Escavações polémicas realizadas sob a cidade santa estão a expor milénios de tesouros religiosos e culturais e a espicaçar tensões muito antigas.

Esforço-me por acompanhar o arqueólogo israelita, com a sua compleição esguia, enquanto ele se esgueira pelo túnel serpenteante e estreito. Orientados apenas pela lanterna dos nossos telemóveis, baixo-me para evitar que o capacete amarelo raspe na rocha acima da minha cabeça. De repente, ele pára. “Vou mostrar-lhe algo muito curioso.”

A passagem apertada situa-se sob um pontão de terra rochoso que se projecta a sul da Cidade Velha de Jerusalém. Esta crista estreita, lugar de implantação da Jerusalém primitiva e hoje atravancado com casas, ocupadas sobretudo por moradores palestinianos, oculta um labirinto subterrâneo de grutas naturais, sistemas de canalização cananeus, túneis judaicos e pedreiras romanas.

Sigo Joe até um espaço recentemente escavado, com a dimensão de uma confortável sala de estar suburbana. A lanterna dele foca-se num cilindro pálido atarracado. “É uma coluna bizantina”, explica, acocorando-se para remover um saco de areia volumoso, em baixo do qual se vê uma superfície branca macia. “E veja este pedaço do chão em mármore.” 


jerusalém

Património Contestado. Sagrada para judeus, cristãos e muçulmanos, Jerusalém tem sido moldada por quase três mil anos de devoção, conquista, devastação e reconstrução.

Encontramo-nos numa igreja do século V, construída para celebrar o local onde se diz que Jesus curou um cego. O vetusto edifício foi-se juntando aos vastos domínios subterrâneos da cidade. 

Para Joel Uziel, a igreja é a mais recente complicação num dos projectos arqueológicos mais caros e polémicos do mundo. A sua missão consiste em escavar uma rua com dois mil anos e 600 metros de comprimento, que outrora conduzia peregrinos, mercadores e outros visitantes a uma das maravilhas da Palestina antiga: o Templo Judaico. Atulhada de escombros durante a feroz destruição da cidade pelas forças romanas em 70 d.C., esta via monumental desapareceu da vista. 

“Baixem-se!” é o refrão constante de Joe Uziel.

“Agora teremos de mudar de direcção por causa da igreja”, explica Uziel. “Nunca sabemos o que vamos encontrar.” Ele já tropeçou em banhos rituais judaicos, num edifício tardo-romano e nos alicerces de um palácio dos primeiros tempos da era islâmica. Cada edifício teve de ser cartografado e estudado, sendo preciso descobrir um desvio, ou construir um caminho.

Quando a equipa de escavação britânica abriu caminho até entrar na igreja, era vulgar abrir túneis. Hoje, porém, excepto em circunstâncias especiais, a abertura de túneis é considerada perigosa e não científica. Neste ponto, porém, não é prático escavar para baixo a partir da superfície, uma vez que vivem pessoas poucos metros acima. Por isso, um exército de engenheiros e operários de construção civil está a abrir um poço horizontal por baixo da crista. À medida que vão avançando, Joe Uziel e a sua equipa recolhem cerâmica, moedas e outros artefactos. Se o método é cientificamente aceitável ou não, isso depende do arqueólogo israelita a quem se faz a pergunta.

Os operários do túnel lidam com solos instáveis que já deram origem a derrocadas, ao mesmo tempo que os moradores que residem por cima se queixam dos danos causados às suas habitações. O ambicioso projecto, em grande parte financiado por uma organização de colonos judaicos, localiza-se num sítio particularmente sensível de Jerusalém Oriental: a zona da cidade anexada por Israel em 1967, considerada território ocupado por muitos países do mundo. Aliás, a maior parte das escavações realizadas em tal território são ilegais ao abrigo do direito internacional. Chamada Wadi Hilweh pelos palestinianos, para os judeus trata-se da Cidade de David, o local onde o rei David fundou a primeira capital israelita. 

Na opinião de muitos palestinianos, as escavações em Jerusalém e as tentativas para deslocá-los estão intimamente ligadas.

Joe Uziel conduz-me de regresso à passagem estreita e emergimos numa secção finalizada do novo túnel. Ao contrário do poço britânico, este encontra-se forrado a aço reluzente. Antigos degraus de calcário brilham à distância. “Algumas destas pedras encontram-se quase intactas”, comenta o arqueólogo, enquanto subimos a ampla escadaria. “Esta era a rua principal da primitiva Jerusalém romana. Os peregrinos purificavam-se na piscina e, de seguida, subiam ao Templo.” 

