Quem gosta de ler, certamente se divertirá a imaginar o que acontece quando alguém com um estilo de escrita definido, identificativo, tem de respeitar as regras de tradução e manter as intenções e fluidez – ou não – do autor original. Em Portugal, há episódios muito curiosos envolvendo grandes nomes da literatura, uns mais conhecidos do que outros, alguns aproveitando a oportunidade de fazer traduções para sustentar a sua vida enquanto escrevem paralelamente, ou até para experimentar géneros aos quais não os associamos de todo.

José Gomes Ferreira traduziu legendas para filmes sob o pseudónimo Gomes, Álvaro antes de se tornar num vulto da literatura. Eça verteu As Minas do Rei Salomão para português ler. Mário Cesariny transformou Une Saison en Enfer, de Jean-Arthur Rimbaud, em Uma Cerveja no Inferno. Luiza Neto Jorge venceu o prémio PEN Clube Português pela tradução de Morte a Crédito, do polémico Louis-Ferdinand Céline. Sophia traduziu, entre outros, Shakespeare e Pessoa, e tem agora a sua página de Wikipedia disponível em 27 idiomas. Vasco Graça Moura devolveu-nos A Divina Comédia na nossa língua e Frederico Lourenço enriqueceu a nossa leitura da Bíblia a partir do grego antigo. Vamos conhecer, em detalhe, três destes casos?

1. EÇA DE QUEIRÓS

Para quem cresceu com a literatura de aventura em Portugal, um caso clássico de uma tradução melhor do que o original – precisamente devido ao talento do seu tradutor – é As Minas do Rei Salomão. Escrito por Rider Haggard, entrou numa primeira edição portuguesa pela pena de Eça, homem cosmopolita e com um domínio de várias línguas até pela sua experiência diplomática. A partir dos anos 80 do século XIX, depois de casar, o escritor sente apertos financeiros, fruto dos problemas que o opunham aos seus editores: achava que merecia receber mais rendimentos dos lucros das suas obras. Os editores tinham uma opinião diferente, e assim, um dos nossos maiores prosadores necessitou de fazer algo com o qual alguns de nós se conseguem identificar: arranjou um part-time. Já em Paris, onde viveu vários anos, escreveu colunas para jornais, organizou almanaques e colaborou em revistas. 
Foi assim que, em 1891, o autor de O Mandarim viu publicada a sua versão portuguesa das aventuras de Allan Quatermain em África, tema que na altura despertava curiosidade, polémica e paixão no nosso país. O próprio Eça terá mostrado interesse em chamar a si a tradução exactamente por esse motivo: alguns dos seus textos para As Farpas – colectânea de crónicas de mordacidade nuclear que escrevera junto com Ramalho Ortigão – já eram dedicadas à presença europeia neste continente. 

Em 1891, é lançada a versão portuguesa das aventuras de Allan Quatermain em África, tema que na altura despertava curiosidade, polémica e paixão no nosso país.

Eça celebrava a beleza de África e criticava a maneira como Portugal se agarrava duramente a um património que só dava prejuízo. Não esquecer também que, na sua juventude, o próprio Eça estivera presente na inauguração do Canal do Suez, passando semanas no Norte de África, experiência que explorou no seu livro A Relíquia. Além de escritor, Eça foi toda a vida um viajante. Um outro motivo, já mais político, teve a ver com a ideia de que o Reino Unido, pátria de As minas de Salomão, estava com ânsias de ocupar a então designada "África portuguesa". Ora, ler as aventuras de um dos seus mais emblemáticos heróis coloniais, Allan Quatermain, era um bocadinho como conhecer as manhas do inimigo. Além disso, Eça não resiste à troça, quando escolhe Quatermain como a única personagem cujo nome altera significativamente: passa a chamar-se Alão Quartelmar.

O romance original, sofrível, transforma-se assim no estilo livre queirosiano, em empolgante e solto. Aliás, afirmar que lemos uma versão e não uma tradução não é totalmente descabido. Haggard foi um escritor cuja, digamos, limitação literária inspirou este tipo de fenómeno: já a versão italiana de As minas de Salomão foi convertida por Emilio Salgari, que a traduziu, noutro exemplo de liberdade criativa. O que nos pode levar a discutir sobre o que é uma boa e uma má versão de um original. O original inglês tem 20 capítulos, a edição portuguesa 17. E Eça ainda se dá ao luxo de lhes trocar a ordem. Quem quiser comparar, há uma edição coordenada pelo académico Alan Freeland e que inclui ambas as versões. É um caso óbvio de desrespeito pelas regras básicas da tradução no qual o leitor fica a ganhar e onde Rider Haggard sai extremamente favorecido.

2. SOPHIA DE MELLO BREYNER 

A primeira mulher portuguesa a receber o Prémio Camões traduziu de uma língua estrangeira para a sua, mas também verteu noutros idiomas a obra de alguns dos nossos melhores escritores, principalmente poetas.

