Ao contrário do que se poderia pensar, as águas do Atlântico setentrional eram bastante frequentadas na segunda metade do século XV. Ingleses, italianos e dinamarqueses conheciam bem os mares do Norte, desvendados pelos vikings em tempos ainda mais remotos. O grande oceano também já não guardava segredos para os navegadores portugueses, que há muito percorriam a costa de África e o mar atribulado dos Açores. O grande debate – ainda sem conclusão – é identificar o território e as rotas que cada reino já conhecia antes da oficialização do conhecimento e da atribuição de mérito aos “descobridores oficiais”.
Depois da descoberta dos Açores (cuja existência era, aliás, bem conhecida dos nossos marinheiros, ao que tudo indica), por Diogo de Silves, em 1427, não havia razão para crer que não houvesse terra firme mais para ocidente. Afinal, a Ásia não ficava a apenas a algumas milhas para oeste? De facto, muito antes de Colombo ter pisado terras americanas, em 1498, outros navegantes aventuraram-se mais a norte, procurando o tão desejado caminho marítimo para o Oriente. O próprio Colombo fez viagens anteriores, animado pelos relatos de pilotos portugueses, habituados aos ventos e às correntes do Atlântico.
A Pedra de Dighton, realidade e fantasia. Uma farsa ou um documento epigráfico notável? Há mais de um século e meio que os historiadores discutem se este bloco rochoso com inscrições conta de facto a descoberta da Terra Nova.
Em 1680, um colono inglês reproduziu pela primeira vez os petróglifos inscritos numa rocha encontrada no leito de um rio. Não há qualquer dúvida de que foram produzidos por mão humana e que já existem há pelo menos quatro séculos, mas quem os produziu? A historiografia norte-americana sugeriu a tese de que seriam inscrições deixadas por vikings nas suas viagens atlânticas. Em 1912, Edmundo Delabarre sugeriu pela primeira vez que a rocha continha uma referência a Miguel Corte Real, navegador que partira em busca do paradeiro do irmão Gaspar, desaparecido na terceira viagem rumo à Terra Nova. A tese foi bem recebida em Lisboa, como suposta confirmação da tese há muito proposta de que a navegação portuguesa atingira igualmente este território agora incorporado no Canadá. Com o tempo, outras hipóteses foram surgindo e a mais consensual sugere que as inscrições foram produzidas por comunidades indígenas na linha do muito que se conhece hoje sobre inscrições e petróglifos da América do Norte. Na imagem, daguerreótipo de 1853 do artista Seth Eastman, posando em cima da Pedra de Dighton.
Cerca de 1471, João Vaz, nobre açoriano, pai de Gaspar e de Miguel Corte Real, terá embarcado numa viagem de exploração aos mares do Noroeste, integrado numa expedição dinamarquesa. Ao que parece, terá atingido a costa da Gronelândia e avistado a Terra Nova, em cujas águas abundava já aquele que tornaria o nosso prato mais tradicional – o bacalhau.
Em 1497, John Cabbot, piloto italiano ao serviço de Inglaterra, parte de Bristol e ruma a Oeste em busca da costa de Catai. Terá também avistado terras da América do Norte; entre 1495 e 1497, João Fernandes Lavrador, navegador açoriano, e Pedro de Barcelos, chegaram à costa do Canadá. Das suas viagens pouco se sabe para além do relato dos cronistas e de antigas tradições orais. Na grande aventura dos Descobrimentos, alguns nomes não alcançaram a fama de outros, mas a sua audácia possibilitou novas e mais arrojadas descobertas.
Terra Nova ou Terra Velha?
Crê-se que Gaspar Corte Real, o filho mais novo de João Vaz e seu braço direito na capitania de Angra, terá atingido a costa da Florida numa viagem de exploração cerca de 1499. Os navios terão percorrido a rota do Sul pelo conhecido mar dos Sargaços, aproveitando os ventos favoráveis de leste e navegando durante cerca de um mês até àquela península. Dali, seguiram a costa leste dos actuais Estados Unidos na esperança de atingir uma terra que sabiam existir a oeste dos Açores, provavelmente a mesma onde João Vaz passara anos antes. Chegados ao cabo Breton, avistaram por fim a Terra Nova (Newfoundland) rumando em seguida para o cabo Raso (o actual Cape Race), o porto de São João (hoje Saint John), e a baía da Conceição (Conception bay). Regressaram vivos aos Açores para contar a história.