O caminho teve vida curta. Moedas ali encontradas sugerem que um famoso gentio presidiu à construção da escadaria monumental, perto do ano 30 d.C., o prefeito romano mais conhecido por ter ordenado a crucificação de Jesus: Pôncio Pilatos.


“A verdade brotará da terra”, reza o Livro dos Salmos. Mas qual verdade? É a pergunta que atormenta Jerusalém. Numa cidade fundamental para as três grandes religiões monoteístas, o gesto de enterrar uma pá no solo pode ter consequências imediatas e de longo alcance. Em poucos lugares da Terra, uma escavação arqueológica desencadeia uma rebelião, alimenta uma guerra regional ou coloca o mundo inteiro de sobreaviso.

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Um mural fotográfico enquadra um antigo parque de estacionamento onde os arqueólogos encontraram uma impressão num selo de argila associada ao rei bíblico Josias. Para alguns, foi a confirmação das antigas raízes judaicas de Jerusalém. Alguns palestinianos contrapõem que a arqueologia está a ser utilizada como arma de ocupação.

Em 1996, depois de o governo israelita abrir uma saída para a passagem subterrânea ao longo da secção da Muralha Ocidental, no Bairro Muçulmano da Cidade Velha, cerca de 120 pessoas morreram no decurso de manifestações violentas. Discussões posteriores sobre quem deveria controlar o solo localizado sob a plataforma sagrada a que os judeus chamam Har Ha-Bayit (Monte do Templo) e os árabes Haram al Sharif (Nobre Santuário) contribuíram para inviabilizar os acordos de paz de Oslo. Até a recente construção do Museu da Tolerância, em Jerusalém, foi alvo de protestos, por ter destruído túmulos muçulmanos. 

“Em Jerusalém, a arqueologia é tão sensível que diz respeito não só à comunidade dos investigadores, mas também aos políticos e ao público em geral”, reconhece Yuval Baruch, da Autoridade para as Antiguidades de Israel (IAA). Yuval é responsável pelo atarefado escritório da IAA em Jerusalém. Durante o seu mandato, a cidade transformou-se num dos mais movimentados sítios arqueológicos do mundo, com cerca de cem escavações por ano. 

O presidente da Autoridade Palestiniana, Mahmoud Abbas, tem-se queixado de que as escavações fazem parte de uma campanha para desvalorizar, com achados judaicos, 1.400 anos de legado muçulmano. “Aqui, a arqueologia não tem apenas objectivos de conhecimento científico. É uma ciência política”, acrescenta Yusuf Natsheh, director de arqueologia islâmica da Jerusalem Islamic Waqf, a fundação religiosa responsável pela supervisão dos lugares santos muçulmanos de Jerusalém.

Yuval Baruch desmente com veemência qualquer parcialidade nos resultados das escavações. Insiste que todas as épocas merecem reconhecimento científico, quer se trate dos cananeus quer dos cruzados. Ninguém duvida de que os arqueólogos israelitas são dos mais bem preparados a nível mundial. Mas também ninguém duvida de que a arqueologia é empunhada como arma política no conflito israelo-árabe, dando vantagem aos israelitas, uma vez que estes controlam todas as concessões de licenças de escavação dentro de Jerusalém e em seu redor. 


Há muito que a política, a religião e a arqueologia se encontram profundamente imbricadas nesta cidade. Por volta de 327 d.C., a imperatriz romana Helena presidiu à demolição de um templo romano. “Ela abriu a terra, dispersou a poeira e descobriu três cruzes desmanteladas”, de acordo com uma fonte quase contemporânea. A idosa mãe de Constantino declarou que uma delas era um pedaço da cruz de madeira na qual Jesus fora crucificado. Pouco depois, a Igreja do Santo Sepulcro seria construída no local. 

Cerca de 1500 anos mais tarde, o erudito e político francês Louis-Félicien Joseph Caignart de Saulcy iniciou a primeira escavação arqueológica na cidade e desencadeou novo frenesi. Em 1863, escavou um complexo de túmulos cuidadosamente construídos, provocando a ira dos judeus locais, que voltavam a enterrar de noite aquilo que os seus trabalhadores tinham exposto durante o dia. Sem esmorecer, De Saulcy transportou para o Louvre um antigo sarcófago que continha os restos mortais daquela que ele afirmou ser uma primitiva rainha dos judeus. 