A sua educação nos meios nobiliárquicos portuenses do início do século XX abriram-lhe o gosto para a cultura clássica, que marcaria toda a sua obra, e também lhe facilitaram o domínio de várias línguas. Entre os autores literários que ajudou a "fixar" em português, contam-se luminárias como Shakespeare, Dante ou Eurípides, mas outros menos conhecidos mas próximos das suas origens, como Leif Kristianson, ou simplesmente do seu gosto, como Paul Claudel

dwc

As traduções são uma importante ferramenta para as companhias de teatro do país, que regra geral representam em português. Este é um cartaz de 2015, do Teatro da Cornucópia, quando levou à cena Hamlet, a partir da tradução de Sophia de Mello Breyner (aqui numa edição da Assírio e Alvim).


Ao contrário de Eça, Sophia traduziu por amor à literatura, sem necessidades de dinheiro. No entanto, é o seu Quatre poètes portugais talvez o mais cativante dos seus exercícios de tradução. Sophia pega em poemas de Luís de Camões, Cesário Verde, Mário de Sá Carneiro e Fernando Pessoa e transporta-os para os labirintos da língua gaulesa. Com Camões, por exemplo, admitiu ter tido dificuldades pelo facto dos textos do autor de Os Lusíadas terem uma arquitectura complexa, aparte as palavras que usava: a métrica da poesia camoniana obrigou-a a adaptar-se, ela que escrevia maioritariamente em verso livre e solto, sem amarras. Este exercício influenciou mais tarde a obra de Sophia. Dedica vários poemas ao escritor – “Gruta de Camões” é um exemplo óbvio” – e aventura-se até pelo soneto, a forma camoniana por excelência. 

Sophia de Mello Breyner dedicou poemas a Fernando Pessoa e Luís de Camões, autores que traduziu. 

Já no caso de Fernando Pessoa, num registo completamente diferente, ela escolhe poemas escritos no nome de Pessoa e dos seus três heterónimos mais conhecidos: Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis. É com este último que Sophia encontra maior afinidade, pelas óbvias referências estóicas da sua poesia e a semelhança de sensibilidades. Também é curioso notar que por volta da mesma altura que faz as suas traduções deste heterónimo é quando lhe dedica um poema, “Homenagem a Ricardo Reis”. A tradução acaba por influenciar a obra da tradutora-autora: ela usa imagens, temas, às vezes até expressões que são inspiradas claramente pelo heterónimo latinista. A complexidade de Pessoa, segundo Sophia, não lhe foi difícil de alcançar: segundo ela, a lucidez do poeta estava nas suas palavras e, como tal, ela não fez mais do que traduzi-las de forma exacta. Também a obra de Mello Breyner foi alvo de várias traduções, inclusive o conto mais do que exemplar "A Saga", que pode ser lido em inglês, espanhol, italiano, francês e alemão.

3. FREDERICO LOURENÇO

Se os autores anteriores são largamente mais conhecidos pela sua obra própria do que pela voz que deram a outros autores, Frederico Lourenço será o mais… tradutor, à falta de melhor expressão. É conhecido principalmente pelas suas traduções de obras de autores gregos, como a Ilíada e a Odisseia, de Homero, ou tragédias de Eurípides, para além de uma colectânea de lírica de autores gregos clássicos. A formação de Lourenço é precisamente em Línguas e Literaturas Clássicas e isso explica o seu foco na divulgação dos escritores da Grécia Antiga.

Frederico Lourenço é mais reconhecido pelas suas traduções do que pela sua obra original. Todavia, as suas traduções, mesmo rigorosas, acabam por ter um cunho próprio.

É uma das razões pelas quais diz entregar-se a este trabalho desde que o ensino do Grego saiu dos currículos do ensino secundário. É uma língua que na sua versão antiga, segundo Lourenço, já tem poucos falantes até no meio académico e teme que, qualquer dia, já não haja em Portugal quem consiga ler Homero no original. 
O seu trabalho como tradutor levou-o a vencer o Prémio Pessoa e embora tenha uma obra como autor de romances e contos, é a sua obra em prol de outros autores que o tornou mais conhecido.

Frederico Lourenco

Além da Bíblia, Frederico Lourenço também traduziu o épico grego A Odisseia, neste caso numa versão adaptada aos mais novos. O escritor-tradutor é formado em Línguas e Literaturas Clássicas pela Universidade de Lisboa. 

Frederico Lourenço recebeu este galardão precisamente quando voltou a embrenhar-se nos labirintos do Grego novamente e traduziu parte da Bíblia para o português. O tradutor pegou, neste caso, numa segunda versão de um original, transformando-a numa terceira, num exercício hercúleo de não trair as palavras dos textos que lhe chegaram às mãos em grego - aliás as suas cuidadas anotações remetem-nos sempre para a tradução como um compromisso, por um lado, e uma inquietude, por outro.
O mais conceituado tradutor português do guia espiritual de cristãos e judeus (no último caso, só o Antigo Testamento) afirma-se como agnóstico, mas simpatizante do cristianismo. Por isso se considerou alguém que poderia trazer uma perspectiva mais moderna a uma obra tão marcada pelo tempo em que foi escrita. As várias questões que Lourenço coloca à Bíblia levam-no a pensar na larga diferença entre a Igreja Primitiva e a forma como o cristianismo é visto actualmente. A tradução serve como um acto de reflexão, de questionamento.

Lourenço tenta buscar no antigo o que é actual e a sua tradução destas obras, desde a Antiguidade Clássica até ao cristianismo, mostram como a tradução, até mesmo de autores passados, mortos e enterrados, pode ser uma forma mais rápida e directa de entender o presente.