A Terra Nova. Parece inquestionável que Gaspar Corte Real chegou efectivamente a este território inóspito da América do Norte. A costa gelada e a presença de algumas comunidades indígenas não esmoreceu a curiosidade portuguesa e Corte Real voltaria a viajar para aqui.
A prova mais elucidativa desta provável viagem é a carta de doação de D. Manuel I a Gaspar Corte Real, datada de 1500, de “quaes quer ilhas ou terra firme que asy novamente achar e descobrir”. “Novamente”, porque em “dias passados”, o fidalgo “trabalhou per si e a sua custa, com navyos e homes, de buscar e descobrir e achar com muito seu trabalho e despesa de sua fazemda e peryguo de sua pessoa, algumas ilhas e terra firme, e pelo comsyguynte o quer ainda agora comthenuar”.
Gaspar preparava-se para voltar a partir e “comthenuar” as suas expedições. Obviamente, achar e descobrir não significavam o mesmo, e as terras avistadas, ou mesmo tocadas, em viagens anteriores deveriam agora ser alvo de uma averiguação mais cuidada. Abundavam espiões em todas as cortes e o relativo menosprezo das descobertas portuguesas no século XV dava agora lugar a um inusitado interesse por todas as campanhas e relatos trazidos por navegadores depois das árduas viagens atlânticas.
Nesta segunda viagem, Gaspar Corte Real procurou chegar à Terra Nova através do caminho mais curto do Norte. Partindo de Lisboa ou da ilha Terceira na Primavera de 1500, passou na Gronelândia, que julgou ser a ponta de Ásia, seguiu para sudoeste entrando no golfo de São Lourenço, e continuou pela costa em direcção a sul até à ilha Breton, rumando então de volta a Cape Race e ao porto de São João. Ignorava ainda que, algumas latitudes mais a sul, Pedro Álvares Cabral acabava de pisar terras de Vera Cruz, numa espantosa coincidência de triunfos da navegação portuguesa. Feliz com a sua descoberta, Gaspar Corte Real regressou, são e salvo, em finais de 1500.
A terceira expedição de Gaspar Corte Real partiu de Lisboa em Maio de 1501, levando três naus e mantimentos para três meses. Conhecida a localização da Terra Nova, preparava-se agora para ali estabelecer uma ligação comercial duradoura. Terá feito o caminho do Sul, atingindo mais uma vez a costa da Florida onde os castelhanos ainda não tinham desembarcado, percorrendo depois a costa leste da América do Norte até à Terra Nova. Dali, Gaspar despachou duas caravelas de volta a Lisboa, onde chegaram em Outubro desse ano, levando a bordo alguns índios e esquimós.
Destes factos chegam-nos as descrições de dois italianos, Alberto Cantino, comerciante ao serviço do duque de Ferrara, e Pietro Pasquaglio, representante diplomático da Signoria de Veneza junto de Dom Manuel I, que assistiram, em Lisboa, à chegada das duas caravelas.
Junto com uma carta endereçada ao duque, Cantino enviou um mapa precioso que resume a extensão dos descobrimentos dos portugueses na época e atribui a Gaspar Corte Real a descoberta da Terra Nova. A linha de Tordesilhas encontra-se convenientemente desenhada mais para oeste da sua verdadeira posição, incluindo assim aquela ilha na parte destinada à coroa portuguesa, segundo o tratado de 1494.
O Atlas de Cantino. É um dos documentos mais extraordinários do Renascimento e o Museu da Espionagem em Berlim chega a apresentá-lo como exemplo de um documento de valor incalculável obtido através de meios de vigilância de reinos alheios. Identifica várias descobertas ainda não oficiais.
De Gaspar, porém, nunca mais houve notícias. No ano seguinte, Miguel Corte Real partiu à procura do irmão, mas também não regressou. Conta-se (mas sem qualquer suporte documental) que foi chefe de uma tribo de índios da América do Norte, uma hipótese sugerida pelas inscrições encontradas na famosa pedra de Dighton. O Novo Mundo abria-se por fim à Europa, mas era apenas um vislumbre do imenso continente americano. Passariam ainda longos séculos de explorações até ser inteiramente conhecido. A história da descoberta da costa atlântica da América do Norte é uma narrativa de muitos heróis, cada um jogando o seu papel fundamental na conquista do planeta, procurando ir sempre um pouco mais longe.