Há quem diga que era um cirurgião. Outros pensam que era um louco perturbado – ou talvez um talhante, um príncipe, um artista ou um espectro. Faz 135 anos este Outono que o assassino que ficou conhecido como Jack, o Estripador, aterrorizou Londres. Ao longo do século seguinte, foi de tudo para todos, uma sombra escura para a qual transpomos os nossos medos e atitudes.
Para cinco mulheres, porém, Jack, o Estripador, não foi um fantasma lendário ou uma personagem de um romance policial – foi a pessoa que pôs um fim horrível às suas vidas. “Jack, o Estripador, era uma pessoa real que matou pessoas reais”, reitera a historiadora Hallie Rubenhold, cujo livro, "The Five", acompanha a vida das suas vítimas. “Ele não era uma lenda.”
Quem eram estas mulheres? Elas tinham nomes: Mary Ann “Polly” Nichols, Annie Chapman, Elizabeth Stride, Catherine Eddowes e Mary Jane Kelly... Também tinham esperanças, entes queridos, amigos e algumas delas filhos. As suas vidas, todas singulares, contam a história de Londres no século XIX, uma cidade que as empurrou para a margem e lhes prestou mais atenção mortas do que vivas.
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Um relato sobre o homicídio de Annie Chapman publicado na Illustrated Police News, a 22 de Setembro de 1888. A descoberta do corpo de Chapman — com ferimentos semelhantes aos de Polly Nichols — instalou um clima de terror quando Londres se apercebeu de que havia um assassino em série à solta.
Terror em Whitechapel
As suas histórias não começaram todas em Londres, mas terminaram ali, num canto apinhado da metrópole conhecido como Whitechapel, um bairro no East End londrino. “É provável que não exista no mundo um espectáculo como esta enorme, negligenciada e esquecida grande cidade de East London”, escreveu Walter Bessant no seu romance "All Sorts and Conditions of Men" em 1882. “Até é negligenciada pelos seus próprios cidadãos, que ainda não se aperceberam do seu estado de abandono.”
Os cidadãos “abandonados” de Whitechapel incluíam alguns dos residentes mais pobres da cidade. Imigrantes, trabalhadores temporários, famílias, mulheres solteiras, ladrões – todos se amontoavam em habitações sociais, bairros de lata e casas de trabalho a transbordar de gente.
Segundo a historiadora Judith Walkowitz, “na década de 1880, Whitechapel tornara-se a epítome dos males sociais da ‘Londres Marginal’, um sítio onde o pecado e a pobreza conviviam na imaginação vitoriana, chocando as classes médias.
Whitechapel transformou-se numa cena de terror quando o corpo sem vida e mutilado de Polly Nichols foi descoberto numa rua escura na madrugada de 31 de Agosto de 1888. Foi a primeira das cinco vítimas canónicas de Jack, o Estripador, o grupo principal de mulheres cujos homicídios pareciam estar relacionados e ocorreram num curto espaço de tempo.
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Um desenho de Mary Jane Kelly que apareceu no The Penny Illustrated Paper a 24 de Novembro de 1888. Mary Jane era a mais nova e mais misteriosa das vítimas de Jack o Estripador – e a única com a sorte de ter dinheiro suficiente para arrendar um quarto com uma cama.
Ao longo do mês seguinte, três outras mulheres foram encontradas mortas nas ruas do East End e todas tinham sido assassinadas de uma forma parecida: com a garganta cortada e, na maioria dos casos, a barriga esventrada. Os órgãos de algumas vítimas tinham sido removidos. O quinto homicídio ocorreu no dia 9 de Novembro, quando o Estripador massacrou Mary Jane Kelly com tal violência que ela ficou quase irreconhecível.
Este chamado “Outono de Terror” precipitou Whitechapel e a cidade inteira em pânico e a misteriosa identidade do assassino em série só aumentou o drama. A imprensa aproveitou-se dos homicídios incrivelmente macabros – e das vidas das mulheres assassinadas.
Polly, Annie, Elizabeth, Catherine e Mary Jane
Embora para sempre ligadas pela forma como morreram, as cinco mulheres assassinadas por Jack, o Estripador, partilhavam outra coisa: eram das residentes mais vulneráveis de Londres, vivendo à margem da sociedade vitoriana. Lutavam pela vida no East End, entrando e saindo de casas de trabalho, encaixando trabalhos esporádicos e empenhando as suas parcas posses para poderem pagar uma cama onde passar a noite num albergue. Se não conseguissem reunir algumas moedas, limitavam-se a dormir na rua. “Ninguém se preocupava com quem eram estas mulheres”, lembra Rubenhold. “As suas vidas eram incrivelmente precárias.”
Polly Nichols conhecia bem a precaridade. Nascida em 1845, cumpriu o ideal vitoriano de feminilidade ao casar-se aos 18 anos. Contudo, depois de ter cinco filhos, deixou o marido por suspeitar que este era infiel. O álcool tornou-se uma muleta e uma maldição nos últimos anos da sua vida.