Outros exploradores europeus foram chegando em busca dos seus próprios tesouros bíblicos. Em 1867, os britânicos encarregaram um jovem galês de explorar o terreno subterrâneo de Jerusalém. Charles Warren contratou equipas locais para escavar poços e túneis que ocultavam o seu trabalho dos olhares bisbilhoteiros dos funcionários otomanos que então controlavam Jerusalém. Os mapas do explorador, admiravelmente rigorosos, ainda são considerados uma maravilha. Outro dos seus legados, porém, talvez seja a desconfiança duradoura com que os habitantes muçulmanos da cidade encaram os arqueólogos.

Um século mais tarde, quando Israel capturou Jerusalém Oriental, incluindo a Cidade Velha, aos exércitos árabes, durante a Guerra dos Seis Dias, em 1967, os arqueólogos judeus iniciaram importantes escavações científicas que se transformaram numa peça fundamental dos esforços desenvolvidos pela jovem nação para provar e comemorar as suas raízes ancestrais. Encontraram palácios do século I, pertencentes à elite judaica, repletos de mosaicos elegantes e paredes pintadas. Mas também puseram a descoberto partes da há muito perdida Igreja de Nea, que fora construída 500 anos depois e só era superada em importância pela do Santo Sepulcro. Encontraram igualmente as ruínas de um enorme complexo construído pelos primeiros governantes muçulmanos. 

Algumas escavações, contudo, tinham fins claramente religiosos. Só um punhado de segmentos da Muralha Ocidental – vestígios da plataforma do Templo de Herodes, o lugar mais sagrado do judaísmo onde os judeus podem rezar – se localizam acima do nível do solo e, por isso, após a Guerra dos Seis Dias, o ministro dos Assuntos Religiosos iniciou um esforço destinado a escavar a totalidade da Muralha Ocidental, abrindo túneis. Com um comprimento superior à altura do Empire State Building, a muralha encontrava-se coberta por edifícios contruídos posteriormente, ao longo de mais de metade da sua extensão. Durante quase duas décadas, houve escassa supervisão arqueológica dos trabalhos do túnel: perderam-se dados impossíveis de calcular, segundo o arqueólogo israelita Dan Bahat, que lutou com êxito pelo controlo arqueológico das escavações. Estes trabalhos também suscitaram as suspeitas dos muçulmanos de que o objectivo dos israelitas seria a penetração da muralha e o acesso à plataforma sagrada. 

Numa manhã do Verão de 1981, pouco depois da estreia nas salas de cinema do filme “Os Salteadores da Arca Perdida”, essas suspeitas foram confirmadas. Guardas da Waqf descobriram um destacado rabino derrubando um muro da época das Cruzadas que selava uma antiga porta subterrânea, sob a plataforma sagrada. O rabino acreditava que a arca perdida se encontrava escondida sob a Cúpula do Rochedo, um dos mais antigos e sagrados locais de culto do islão. Seguiu-se um confronto físico subterrâneo e o primeiro-ministro israelita, Menachem Begin, ordenou que a porta fosse selada, antes que o conflito escalasse e desencadeasse uma crise internacional alargada. 

Quinze anos mais tarde, foi a vez de os judeus israelitas exprimirem a sua indignação. Em 1996, a Waqf transformou uma enorme sala colunada localizada sob a extremidade sudeste da plataforma, chamada Estábulos de Salomão. O antigo armazém poeirento passou a ser a grande Mesquita Al-Marwani. Três anos depois, o gabinete do primeiro-ministro israelita aprovava o pedido apresentado pela Waqf de abrir uma nova saída para garantir a segurança da multidão, mas sem informar a IAA.

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Nos subterrâneos localizados sob a mesquita Al-Marwani, homens muçulmanos aguardam o início das orações de sexta-feira. Em 1999, os operários utilizaram bulldozzers para abrir uma nova entrada, mais ampla, gerando o receio de que as camadas históricas existentes sobre a plataforma sagrada fossem danificadas.

Maquinaria pesada escavou rapidamente um vasto fosso, sem supervisão arqueológica formal. “Quando as notícias nos chegaram aos ouvidos e mandámos parar os trabalhos, já tinham sido causados enormes prejuízos”, recorda Jon Seligman, da IAA, que então era responsável pela arqueologia de Jerusalém. Nazmi Al-Jubeh, historiador palestiniano e arqueólogo da Universidade de Birzeit, discorda. “Nada foi destruído”, afirma. “Eu estava lá, vigiando as escavações, para assegurar-me de que não punham a descoberto quaisquer camadas arqueológicas. Antes que o fizessem, gritei Khalas! [“Basta!” em árabe]”. 

