivos, da cabra-montês e de cervídeos como o veado e a cerva. As técnicas utilizadas são variáveis, desde a incisão fina, até ao traço fundo, obtido martelando a rocha com um utensílio de pedra, do tipo que foi encontrado num sítio ocupado há 30 mil anos. Com ele, criava-se um traço claro em contraste com a rocha escura. As escavações no sítio do Fariseu mostraram que as figuras sobrepostas, quando ocultadas por sedimentos datados de mais de 12 mil anos, apresentam o mesmo contraste, resultado de uma composição e não de uma acumulação de figuras ao longo do tempo.
Em 1995, a EDP mandou datar pequenos fragmentos de matéria-orgânica conservados na superfície de algumas rochas gravadas. Como era de prever, no dia 7 de Julho, um semanário publicou em primeira página o título “A fraude”, alegando que todos os resultados obtidos seriam do Holocénico. A opinião pública vacilou, mas o arqueólogo João Zilhão demonstrou que se tinham datado matérias orgânicas depositadas posteriormente nas rochas que não indicavam o momento da gravação.
Em Agosto de 1995, as prospecções arqueológicas realizadas sob sua responsabilidade detectaram a presença de pequenos fragmentos de pedra lascada na superfície de um terreno lavrado no sítio da Cardina – Salto do Boi, cerca de três quilómetros a montante das gravuras da Penascosa/Quinta da Barca. Estes “modestos” objectos testemunharam o primeiro de dezenas de acampamentos descobertos até a data, rebatendo decisivamente o primeiro argumento dos detractores.
No início de 1996, o governo português, convencido pelos argumentos dos arqueólogos, decidiu abandonar a construção da barragem, solicitou um relatório de cariz científico e foi criado um Parque de cerca de 200 quilómetros quadrados para estudar, proteger e mostrar ao público o mais importante complexo de arte rupestre paleolítica ao ar livre conhecido no mundo.
Em 1998, foi incluído na lista de Património Mundial pela UNESCO, concluindo o processo de aprovação mais rápido de sempre. Em 2010, o território classificado alargou-se ao sítio de Siega Verde, do outro lado da fronteira espanhola, nas margens do rio Águeda.
Paradoxalmente, a descoberta fundamental para confirmar a atribuição estilística e a antiguidade da arte ao ar livre aconteceu um ano depois da classificação do vale do Côa pela UNESCO. O momento ocorreu no Fariseu, um vasto meandro da margem esquerda do rio Côa. A existência de rochas gravadas era conhecida neste lugar deste 1995, mas algumas foram submersas em 1983 pela albufeira da barragem do Pocinho.
Siega Verde, jazida descoberta por Manuel Santonja em 1988, pertence ao primeiro grupo de sítios de arte paleolítica de ar livre descobertos entre 1981 e 1991. Esta concentração de 91 rochas gravadas, onde as figuras de cavalo são maioritárias, foi integrada na lista do Património Mundial da UNESCO, como uma extensão da arte do Côa em 2010.
Novas prospecções desenvolvidas entre o Côa e Siega Verde por Mário Reis e Carlos Vázquez Marcos revelaram a existência de concentrações de gravuras num pequeno afluente do rio Águeda e, mais recentemente, prospecções à superfície dos terrenos, realizadas sob a direcção de Miguel Almeida, entre o Baixo Côa e Siega Verde, expõem uma concentração de vestígios de pedra lascada característicos do Paleolítico Superior, bem como fragmentos de arte móvel. O vazio que existia entre os dois sítios de arte rupestre traduz cada vez mais a ausência de trabalhos sistemáticos de prospecção arqueológica.
No fim de 1999, um abaixamento temporário do seu nível permitiu a escavação das camadas arqueológicas que ocultavam o painel n.º 1, evidenciando um grande painel intensamente ornamentado. Sob os sedimentos mais antigos, foi possível constatar a frescura dos traços, de cor clara, destacando-se da tonalidade cinzento-escura do fundo do painel e a profusão de figuras sobrepostas.
As 84 figuras de animais sobrepostas e justapostas, obtidas por picotagem e abrasão, são maioritariamente fêmeas de auroques, cavalos, machos de cabra-montês, veados, cervas, auroques machos e camurças.
Confirmação da antiguidade
As datas obtidas, entre 12.000 e 18.400 anos para as camadas que tapavam a rocha gravada e uma data de cerca de 23.000 anos obtida pelo carbono 14, a partir de um carvão vegetal encontrado na escavação, bem como os vestígios arqueológicos descobertos nos níveis que ocultavam a superfície gravada do painel constituíram, pela primeira vez em sítios de arte paleolítica ao ar livre, uma confirmação da atribuição estilística e, por comparação, das outras gravuras atribuídas ao início do ciclo artístico do Côa.
