À medida que a ciência forense descarta as evidências dentárias como prova científica de um crime (pela insuficiência de rigor dos registos das dentadas), outras ciências aproveitam os dentes para encontrar novas vias de investigação. No estudo da pré-história, trabalha-se sobretudo com o que resta após milénios de ocupação. E, com frequência, o que resta de um indivíduo que ocupou um abrigo pode ser apenas um dente, disperso no subsolo de uma gruta.

Na Primavera de 2023, um dos mais elegantes estudos recentes usou o esmalte dos dentes para aferir os movimentos de subsistência de duas épocas bastantes afastadas. O cenário foi o sistema cársico do rio Almonda, próximo de Torres Novas, onde existe um cocktail quase perfeito de ocupações preservadas nas galerias e grutas desobstruídas.

O sistema cársico é como um queijo suíço, repleto de cavidades e túneis, muitos dos quais ainda não identificados, pois as entradas da maioria dos abrigos colapsaram há muito. Em 1920, um deslizamento de terras permitiu antever aquela que se tornou conhecida como a Galeria da Cisterna. Nas sete décadas que se seguiram, esse foi o único acesso conhecido ao sistema subterrâneo, funcionando como uma cápsula do tempo, que congelou os vestígios.

Em 1989, por fim, foi descoberta a Gruta da Oliveira e várias outras se seguiram. Desde então, o sistema tem sido um maná de descobertas para o conhecimento da pré-história na costa atlântica portuguesa.

O sistema cársico é como um queijo suíço, repleto de cavidades e túneis, muitos dos quais ainda não identificados, pois as entradas da maioria dos abrigos colapsaram há muito.

A ajuda da geoquímica

Bethan Linscott é uma arqueóloga geoquímica, especializada na aplicação de novas técnicas isotópicas e radiométricas a material arqueológico na Unidade de Datação pelo Radiocarbono com Acelerador da Universidade de Oxford. Em 2014, no âmbito da sua tese de doutoramento pela Universidade de Southampton, foi desafiada pelo seu orientador, Alistair Pike, e por João Zilhão, da Universidade de Lisboa, a reexaminar materiais dentários de duas cavidades distintas do sistema do Almonda: na Gruta da Oliveira, posicionada cerca de 40 metros acima da nascente do rio, Zilhão descobrira uma sequência com seis metros de espessura correspondente ao Paleolítico Médio com nove elementos esqueléticos de neandertais. Dois dos dentes desse acervo correspondem a indivíduos diferentes, que viveram há cerca de 93 mil anos. A gruta já foi documentada como um espaço que serviu para habitação, processamento e consumo de fauna caçada nas imediações – entre os animais predados, estavam rinocerontes, cavalos, veados, cabras e tartarugas.

Cerca de 35 metros abaixo da Gruta da Oliveira, existe a Galeria da Cisterna, uma cavidade com cerca de 100 metros de extensão que conserva alguns vestígios da última Idade Glaciar. Ali, há cerca de 13-14 mil anos, humanos modernos viveram durante o chamado Magdalenense, incluindo uma criança e um jovem adulto. A fauna encontrada em associação com essa ocupação incluía veados, cabras,  javalis, coelhos e lebres. Mas poderiam estes dentes dizer algo mais?

Galerias interiores do sistema cársico do Almonda.
PEDRO SOUTO

Galerias interiores do sistema cársico do Almonda.

Cápsula do tempo

Num artigo publicado este ano na revista PNAS, Bethan Linscott, João Zilhão, Alistair Pike, Diego Angelucci, Matthew Cooper, James Milton e Henrique Matias desafiaram as convenções e estudaram toda a informação dos dentes do Almonda. No passado, a análise arqueológica dos isótopos de estrôncio servira sobretudo para aferir se determinado indivíduo vivera, ou não, na região onde o seu esqueleto fora encontrado. O método agora aplicado inclui medidas feitas por espectrometria de massa com plasma indutivamente acoplado com multicolector de ablação a laser ao longo do eixo de crescimento do esmalte dos dentes. O método parte do princípio de que, durante a mineralização dos dentes ocorrida após a morte, o seu teor de estrôncio não sofre alteração, pelo que guarda informação sobre o teor de estrôncio dos alimentos e água consumidos durante a formação desses tecidos. “Os isótopos de estrôncio nos dentes reflectirão a média ponderada de estrôncio dos componentes da dieta”, escrevem os autores no artigo.

O método agora aplicado inclui medidas feitas por espectrometria de massa com plasma indutivamente acoplado com multicolector de ablação a laser ao longo do eixo de crescimento do esmalte dos dentes.

Por outras palavras, o esmalte dos dentes constitui uma cápsula do tempo que fornece informação sobre os territórios por onde as pessoas e os animais se movimentaram, o que comeram, o que beberam e que períodos de carência atravessaram durante a infância, período durante o qual o esmalte se forma e já não é substituído. 

sistema cársico do rio Almonda

O sistema cársico do rio Almonda é constituído por 12 quilómetros de galerias cartografadas desde a década de 1970. Muitas das entradas para as grutas colapsaram desde a pré-história, forçando arqueólogos e espeleólogos a encontrar outros acessos. Com frequência, as escavações requerem a desobstrução ou explosão de rocha brechificada para aceder às galerias ocupadas pelos nossos antepassados. A curta distância entre si, encontram-se a Gruta da Aroeira (4), onde em 2014 foi encontrado o mais antigo crânio humano de um hominídeo em Portugal, a Gruta da Oliveira (3) , com ocupações do Paleolítico Médio, a Galeria da Cisterna (2) com sedimentos da última Idade Glaciar e a Lapa dos Coelhos (1), com ocupação magdalenense.

O projecto poderia parecer uma aventura técnica mais ou menos extravagante, mas produziu resultados sensacionais. Permitiu comprovar que os dois indivíduos neandertais estudados circulavam de forma regular entre áreas de geologia diferentes, situadas entre o Maciço Central e o rio Tejo – de acordo com o artigo agora publicado, ocuparam um território de subsistência de cerca de seiscentos quilómetros quadrados, exemplificativos de um comportamento de recolecção que incluía visitas frequentes à nascente do Almonda e arredores. Era esse o modo de vida no Paleolítico Médio.

Em contrapartida, o indivíduo que viria a morrer na Galeria da Cisterna revelou um território de subsistência mais restrito, de cerca de trezentos quilómetros quadrados, com movimentos provavelmente sazonais ao longo da margem direita do vale do rio. Isto parece significar que, num quadro de condições climáticas igualmente frias, a densidade das populações humanas do final da Idade do Gelo era superior à que se verificava entre os neandertais do Paleolítico Médio. Esta é a primeira aplicação do estudo dos isótopos de estrôncio no esmalte dentário de humanos e animais de épocas tão remotas, mas outras possibilidades técnicas estão em aberto à medida que a resolução espacial do método vá melhorando com os avanços tecnológicos. Quem sabe se também os isótopos de oxigénio  do esmalte poderão fornecer informação adicional sobre dinâmicas da pré-história?

Quando escreveu Dom Quixote, Miguel de Cervantes colocou na boca da sua personagem a frase “todos os dentes da boca de um homem são mais valiosos do que um diamante". Nessa altura, o autor espanhol não estaria certamente a pensar em aplicações geoquímicas para apurar os movimentos dos nossos antepassados, mas os dentes de indivíduos que viveram há cerca de 93 mil anos acabaram por revelar muito mais do que se poderia imaginar…

Artigo publicado originalmente na edição nº13 da revista National Geographic História.