No dia 5 de Julho de 1778, um navio sueco, o Nicolau Roque, zarpou do cais da Trafaria levando a bordo dois passageiros clandestinos. Disfarçados – ao que consta – de carregadores de laranjas, os dois fugitivos tinham conseguido embarcar graças à ajuda do comerciante francês Timóteo Vérdier e rumavam agora à Cidade das Luzes, longe das peias da Inquisição. Eram eles o padre Francisco Manuel do Nascimento (mais conhecido pelo pseudónimo de Filinto Elísio), que traduzira para português obras de Jean-Jacques Rousseau e as lera em público, e o diácono Félix da Silva Avellar, então com 33 anos, que viria mais tarde a adoptar o apelido de Brotero – o “amante dos mortais” – e que também se identificava com as novas ideias iluministas.

À data da sua fuga, Brotero era redactor da Gazeta de Lisboa. Embora não constassem acusações contra ele no Tribunal do Santo Ofício, o futuro botânico terá preferido evitar dissabores e embarcou rumo a uma vida nova.

Felix avelar brotero

A falta de um ilustrador. Ao longo da sua carreira, Félix Brotero queixou-se várias vezes da infelicidade de não contar com um ilustrador reputado nas suas obras. Apesar das limitações, o investigador apresentou, no seu “Compêndio de Botânica”, publicado em 1788, mais de trinta estampas, como este ramo da árvore do chá (na imagem). Nas suas pesquisas, Brotero identificou um novo género vegetal, 28 novas espécies e duas novas variedades. O seu contributo para a botânica portuguesa ainda se sentia mais de cem anos depois da publicação desta e de outras obras de referência. O Jardim Botânico da Universidade de Lisboa e o bonito Museu do Instituto Botânico da Universidade de Coimbra guardam o que resta do espólio deste e de outros naturalistas. Em Coimbra, funciona aliás a Sociedade Broteriana, que procura perpetuar o legado do botânico português e contribuir para o conhecimento vasto da história da disciplina em Portugal.

Em Agosto ou Setembro de 1778, os dois fugitivos fixaram residência em Paris. Brotero permaneceu 12 anos em França e ali relacionou-se com cientistas ilustres. Assistiu às lições de Daubenton, um dos directores do Jardin des Plantes; travou amizade com Lamarck, matemático brilhante e apenas três meses mais velho, precursor das teorias evolucionistas; trocou ideias com Buffon, autor da “Histoire Naturelle”, uma enciclopédia de 44 volumes que descrevia tudo o que era conhecido no mundo natural; e inspirou-se em Condorcet, um ano mais velho do que ele, e secretário da Academia das Ciências desde 1777. Foi nesta altura que o português adoptou o nome Brotero.

A sua primeira publicação, o Compêndio de Botânica ou Noçoens Elementares desta Sciencia, segundo os melhores escritores modernos, expostas na lingua Portugueza, repartia-se por dois volumes e incluía um glossário que foi a base da terminologia botânica portuguesa. Esta obra foi, durante anos, uma referência básica no ensino desta ciência em Portugal e granjeou-lhe o reconhecimento dos seus pares.

Com a Revolução Francesa, o cientista tornou-se cronista. Foi ele quem deu conta dos acontecimentos numa crónica enviada à Gazeta de Lisboa, único órgão de informação oficial do país. O curso dos acontecimentos em França, porém, levou-o de regresso a Portugal no ano seguinte. Em Portugal, tomou a cargo a cadeira de botânica e agricultura. Dedicou-se ao ensino da botânica, “bem vacilante no tempo em que sem mais estímulos ou esperanças do que a minha paixão pela botânica, vou viajando às províncias deste Reyno, no pouco tempo que me permitem as pezadas leys desta Universidade e a minha débil saúde”.

Felix avelar brotero

O botânico Félix Brotero.