Pedro Guimarães
Além da sobreposição, que pode ser considerada uma técnica que acrescenta a terceira dimensão às diáclases (superfícies planas que constituem os suportes da área da bacia do Douro no seu tramo português), a arte paleolítica do vale do Côa integra uma dimensão narrativa pela representação de animais com corpo em atitude dinâmica, ou em movimento. Graças à representação duplicada ou triplicada da cabeça ou do corpo do animal, obtém-se uma sensação de movimento. Esta solução está presente desde a fase mais antiga até ao fim do Paleolítico Superior. Esta representação de um bode com duas cabeças da rocha 3 de Quinta da Barca, tem paralelos estilísticos com a arte móvel do Norte de Espanha e Sul de França, em níveis datados de há cerca de 15.000 anos.
Um dos sítios classificados como Monumento Nacional em 1997 revelou-se crucial para o conhecimento da arte do Côa e da vida quotidiana dos seus autores. Das escavações realizadas a partir de 2014 no sítio da Cardina-Salto do Boi, resultou a identificação de elementos que revelam a vida quotidiana dos caçadores, a existência de fundos de grandes cabanas circulares que sugerem períodos de permanência mais longos neste sítio e, pela primeira vez na região, de vestígios que atestam ocupações anteriores ao Paleolítico Superior.
Numa sequência de cinco metros de espessura de sedimentos, encontraram-se também vestígios de ocupações atribuíveis ao Homo neanderthalensis, com datações entre 150.000 e 39.000 anos que indicam a sua persistência nesta região mais tardia do que noutras áreas do Norte da Península Ibérica e, correlativamente, uma chegada diferida, há cerca de 34.000 anos, dos primeiros homens anatomicamente modernos na região.
Os trabalhos em curso podem trazer novos dados sobre esta hipótese e uma eventual coexistência com os primeiros homens modernos. Poderá também ser possível averiguar se os primeiros produziram igualmente imagens sobre as rochas ou suportes móveis para deixarem a sua marca no vale do Côa. Ao longo dos últimos 26 anos, os estudos da arte ao ar livre do Côa, das regiões adjacentes e do seu contexto revelaram uma concentração única de sítios que confirma a continuidade da ocupação humana e a produção de imagens distribuídas pelos seus territórios ao longo de dezenas de milhares de anos, de há 30.000 anos até ao século passado.
Pedro Guimarães
A rocha n.º 1 da Quinta da Barca, é também chamada a rocha do esparguete. Apesar de estar hoje fragmentada, os quatro painéis conservados constituem a mais densa sobreposição de gravuras picotadas conhecida no vale do Côa. Nesta porção, são representadas 35 das 64 figuras da totalidade do painel, todas de grandes herbívoros da fase antiga da arte do Côa, à excepção da camurça que só existe na rocha 1 do Fariseu e de uma figura que foi interpretada como um urso. A concentração de grafismos no mesmo espaço dificulta o reconhecimento de cada figura. A sua localização na margem oposta à Penascosa, junto do rio e na base de uma linha temporária de água, revela o seu papel fundamental na estruturação espacial e possível interpretação da arte ao ar livre. A comparação das convenções estilísticas das figuras deste painel e a descoberta das rochas 1 e 9 do Fariseu ocultadas por sedimentos, onde as linhas sobrepostas preservam o contraste do traço picotado fresco, sugerem que as sobreposições da fase antiga da arte do Côa resultam de uma composição definida desde a realização das primeiras figuras.
Trocas culturais com materiais distantes
Novas prospecções e o estudo da origem das rochas utilizadas para o fabrico das ferramentas de pedra lascada mostram que, no vale do Côa, as mesmas variedades de sílex, provenientes da bacia do Douro e do Tejo, do Centro de Portugal, foram trazidas, entre 34.000 e 11.700 anos, em proporções reduzidas, mas sistematicamente, associadas a uma maioria de matérias-primas locais (quartzo, quartzito, cristal de rocha, liditos…).
Esta presença, em pequena proporção, mas sistemática, de rochas provenientes da região, e de outras situadas a mais de 200 quilómetros, implica a existência de contactos e de trocas recorrentes entre o grupo humano que vivia no Côa e sua região com grupos humanos de zonas geográficas distantes, circunstância que abre possibilidades apaixonantes sobre trocas culturais.
A integração numa rede social ainda mais vasta é identificável pela utilização das mesmas convenções estilísticas utilizadas na arte paleolítica nas grutas já conhecidas da região franco-cantábrica. As características do vale do Côa, numa área geográfica de transição, de grande biodiversidade, situada no epicentro de uma vasta rede de mobilidade revelada pelas rochas utilizadas, pode explicar o seu lugar central, no cruzamento dos caminhos que ligavam grupos paleolíticos e talvez venha a fornecer uma explicação para a densidade e continuidade do seu ciclo de arte rupestre.