“Barbenheimer” não é o nome do novo primeiro-ministro alemão, nem sequer a cidade onde Beethoven uma vez parou para esticar os pés. Trata-se (até ver) do fenómeno do ano no que à indústria cinematográfica concerne. Um encontro de dois mundos poderosos nas salas de cinemas em todo o mundo. De um lado, a tentativa da realizadora Greta Gerwig de transformar um brinquedo numa história coerente de folia despreocupada e sátira social. Do outro, o retrato que Christopher Nolan faz de um físico que ajudou a dar à luz uma das provas mais evidentes do engenho e apetite humanos para o uso da tecnologia como ferramenta de extinção.

Dois filmes que pouco de comum têm… e no entanto, a sua união foi "abençoada" pela Internet e pelos jornalistas da indústria – aquando de uma greve de actores e guionistas em Hollywood. Como é que duas obras tão antagónicas foram assim casadas? E o mais importante: é assim tão novidade? A resposta, em cinco pontos.

1. “O IMPÉRIO CONTRA-ATACA” E “THE SHINING”, EM 23 DE MAIO DE 1980

The Shinning
Shutterstock

Uma claquete original do filme "The Shining", de Stanley Kubrick, em exposição no Design Museum, em Kensington, Londres.

Ocasionalmente, a estreia de dois filmes no mesmo dia acontece numa manobra de contra-programação. Em 2008, “Mamma Mia!” abriu frente a “O Cavaleiro das Trevas”; e em 1988, “Die Hard: Assalto ao Arranha-Céus" e “Um Peixe chamado Wanda”, comédia memorável da mente de alguns dos Monty Python, escalaram o mesmo prédio. E que dizer quando em 2004 “Ray” enfrentou “Saw: Enigma Mortal”? Ou em 1996, quando “O Paciente Inglês” deu por si no mesmo dia de “Space Jam”?

Um dos exemplo mais extremos e memoráveis desta manobra aconteceu a 23 de Maio de 1980, quando a sequela daquele que era nesse ano o mais bem sucedido filme de sempre estreou oposta à adaptação de um popular romance de horror de Stephen King, “The Shining”. George Lucas não realizava desta vez, mas “Star Wars: O Império contra-ataca” continuava a ser seu filho e Stanley Kubrick era o oposto de Lucas. Surpreendentemente, “The Shining” fez até mais dinheiro por sala de cinema do que a aventura espacial pensada por Lucas e realizada por Irvin Kershner. A longo prazo, Darth Vader e companhia trucidaram Kubrick e quem mais apareceu nesse Verão, acabando com 549 milhões na conta. Kubrick teve de se contentar com quase cinquenta milhões e uma sova crítica – e desprezo por parte de Stephen King – num filme que hoje é considerado intocável no género de horror.

2. “BLADE RUNNER – PERIGO IMINENTE” E “THE THING: VEIO DO OUTRO MUNDO”, A 25 DE JUNHO DE 1982

É impossível ignorar o mês de Junho de 1982, ao escrever a história do cinema de entretenimento pré-Internet. O mês abriu com “Poltergeist” e “Star Trek II: A ira de Khan”, estreados a 4. Na semana seguinte, “ET” apareceu e começou logo a pulverizar recordes de estreia, acompanhado discretamente pela sequela de “Grease”. A semana seguinte foi só para dar descanso, porque a 25 abririam duas obras maiores dos respectivos géneros: Ridley Scott vinha do sucesso de “Alien” e estreava a distopia future noir de “Blade Runner”. John Carpenter, a assumir o trono do cinema de horror, lançava “The Thing: Veio do Outro Mundo”. O curioso é que à época ambos foram enormes flops comerciais e entre os críticos não houve grandes advogados de defesa. Um dos factores apontados para esta recepção foi o facto de “ET” de Spielberg, ao amansar a audiência para histórias de extraterrestres e naves com emoção e nostalgia, ter destreinado os espectadores para a densidade das ideias de Scott e a pura angústia tensa da claustrofobia gelada de Carpenter. A segunda hipótese terá a ver com o fraco trabalho de marketing de dois estúdios que nunca acreditaram bem nestes filmes e que perante as reacções das audiências ao extraterrestres de Spielberg, perderam logo a fé na promoção do seu próprio trabalho. Hoje, ambos são vistos como marcos culturais. “Blade Runner” pela criação de um futuro realista, do qual já temos algumas marcas na nossa realidade, e pela capacidade de um diálogo filosófico existencial numa história de ficção científica; “The Thing” pelo modelo de cinema de horror apertado, insustentavelmente trepidante, com personagens lacónicos e gore feito com bom gosto. Ridley Scott ainda hoje trabalha regularmente com grandes orçamentos. John Carpenter tem sido largamente esquecido pela indústria e a julgar pelo bruá do Barbenheimer, não é crível que o público se lembre dele tão cedo. 

BARBIE SHUTTERSTOCK
SHUTTERSTOCK

Nova Iorque, EUA, 8 de Julho de 2023. Publicidade ao filme "Barbie", da Warner Bros. Pictures, na Times Square. 

