Tirando partido da abrangência do território controlado pela coroa portuguesa, foi dos primeiros naturalistas a trazer para a Europa informação sobre plantas medicinais exóticas.

Numa época em que dizer uma simples verdade podia custar a vida, o espírito crítico e independente de Garcia de Orta coloca-o entre os pioneiros da botânica médica e da ciência moderna. A história começa no Estado Português da Índia, mais precisamente em Goa.

É na natureza que colhemos, há largos séculos, medicamentos para os mais diversos males. Aos chás, mezinhas e emplastros de folhas, sucederam-se as pílulas e injecções, mas o princípio é sempre o mesmo: durante muitos séculos, o poder curativo de certas plantas teve repercussões na saúde humana. A medicina tradicional, velha como o próprio homem, nasceu da nossa interacção com o ambiente, e ainda hoje muitos dos medicamentos que utilizamos contêm ingredientes de origem vegetal.

Na longa marcha da evolução da medicina botânica, encontramos Garcia de Orta, médico português na Goa renascentista, cujo contributo para a divulgação das plantas do Oriente e a sua utilização medicinal constitui um pilar fundamental do edifício científico.

garcia da orta

Rua Nova dos Mercadores. Em 2009, na colecção Kelmscott Manor, as investigadoras Annemarie Jordan Gschwend e Kate Lowe identificaram o cenário de um quadro como a Rua Nova dos Mercadores na Lisboa do século XVI, uma artéria destruída pelo terramoto de 1755. Neste raro portal para o século XVI, aprecia-se o cosmopolitismo da Lisboa que Garcia de Orta terá conhecido.

Em 1534, Garcia de Orta embarca para a Índia como “physico” do seu grande amigo e protector Martim Afonso de Sousa (a quem dedicaria, mais tarde, o seu Colóquio dos Simples). Orta instala-se em Goa, então capital do fiorescente Estado Português da Índia, onde vive e pratica medicina durante cerca de 30 anos, até à sua morte, por volta de 1568. Durante esse tempo, recolheu, estudou e descreveu as plantas da Índia e as suas aplicações, divulgando espécies novas e rectificando muitas falsidades acerca de outras já conhecidas.

Em 1563, saem do prelo as páginas de Colóquio dos Simples. Trata-se de um vasto repositório de informações, redigido em forma de diálogos com um Dr. Ruano, seu antigo colega nas universidades de Salamanca e Alcalá de Henares. Garcia de Orta foi o primeiro europeu a descrever em grande pormenor as plantas e remédios da Índia, em 58 colóquios organizados por ordem alfabética. Na Europa, existiam outras informações dispersas sobre a fiora das regiões exploradas, mas nenhuma com o rigor científico e o método do Doutor Garcia de Orta.

Plantas medicinais

Para cada planta, Orta indica os vários nomes por que é conhecida, a sua proveniência, as rotas comerciais até chegar a Goa, descrevendo de seguida a morfologia da planta e as suas utilizações. As descrições são de tal forma precisas que permitem, ainda hoje, identificar claramente a planta de que fala, mantendo-se actuais muitas das suas indicações terapêuticas.

Algumas espécies referidas no Colóquio eram completamente novas, outras eram mal conhecidas. Orta é um dos primeiros autores a ocupar-se do coqueiro, já com grande importância económica na época; fala das especiarias, em cujo comércio se baseava o Império Português, como a canela, a pimenta, o cravo-da-índia ou o gengibre; relata produtos utilizados em vários medicamentos, como espécies de aloés, uma planta célebre desde tempos remotos pelas suas propriedades medicinais.

goa

Goa no século XVI: início de uma longa história. Durante a vida de Garcia de Orta, a cidade de Goa ganhou impulso e tornou-se o rosto do Estado Português da Índia. Mas logo em 1509 os primeiros conflitos com os turcos indiciaram a agitação que a presença por- tuguesa desencadeara. Fundado em 1505, seis anos após o anúncio em Lisboa da viagem bem-sucedida de Vasco da Gama, o Estado Português da Índia era uma construção frágil, sujeita aos humores dos poderes asiáticos que as caravelas portuguesas desafiavam. Foi assim decidido fortificar vários postos para se tor- narem feitorias, mas também fortalezas de resistência às investidas inimigas. Goa foi uma peça decisiva nessa estratégia e a cidade cresceu explosivamente. Em 1509, teria esta configuração, embora não seja improvável que a gravura, publicada cerca de um sé- culo depois, exagerasse fortemente a dimensão das fortalezas portuguesas. Capital do exotismo oriental, Goa funcionou como íman para os homens da ciência, como Garcia de Orta, que encontravam neste porto de entrada noutras civilizações uma oportunidade de troca de conhecimento e de aprendizagem com civili- zações tão antigas como as europeias. Garcia de Orta viria a morrer precisamente em Goa.

Orta nota igualmente os seus efeitos gástricos e purgativos, a sua acção como agente do fiuxo sanguíneo, e o seu uso externo, que ainda hoje se faz, em doenças de pele; é também o primeiro a descrever com precisão o benjoim, uma resina perfumada com diversas aplicações e acerca da qual pouco se sabia, mas que ainda hoje se utilizam substâncias dela derivadas.