Mais tarde, a polícia israelita mandou remover as toneladas de terra resultantes da escavação. Em 2004, um projecto financiado por privados começou a peneirar esta terra e, até agora, já descobriu mais de meio milhão de artefactos. Quando visito o laboratório do projecto, o arqueólogo Gabriel Barkay abre caixas de cartão contendo pedaços de mármore colorido que, segundo ele, são provenientes dos pátios que rodeavam o Templo Judaico. Jon Seligman e muitos dos seus colegas, contudo, desvalorizam os achados, afirmando que têm pouco valor, uma vez que foram descobertos fora do contexto e poderiam ter sido depositados sobre a plataforma em períodos posteriores. “O paradoxo é que a maior parte dos materiais destruídos pela Waqf seria islâmica”, afirma.

Numa manhã de chuva miudinha, dirijo-me à entrada dos túneis da Muralha Ocidental, junto da praça repleta de homens de chapéus e casacos negros. No interior, encontro uma amálgama de balcões de recepção subterrâneos, zonas de oração e escavações arqueológicas. Descendo o salão, a partir de uma sinagoga de vidro e aço escorada dentro de uma escola religiosa medieval islâmica, encontram-se latrinas romanas e um pequeno teatro recentemente desenterrado (o primeiro descoberto na antiga Jerusalém) construído como parte do processo de renascimento da cidade no século II, sob o nome de Aelia Capitolina.


Encontro-me com Shlomit Weksler-Bdolah. 

A minha interlocutora fala tão depressa como anda. “Venha. Tenho de regressar lá abaixo”, diz a arqueóloga, enquanto desce a saltitar as escadas que cheiram a madeira acabada de serrar. No interior da câmara húmida, situada mais abaixo, três jovens árabes de T-shirt manobram com destreza uma rocha de duas toneladas pendurada em correntes de ferro. Como explica Shlomit, está a ser deslocada para abrir aos turistas o acesso àquilo que, no seu entender, seriam as salas para banquetes de cerimónia durante o reinado de Herodes. 

Shlomit Weksler-Bdolah pede licença e ausenta-se quando um engenheiro de capacete branco a chama, lá de cima. Travam uma discussão longa e acesa acerca de um segmento de argamassa amarela que ele quer remover para colocar uma escada metálica para os turistas. “Trata-se de argamassa do tempo dos romanos e é muito invulgar”, conta. Este é o tipo de discussões que acontecem regularmente debaixo das ruas de Jerusalém: o que deve permanecer e o que deve ser sacrificado? 

Um século e meio de achados nos subterrâneos de Jerusalém fez abalar velhas crenças e deitar por terra mitos há muito acarinhados. Muitos arqueólogos desdenham actualmente a visão bíblica da capital refulgente do grande império do rei Salomão. O famoso monarca nem sequer é mencionado em qualquer achado arqueológico dessa época.
A Jerusalém primitiva era mais provavelmente uma vila acastelada de importância secundária. A chegada do islão no século VII também não fez desaparecer o cristianismo, ao contrário do que os historiadores pensaram durante muito tempo. Muitas escavações mostram que pouco mudou no quotidiano dos moradores cristãos. 

No entanto, as escavações revelaram também selos de argila impressos com os nomes de cortesãos bíblicos, conferindo credibilidade à sua existência. Os trabalhos arqueológicos também confirmam a afirmação da imperatriz Helena, segundo a qual Jesus foi crucificado e enterrado no sítio onde hoje se encontra a Igreja do Santo Sepulcro. E a arqueóloga Eilat Mazar vai ao ponto de defender ter encontrado o Palácio do Rei David, o primeiro governante israelita de Jerusalém.

Numa manhã sossegada de sábado, o Sabbat judaico, deparo com Eilat Mazar quando ela deambula pelo parque da Cidade de David, onde não se vê vivalma. Na extremidade nordeste da crista, ela escavou um edifício com paredes espessas junto de uma estrutura escalonada de pedra que envolve a encosta abrupta. Fundamentando-se na cerâmica que já descobriu, Eilat atribui ao edifício a data aproximada de 1000 a.C., a data tradicionalmente apontada para a conquista da Jerusalém Jebusita pelos israelitas.

