O ano de 1816 passou à história como o “ano sem Verão”. A erupção do vulcão Tambora em Sumbawa (Indonésia), no dia 10 de Abril de 1815, libertou toneladas de enxofre que se espalharam pelo planeta, provocando um arrefecimento tão duradouro que afectou o ciclo agrícola e provocou fome nas populações. Estes efeitos fizeram-se sentir inclusivamente na Suíça. Ali, em Coligny, perto do lago Leman, numa elegante mansão chamada villa Diodati, tinha-se instalado naquele Verão um grupo de amigos vindo de Inglaterra: o poeta Percy B. Shelley, aquela que era então a sua amante, Mary Godwin, o célebre escritor Lord Byron, o seu médico e secretário pessoal, John Polidori e Claire Clairmont, a meia-irmã de Mary.
Villa Diodati. O nome original era Villa Belle Rive mas Lord Byron trocou-o pelo nome da família proprietária.O seu aspecto exterior quase não se alterou.
Como bons românticos, os moradores da Villa Diodati amavam a natureza, estavam fascinados com os avanços da ciência e adoravam as histórias de terror gótico. Devido às condições atmosféricas, viram-se obrigados a permanecer muito tempo fechados em casa e passavam as noites a ler histórias de terror. “A chuva incessante confinou-nos em casa. Alguns volumes de histórias de fantasmas caíram-nos nas mãos [...] Estão tão frescos na minha mente como se os tivesse acabado de ler ontem”, recordaria Mary anos mais tarde.
Também falavam sobre os avanços de uma ciência que, na altura, ainda tinha uma certa aura de magia. Fascinavam-nos em particular as experiências científicas ligadas à electricidade, como as de Luigi Galvani, que consistiam em fazer mexer as patas de uma rã, através de uma descarga eléctrica, assim como as especulações de Erasmus Darwin sobre a possibilidade de devolver a vida à matéria morta graças aos impulsos eléctricos.
Desta forma, entre histórias de fantasmas, experiências e leituras, o confinamento resultou num desafio colocado por Lord Byron que propunha que cada membro do grupo escrevesse uma história de terror.
Filha da boémia literária Mary Shelley nasceu em Londres a 30 de Agosto de 1797. Os pais eram o pensador William Godwin e Mary Wollstonecraft, uma feminista que morreu poucos dias depois do parto. Mary cresceu num ambiente culto, mas o pai deixou a sua educação nas mãos da segunda esposa, uma mulher conservadora que não partilhava as teorias do marido. A educação de Mary foi semelhante à de outras raparigas da época. Retrato por Rothwell.1840. Galeria Nacional de Retratos, Londres.
E assim fizeram. O resultado foram duas obras-primas da literatura fantástica: O vampiro de John Polidori, a história de um sedutor aristocrata que suga o sangue das mulheres que caem na sua teia, antecessor de Drácula de Bram Stoker (1897), e Frankenstein de Mary Shelley.
A filha do filósofo
Na época, Mary Shelley ainda era Mary Godwin. Nascida em Londres 19 anos antes, assistia desde criança às tertúlias literárias e filosóficas que o pai, o pensador William Godwin, promovia em sua casa e que atraíam as penas e as mentes mais inovadoras do seu tempo. Foi ali que Mary conheceu, em 1814, o poeta Percy B. Shelley, na altura casado e pai de dois filhos. Apaixonaram-se (foi ela quem se declarou primeiro), mas desde o início, Godwin opôs-se à relação pelo que, decididos a unir as suas vidas, o casal fugiu para França dois meses depois do seu primeiro encontro na companhia de Claire, filha da madrasta de Mary. Pouco depois, chegaram à Suíça, onde estreitaram laços com Byron, que acabou por fazer de Claire sua amante.
Percy Shelley frequentava as tertúlias em casa do pai de Mary, onde se conheceram. Retrato por A. Curran. 1819. Galeria Nacional, Londres.
Quando Byron lançou o seu singular desafio, Mary ainda não se tinha revelado na literatura. Pode especular-se sobre a possibilidade de a autora temer a “folha em branco”, dado o seu carácter extremamente sensível e uma certa instabilidade emocional que a levava a sofrer frequentes depressões e a questionar-se continuamente sobre a relação entre a vida e a morte.
Talvez por isso, o inconsciente, ajudado pelo láudano, um opiáceo da moda na época, que consumia para combater a insónia, veio em sua ajuda. Segundo contou anos depois, certa noite teve um sonho aterrador: pensou ter visto um pálido estudante das artes ímpias, ajoelhado ao lado do objecto que montara. Vi o fantasma horrível de um homem deitado e que, após o trabalho de algum motor poderoso, ganhou vida e se levantou com um movimento tenso e pouco natural”. Tinha nascido o monstro do doutor Frankenstein.