3 . "OS CAÇA-FANTASMAS" E "GREMLINS", A 8 DE JUNHO DE 1984

São dois clássicos dos anos 80. Quando estrearam, eram apenas duas comédias com toques de horror disputando o trono. “Ghostbusters: Os Caça-Fantasmas” era sem dúvida o mais aguardado, com uma série de actores populares como Bill Murray, Dan Aykroyd – vindos do êxito televisivo semanal “Saturday Night Live”  – e Sigourney Weaver, entre “Alien” e a sua sequela. Já o filme de Joe Dante sobre criaturas aparentemente indefesas que viram monstros foi relativamente barato de produzir e tinha actores desconhecidos e um realizador vindo da série B. Ter, no entanto, Steven Spielberg como produtor foi decisivo e no final, fez quase 150 milhões de dólares nos EUA. O filme dos investigadores paranormais vestidos de canalizadores foi o vencedor nesse ano, com quase 300 milhões de dólares. Ambos reforçaram que os anos 1980 iniciavam a era dos filmes de conceito simples e potencial de sequela: os outros dois filmes de maior sucesso de 1984 foram “Indiana Jones e o Templo Perdido” e “The Beverly Hills Cop: O Caça Polícias”, que teria três sucessores.

4. “EVIL DEAD 2: A MORTE CHEGA DE MADRUGADA” E “ARIZONA JR.”, A 13 DE MARÇO DE 1987

Peçam a qualquer cinéfilo de bandeirinha no ar para listar os grandes realizadores dos últimos 50 anos e é provável que a certa altura vos mencione os Irmãos Coen ou Sam Raimi. Os Coen já ganharam vários Óscares, nomeados para outros mais, venceram duas Palmas de Ouro em Cannes. Sam Raimi tornou-se num dos nomes mais bem sucedidos do cinema comercial do século XXI, principalmente devido aos filmes da saga “Homem-Aranha”, com Tobey Maguire no papel do Aranhiço. No entanto, em 1987, os Coen e Raimi estavam a aparecer. A bem dizer, até se conheciam e tinham trabalhado e vivido juntos. Joel, um dos Coen, participou na edição do primeiro filme de Raimi, “Evil Dead”, e a maneira como este financiou e filmou (improvisada e artesanalmente) inspirou-o a escrever e realizar com o irmão Ethan a sua obra de estreia: “Blood simple: Sangue por Sangue”. Raimi inspirou os Coen de outras maneiras mais técnicas. É, por isso, curioso que em 1987 os seus filmes tenham colidido a 13 de Março. O terceiro de Raimi, o segundo dos Coen, e o público sem saber que estava a presenciar História. Ambos os filmes foram modestos sucessos de bilheteira, mas são hoje considerados clássicos. E os realizadores continuariam a trabalhar uns com os outros no futuro. 

5. “TOY STORY” E “CASINO”, A 22 DE NOVEMBRO DE 1995

Toy Story
Disney

Às vezes, os cinéfilos estão a assistir a um fim-de-semana de cinema estranho, mas ainda não o sabem bem. 1995 teve dois desses momentos. Um deles aconteceu exactamente dois meses antes daquele a que dedicamos esta entrada, quando “Sete Pecados Mortais”, thriller de horror hoje em dia clássico de David Fincher, confrontou “Showgirls”, uma obra mal recebida quando estreou (mas agora de culto particular) de Paul Verhoeven. Uma sessão dupla em que saltávamos do tremendo final do filme de Fincher para uma aula sobre sedução no varão.

No entanto, em Novembro, estávamos a assistir à mudança dos costumes assim sem fanfarra: nos inícios dos anos 90, Martin Scorsese vinha de “Tudo Bons Rapazes”, recebido em ombros pela crítica e de “Cabo do Medo”, um dos filmes mais vistos de 1991. Em 1993, faz “A Idade da Inocência” e decide que agora deve uma aos estúdios e realiza “Casino”, com de Robert Niro, Joe Pesci e Sharon Stone, três grandes vedetas numa altura em que isso contava. A Disney vinha do sucesso retumbante de “O Rei Leão” no ano anterior, mas queria convencer as pessoas a comparecer nas salas para ver bonecos feitos em computador. Hoje em dia, a novidade é quando a animação é feita à mão, mas na altura o digital era um risco. Conclusão: “Toy Story” foi o segundo filme mais visto desse ano, com quase 400 milhões de dólares. “Casino”, do estabelecidíssimo Scorsese, fez 43 milhões e só recuperou o dinheiro no mercado internacional. O realizador entrou num período de filmes “mais pessoais” e uns certos bonecos em computador nos quais ninguém tinha fé chegaram para ficar, tornando-se um dos franchising de animação mais bem sucedidos da História.

Barbenheimer, 2023: do divórcio ao casamento

A história terá começado num divórcio. O divórcio entre Nolan e um dos grandes estúdios de Hollywood, a Warner. O britânico trabalhara em exclusivo com o estúdio desde “Batman Begins”. No entanto, chegou 2020 e aconteceu “Tenet”. Queixando-se de que a Warner mantivera o seu filme durante poucas semanas no grande ecrã, despachando-o com limpeza para o serviço de streaming HBO MAX, Nolan – um dos mais ardentes defensores da sala de cinema na esfera pública – decidiu dar um tempo na relação. Anunciou então que o seu próximo filme, “Oppenheimer”, seria distribuído pela Universal, outro gigante de Hollywood. Quando este filme teve data de estreia, a 20 de Julho, nos dias seguintes a Warner anunciou que “Barbie”, uma das suas grandes apostas para 2023, abriria exactamente no mesmo dia.