Entre as “prantas novas” divulgadas por Garcia de Orta contam-se a árvore-triste (Nyctanthes arbortristis) o negundo (Vitex negundo), uma árvore indiana cuja cozedura era usada em “cousas de dor” (reumatismo, contusões, feridas), o pau de cobra (Rauwolfia serpentina), “mezinha muito apropriada à peçonha das serpentes”, os brindões (fruto da Garcinia indica), também conhecidos por maçãs-da-índia, e o nimbo (Melia azadirachta), a que nós chamamos amargosa ou conteira, uma planta da família das meliáceas com grande reputação desde tempos remotos.

Um dos maiores contributos do médico e botânico português foi a capacidade de desfazer os erros persistentes na insípida farmacopeia europeia do seu século. No início do colóquio sobre o cardamomo, afirma: “Grande meada temos pera desempeçar, e grandes nós pera desatar”, referindo-se à confusão de informações que circulavam sobre as diversas plantas; conheciam-se as especiarias, mas não as plantas de que provinham, pois a sua identificação dependia de conhecimentos baseados em relatos de marujos e comerciantes.

Àquilo que lia nos textos, Orta contrapunha o que via e o que ele via era, por exemplo, que a pimenteira não é uma árvore, como afirmavam os “doutos”, antes uma trepadeira. Em muitos aspectos, Garcia de Orta aplica à botânica alguns princípios do método científico, como a necessidade de observação directa dos fenómenos a estudar.

Numa época em que dizer a verdade podia levar à fogueira da Inquisição, Orta não se coíbe de emendar as mais altas autoridades em matéria médica, atitude considerada impensável. Ficou célebre a sua frase: “Não me ponhais medo com Dioscorides, nem Galeno, porque não ey de dizer senão a verdade e o que sey.” E o que ele dizia eram “verdades ditas sem cores rhetoricas, porque a verdade se pinta nua.” Talvez por isso as instituições dogmáticas não lhe perdoaram. Porém, caso Garcia de Orta tivesse vivido um pouco mais, quando a Inquisição já estava consolidada na prática política e religiosa da Península Ibérica, talvez nunca tivéssemos ouvido falar deste homem, provavelmente judeu, nascido em Castelo de Vide.

A Inquisição estabeleceu-se na Índia em 1565. Garcia de Orta tinha então 64 anos e restavam-lhe mais três de vida. Se é verdade que o botânico foi poupado, a fúria inquisitória fez-se sentir duramente sobre a sua família. Em 1569, a sua irmã Catarina foi acusada de prática de judaísmo, condenada e queimada num auto-de-fé. Em 1580, à imagem das damnatio memoriae do Império Romano, o próprio médico foi condenado postumamente e os seus restos mortais foram removidos da Sé de Goa e condenados simbolicamente à fogueira.

Plantas medicinais

O maior valor da obra de Garcia de Orta reside no exemplo para a ciência do seu tempo. Durante anos de trabalho de campo, Orta colheu, classificou e testou cada passo das suas pesquisas. A primazia que deu à observação directa dos factos antecipou em quase 80 anos o Novum Organum de Bacon, que postulava os princípios do novo método científico. Mas Orta não o fazia com a consciência de um novo paradigma; apesar de conhecer a teoria dos livros, ele era um prático, e fê-lo movido por um espírito crítico e por uma curiosidade céptica. Mais do que médico, Garcia de Orta foi um boticário.

Como nota o conde de Ficalho, grande biógrafo de Garcia de Orta, a distância geográfica dos centros de saber e da autoridade facilitou o distanciamento em relação às teorias dominantes, permitindo-lhe romper com os antigos moldes da Escolástica que regiam o conhecimento europeu.

garcia da orta

Colóquio dos Simples. Graças à prensa de Gutenberg, tratados como este passaram, no século XVI, a circular pela comunidade científica europeia. Biblioteca Nacional, Lisboa. 

O Colóquio dos simples, e drogas he cousas mediçinais da India, e assi dalguas frutas achadas nella onde se tratam alguas cousas tocantes a medicina, pratica, e outras cousas boas, pera saber foi um dos primeiros livros impressos na Índia Portuguesa, em 1563. Traduzido em vários idiomas, é um dos melhores trabalhos europeus da época.

Com a revolução tecnológica, a fitoterapia, ou tratamento através das plantas, deu lugar à moderna indústria farmacêutica. No laboratório, é possível isolar as substâncias activas das plantas e sintetizar medicamentos baseados nelas. Continuamos a explorar vastas zonas do planeta, em especial os cantos mais recônditos das fiorestas tropicais, em busca de novas fontes vegetais que possam ajudar a tratar doenças modernas para as quais não se vislumbra ainda qualquer cura. Mas, para se chegar a esta fase de progresso científico, foram necessários vários degraus sobre os quais se edificaram novos conhecimentos. O Colóquio de Garcia de Orta está certamente entre eles, pois infiuenciou investigadores coevos e vindouros, não apenas de Portugal mas de toda a Europa.