O novo Prometeu. Como indica o subtítulo do seu romance, Mary Shelley inspirou-se no mito grego de Prometeu, filho de um titã que, de acordo com uma das versões, criou os homens a partir do barro, embora noutras surja como benfeitor da humanidade. Gravura da edição de Frankenstein de 1831.
Mary traduziu o seu pesadelo num relato curto sobre um cientista que criava um ser monstruoso. De regresso à Grã-Bretanha, Mary transformou o seu relato num romance que foi publicado em 1818 com o título Frankenstein, ou o moderno Prometeu, e que não apresentava o nome do autor. Para isso, contou com a ajuda de Shelley, com quem se casara depois do suicídio da primeira mulher do escritor. A própria Mary escreveria mais tarde: “O meu marido sempre me encorajou a escrever a minha própria página no livro da fama e a conquistar reputação no meio literário.”Em 1831, reescreveu a história por completo até conseguir a versão definitiva que chegou aos nossos dias.
O médico e a sua criatura
O romance conta a história de um cientista suíço, o doutor Victor Frankenstein, que, depois de assistir às aulas de um professor da Universidade de Ingolstadt, na Baviera, apresenta os últimos avanços da ciência e decide ir ainda mais longe.“Abrirei um novo caminho, explorarei poderes desconhecidos e revelarei ao mundo os mistérios mais profundos da criação.”Frankenstein começa a estudar febrilmente a anatomia animal e os processos de geração e deterioração, até que um dia acaba por descobrir “o segredo da geração e da vida” e convence-se de que seria “capaz de infundir vida num corpo inanimado”. Durante quase dois anos, Frankenstein realiza experiências misteriosas no sótão que usa como laboratório. Com partes de cadáveres que recolhe nas salas de dissecação e de animais que encontra nos matadouros, forma um corpo humano de grande envergadura (2,40 metros de altura). Usando uma bateria semelhante à inventada por Alessandro Volta cerca de 1800, aplica-lhe choques eléctricos, tentando dar-lhe vida.
A experiência que inspirou Mary Shelley.
Em 1780, o italiano Luigi Galvani começou a fazer experiências através das quais provocava movimentos musculares em rãs mortas, usando descargas eléctricas. As experiências “galvânicas” popularizaram-se por toda a Europa, pela mão de entre outros, o sobrinho e discípulo de Galvani, Giovanni Aldini. Em 1803, Aldini chegou a Londres e realizou uma demonstração espectacular no cadáver de um criminoso que fora executado. Perante a audiência, Aldini aplicou em distintas partes do corpo varetas ligadas a uma bateria de zinco, provocando fortes contracções. Uma crónica explicava que, ao tocar na cara do morto, “as mandíbulas começaram a tremer e um olho abriu-se”. Aldini não pretendia ter o poder de ressuscitar pessoas, mas a sua experiência influenciou seguramente o romance de Mary Shelley.
Por fim, numa chuvosa noite de Novembro, à luz de uma candeia, Frankenstein vê o modo como o seu monstro abre um olho e começa a respirar. Vai-se embora horrorizado e, quando regressa, a criatura já desapareceu. A partir daqui desenrola-se uma intriga em que o novo ser sente solidão e a hostilidade dos homens, mata sem querer algumas crianças e desafia o seu criador.
Nas três versões da história, está subjacente a perpétua inquietação da autora em compreender a estreita relação entre a vida e a morte. A morte de dois dos seus filhos, devido a infecções contraídas durante uma longa viagem a Itália, e do próprio Percy Shelley num naufrágio, em 1822, acentuaram a sua obsessão mórbida. Simultaneamente, na obra, estão reflectidas as preocupações científicas da época, como a legitimidade da investigação que contrariava a moral tradicional e a capacidade do ser humano de criar e destruir a vida.
Consagrada à literatura, ao cuidado do seu único filho vivo, Percy Florence, e à recordação de Shelley, Mary recusou sistematicamente voltar a casar, alegando que, depois de se ter casado com um génio, só poderia casar-se com outro.
De regresso a Londres, depois de viajar pelo continente, começou a sofrer os primeiros sintomas da doença, um tumor cerebral, que acabaria por matá-la no dia 1 de Fevereiro de 1851. Depois da sua morte, os familiares encontraram o coração daquele que tinha sido seu marido e mentor, envolvido em seda e acompanhado pelo poema Adonais de Percy B. Shelley. Talvez Mary o tenha conservado na expectativa de, um dia, um Victor Frankenstein de carne e osso o devolver à vida, como na ficção que ela imaginara junto de um lago suíço.