Foi durante o tempo das férias que Brotero aproveitou para percorrer o país “com grandes gastos próprios e incómodos”, sofrendo alguns percalços pelo caminho. Em 1792, participou numa excursão que durou mais de dois meses e que percorreu o Centro e o Sul do país. Azarado, esteve constantemente no lugar errado à hora errada.

Nesse Verão, foi preso durante uma semana em Arronches e Vila Viçosa por ter sido confundido com um estrangeiro procurado pela polícia; ficou depois retido em Mértola devido a uma febre infecciosa; noutras ocasiões, foi agredido por pastores e vítima de assaltos.

Na viagem à serra da Estrela, sofreu uma queda copiosa de cujos efeitos se queixaria ainda passando alguns anos. Apesar do azar, os seus trabalhos culminaram com a publicação da Flora Lusitânica, obra que compilou sem qualquer subsídio do Estado e que constituiu o primeiro grande tratado botânico português.

Ao longo da carreira, lançou várias farpas contra a ciência em Portugal e os homens que a praticavam. Sobre Domingos Vandelli, naturalista italiano chamado a Portugal para reformar os estudos da Universidade de Coimbra, teceu duras críticas, bem como sobre Alexandre Rodrigues Ferreira, que também trabalhava no Jardim Botânico da Ajuda depois de regressar da sua viagem filosófica pela Amazónia. Brotero queixava-se da falta de colaboração por parte dos dois colegas,“(...) pois sei que neste Jardim da Ajuda não há quem entenda de cultura de plantas, nem pessoa que ao menos seja semibotânico. O brasileiro Alexandre (...) jejua em botânica. Vandelli trata a botânica de puerilidade frívola”.

óleo de Domingos Sequeira

Este óleo de Domingos Sequeira, Junot Protegendo a Cidade de Lisboa, foi encomendado pelo general francês que tomou a capital. A corte fugiu para o Brasil, mas os súbditos ficaram à mercê dos invasores.

Em 1804, publicou por fim Flora Lusitânica, obra que teve repercussões internacionais imediatas por parte dos “botânicos de primeira ordem (...) todos lhe fazem elogios. (...) A sua reputação de excelente botânico está cá feita”, escreveu-lhe Corrêa da Serra. Brotero, que já era membro da Sociedade Linneana de Londresfoi admitido nas principais academias da Europa. Manteve correspondência regular com Sprengel, Von Humboldt e Broussonet, personalidades ímpares das ciências naturais na Europa. Muitos prestaram-lhe homenagem, atribuindo o seu nome a algumas famílias de plantas: Brotera coryumbosa, Brotera ovata, Brotera phoenica, Brotera trinervata e Brotera pusia são alguns exemplos.

Durante as Invasões Francesas, com a corte refugiada no Brasil, as tropas de Massena ocuparam Coimbra em Setembro de 1810 e Brotero fugiu para Lisboa. Nunca mais voltou a Coimbra. “No saque da minha caza”, escreveu, “perdi-a quasi toda, athe me queimarão os moveis de madeira, e o que foy peior que tudo destruiram-me a minha livraria.”Nesse ano, foi chamado para dirigir provisoriamente o Real Museu e o Jardim Botânico da Ajuda, então entregues a Alexandre Rodrigues Ferreira depois de Vandelli ter sido deportado para a ilha Terceira, acusado de colaborar com os franceses.

Felix avelar brotero

Uma das várias plantas recolhidas por Félix Brotero e que ainda constituem uma referência no Herbário do Jardim Botânico da Universidade de Lisboa.

Depois da morte do italiano,em 1815, Brotero assumiu definitivamente o cargo na Ajuda. Apesar da sua avançada idade, ainda assistiu, neste conturbado início do século XIX, às Cortes Constituintes saídas da revolução liberal, onde se discutiu a primeira Constituição da história de Portugal. Foi eleito deputado e presidiu à Comissão de Agricultura do primeiro parlamento português. Tinha 76 anos. Morreu sete anos depois, em 1828, com 83 anos e com uma vasta colecção de 26 obras publicadas.