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Uma ilustração de Elizabeth Stride publicada no The Illustrated Police News em 1888. Elizabeth emigrou da Suécia para Londres com apenas 22 anos. Era casada e tinha um café.
O álcool também contribuiu para que Annie Chapman se afastasse daquilo que era considerado uma vida respeitável. Chapman nasceu em 1840 e passou a maior parte da sua vida em Londres e Berkshire. Ao casar-se com John Chapman, um cocheiro, em 1869, Annie posicionou-se na camada superior da classe operária. No entanto, a sua paixão pelo álcool e a perda dos seus filhos devastaram a sua vida familiar e Annie acabou no East End.
Nascida na Suécia, Elizabeth Stride era uma imigrante, como milhares de outras pessoas que viviam no East End. Nascida em 1843, foi para Inglaterra aos 22 anos. Em Londres, Stride reinventou-se vezes sem conta, casando-se e tornando-se proprietária de um café.
Catherine Eddowes nasceu em Wolverhampton em 1842 e mudou-se para Londres quando era pequena, tendo perdido ambos os pais aos 15 anos. Passou a maior parte da idade adulta com um homem, que foi o pai dos seus filhos. Antes de ser assassinada, tinha acabado de regressar a Londres depois de ter ido colher lúpulo a Kent, um popular ritual de Verão dos londrinos de classe operária.
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Um desenho de Catherine Eddowes no jornal de crime ilustrado Famous Crimes, Past and Present. Ela perdeu ambos os pais na adolescência e acabou por ir viver para um edifício de habitação social em East London.
Com 25 anos, Mary Jane Kelly foi a vítima mais jovem e misteriosa do Estripador. Kelly dizia ter vindo da Irlanda e de Gales antes de se instalar em Londres. Tinha um pequeno luxo que as outras não tinham: um quarto arrendado com uma cama, que viria a ser o local do seu homicídio.
No entanto, a ideia feita segundo a qual todas estas mulheres eram trabalhadoras sexuais é um mito, como Rubenhold demonstra em "The Five". Que se saiba, apenas duas das mulheres — Stride e Kelly — se dedicaram a serviços sexuais durante as suas vidas. O facto de todas terem sido rotuladas como trabalhadoras sexuais salienta a forma como os vitorianos viam as mulheres pobres e sem abrigo. “Devem ter sido, sistematicamente, postas ‘à parte’ da sociedade”, diz Rubenhold, embora “a maioria das pessoas vivessem assim”.
Estas mulheres eram seres humanos com uma identidade forte. Segundo o biógrafo Robert Hume, os seus amigos e vizinhos descreviam-nas como “diligentes”, “alegres” e “muito limpas”. Viveram, amaram e existiram – até, de repente, numa noite escura de 1888, terem deixado de o fazer.
Uma longa sombra
A descoberta do corpo de Annie Chapman a 8 de Setembro aumentou o pânico sentido em Londres, pois os seus ferimentos ecoavam a brutalidade chocante do homicídio de Polly Nichols, ocorrido alguns dias antes. Os investigadores aperceberam-se que deveria ter sido o mesmo assassino a cometer ambos os crimes – e ainda andava à solta. Quem iria atacar a seguir?
No final de Setembro, o Central News Office de Londres, recebeu uma carta alegadamente escrita pelo assassino com tinta vermelha. Estava assinada “Jack, o Estripador”. Jornais de toda a cidade adoptaram o nome. A cobertura mediática dos Homicídios de Whitechapel foi aos píncaros. Os jornais balançavam sobre a fronteira entre o facto e a ficção, contando ofegantemente todos os detalhes macabros dos crimes e especulando, com muita imaginação, sobre a identidade do assassino.
Esse impulso persiste ainda hoje e detectives de sofá e investigadores profissionais já propuseram um rol interminável de suspeitos, incluindo o artista Walter Sickert, o escritor Lewis Carroll, o marinheiro Carl Feigenbaum e Aaron Kosminski, um barbeiro do East End.
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Por detrás da lenda de Jack o Estripador encontram-se as histórias reais das mulheres cujas vidas ele ceifou – incluindo Mary Ann “Polly” Nichols, cujo memorial no cemitério da Cidade de Londres se vê nesta imagem. Todas viveram à margem de uma cidade que lhes prestou mais atenção mortas do que vivas.
O fascínio prolongado por desvendar o assassino perpetua “esta ideia de que Jack, o Estripador, é um jogo”, diz Rubenhold. Ela vê paralelos entre a ludificação dos Homicídios de Whitechapel e obsessão contemporânea pelos crimes reais. “Quando abordamos crimes reais, na maioria das vezes tratamo-los como se fossem lendas, como se não fossem reais, como se não tivessem acontecido a pessoas reais.”
“Estes crimes ainda acontecem hoje e continuamos a não estar interessados nas vítimas”, lamenta Rubenhold.
Os Homicídios de Whitechapel permanecem por resolver ao fim de 135 anos e Rubenhold não crê que isso algum dia mude: “não vamos encontrar nada que nos diga categoricamente quem é Jack, o Estripador”. Em vez disso, os homicídios falam-nos sobre os valores do século XIX – e do XXI.