Königsberg (actual Kaliningrado, Rússia), capital da Prússia Oriental cerca de 1945, numa fotografia colorida artificialmente.
Em traços simples, o teorema de Gödel demonstra que, se se utilizarem métodos de raciocínio seguros e fiáveis (ou métodos à prova de erro), será inevitável a existência de problemas matemáticos que nunca poderão ser resolvidos. Haverá sempre problemas matemáticos cuja solução estará fora do alcance desses métodos.
Antes de Gödel expor o seu teorema pela primeira vez, os matemáticos tinham uma confiança ilimitada na capacidade de, com tempo, paciência e esforço suficientes, poderem resolver todos os problemas. Uma famosa lista de 23 problemas, por exemplo, fora apresentada pelo matemático alemão David Hilbert na conferência inaugural do Segundo Congresso Internacional de Matemática, realizado em Paris em 1900. Na sua muito memorável e estudada palestra, Hilbert vaticinou que os seus 23 problemas conduziriam grande parte da investigação matemática durante o século XX.
David Hilbert, o matemático que expressando a convicção de que não existem problemas matemáticos irresolúveis deixou para a história a frase "Devemos saber, saberemos". Fotografia Arquivo RBA.
Os problemas de Hilbert eram obviamente difíceis e muitos deles só seriam resolvidos décadas depois. O décimo problema, por exemplo, teve uma resposta em 1970 (traduzido para linguagem moderna, esse problema procurava determinar se certo tipo de equações, as “diofânticas”, podem ser sempre resolvidas por um computador). O oitavo problema, por outro lado, conhecido como a “hipótese de Riemann”, ainda não foi sequer resolvido. No entanto, nem Hilbert, nem nenhum dos seus colegas naquele ano de 1900 duvidava que, mais tarde ou mais cedo, haveria solução para todos os problemas.
Avancemos até 1930. Tornara-se evidente que Hilbert vencera. Faltava apenas criar o cenário adequado para que os intuicionistas apresentassem a sua rendição de forma digna. Organizou-se então um congresso sobre os fundamentos da matemática. O local eleito foi Königsberg, a cidade natal de Hilbert (uma escolha que, naturalmente, não foi casual).
Gödel em Viena, na segunda metade da década de 1920, época em que demonstrou o seu primeiro teorema da incompletude. Fotografia Arquivo RBA.
O congresso decorreu entre sexta-feira, dia 5, e domingo, dia 7, de Setembro. Na segunda-feira, dia 8, estava previsto que o Parlamento de Königsberg concedesse a Hilbert o título de cidadão honorário. Estava tudo preparado para o grande triunfo do mestre.
Na sexta-feira, os matemáticos menores, os desconhecidos, expuseram os seus trabalhos. Um deles, Kurt Gödel, resumiu a sua tese de doutoramento. No sábado, expuseram os mais credenciados, entre os quais Hans Hahn, que orientou a tese de doutoramento de Gödel. Antagonista de Hilbert por motivos que iam além da mera discussão académica, Brouwer não estava presente. O orador do ponto de vista intuicionista foi Arendt Heyting. Hilbert, que sofria de problemas de saúde, também não compareceu e o seu principal representante foi John von Neumann, um dos seus discípulos. O logicismo também estava representado, na pessoa do filósofo Rudolf Carnap.
“Tenho uma boa notícia e uma má notícia. A boa é que os intuicionistas se renderam. A má é que um tal Gödel diz que nós também perdemos.”
O domingo encerrou-se com uma sessão plenária na qual foram resumidos os pontos de vista do intuicionismo, do formalismo e do logicismo. As conclusões estiveram a cargo de Heyting, que terminou a sua exposição dizendo que a relação entre o intuicionismo e o formalismo tinha sido finalmente esclarecida e que a continuação da luta entre ambas as escolas já não era necessária. Nas suas próprias palavras: “Se completarem o programa de Hilbert, até os intuicionistas abraçarão o infinito.” Os intuicionistas tinham-se rendido. Hilbert triunfara.
Contam todos os testemunhos que, nesse preciso momento, um jovem matemático levantou timidamente a mão para pedir a palavra. Era magro, usava óculos e provavelmente estaria muito nervoso. Esse jovem, Kurt Gödel, anunciou aos seus pares consagrados que tinha demonstrado um teorema que provava que caso se exigisse que as demonstrações fossem verificáveis mecanicamente, então era impossível fornecer axiomas para a aritmética que permitissem demonstrar todas as verdades da teoria. Haveria sempre afirmações verdadeiras que eram indemonstráveis a partir dos axiomas propostos. Actualmente, esta afirmação é conhecida como o primeiro teorema da incompletude de Gödel.
Podemos imaginar uma cena que nunca aconteceu, mas que provavelmente reflecte o espírito dos formalistas naquela tarde de domingo. Imaginemos Hilbert comunicando com John von Neumann para lhe perguntar como tinha corrido a sessão e a resposta deste: “Tenho uma boa notícia e uma má notícia. A boa é que os intuicionistas se renderam. A má é que um tal Gödel diz que nós também perdemos.”
Descubra mais sobre Kurt Gödel na Edição Especial de Ciência que lhe dedicamos este mês.