“Gosto de vir aqui quando há sossego para pensar”, explica. Convida-me a descer os degraus que conduzem ao passadiço metálico construído sobre a sua famosa escavação. Debruça-se sobre o parapeito e aponta para os escombros, lá em baixo. “Trata-se de um rei com uma visão, que construiu um monumento grandioso, de forma habilidosa.” Para Eilat Mazar, só pode ser o rei David. “Tudo corresponde à história da Bíblia.”

O achado, feito em 2005, foi divulgado em todo o mundo, mas muitos colegas não se mostram convencidos. A datação baseia-se fortemente na cerâmica em vez de métodos mais modernos como o radiocarbono, e a sua interpretação literal da Bíblia é considerada errada por muitos arqueólogos. O próprio sinal colocado no passadiço acrescenta um ponto de interrogação à identificação do sítio: “Vestígios do palácio do rei David?”

“Baseio-me em factos”, afirma, com uma certa irritação na voz quando levanto as objecções dos outros académicos. “Aquilo em que os outros acreditam é outra história.” Eilat Mazar mostra-se ansiosa por escavar a norte, onde crê estar escondido o famoso palácio do filho de David, Salomão. “Tenho a certeza de que se encontra ali”, afirma, com súbito fervor. “Precisamos de escavar isto!”

Prepara-se para apresentar uma licença para escavar o sítio. Resta saber se a IAA aprovará mais escavações. “Actualmente, quando se escava, é preciso dispor de dados sólidos – não apenas moedas, ou cerâmica, mas resultados sustentados pela física e pela biologia”, diz Yuval Baruch, da IAA. “Eilat Mazar não joga segundo estas regras.”

Um antigo parque de estacionamento é agora um fosso a céu aberto com 2.600 anos de história: oficinas islâmicas primitivas, uma villa romana e edifícios da Idade do Ferro.

Do outro lado da rua, em frente daquele que Eilat Mazar pensa ser o Palácio de David, Yuval Gadot simboliza estas novas regras. Este arqueólogo da Universidade de Telavive lidera a maior e mais recente escavação na cidade. Um antigo parque de estacionamento é agora um enorme fosso a céu aberto, abrangendo grande parte dos 2.600 anos de idade da cidade, desde as oficinas islâmicas primitivas a uma villa romana, e os impressionantes edifícios da Idade do Ferro que precedem a destruição da cidade pelos babilónicos em 586 a.C.
Grande parte dos trabalhos decorre fora do sítio arqueológico, onde os peritos analisam tudo – desde antigos parasitas encontrados nas fossas sépticas islâmicas a elaboradas jóias de ouro do tempo da governação grega. 

A escavação abrirá em breve ao público, por baixo de um grande centro de visitantes destinado a receber as crescentes hordas de turistas. Yuval Gadot, Eilat Mazar e Joe Uziel ajudaram a transformar esta sossegada aldeia árabe numa das mais populares atracções de uma cidade definida como um dos destinos turísticos do mundo em mais rápido desenvolvimento. Durante a noite, os seus sítios arqueológicos funcionam como cenários teatrais para espectáculos de laser. “Aqui começou e aqui continua”, troveja a voz do narrador, no meio de luzes coloridas e música arrebatadora. “O regresso a Sião!” 

A organização responsável por este esforço é a Fundação Cidade de David. Criada pelo antigo comandante militar israelita David Be’eri na década de 1980, a fim de assegurar uma presença judaica mais forte, a organização financiou a maior parte dos recentes trabalhos arqueológicos realizados. Juntamente com as carteiras recheadas de doadores estrangeiros e israelitas, este grupo gaba-se das suas excelentes relações políticas. Numa cerimónia sumptuosa realizada no passado mês de Junho, o embaixador dos Estados Unidos, David Friedman, pegou num martelo para partir uma parede, inaugurando o primeiro troço do túnel de Joel Uziel. “Esta é a verdade”, disse, referindo-se à velha rua. O enviado da Casa Branca ao Médio Oriente classificou as críticas feitas pelos palestinianos ao evento como “absurdas”.

Quando me encontro com o vice-presidente da fundação, Doron Spielman, ele mostra-se optimista em relação ao futuro. “Se os próximos dez anos forem parecidos com os últimos dez anos, este será o principal sítio arqueológico do mundo”, afirma este judeu nascido nos subúrbios de Detroit. Doron Spielman prevê que o número de turistas possa quase quadruplicar para dois milhões numa única década. “O público sente-se fascinado por um povo que existe há milhares de anos”, diz. “Isto não é como um sítio arqueológico acadiano. As comunidades que aqui começaram a viver ainda cá vivem.”

Na sua opinião, o desenvolvimento ajuda todos. “As pessoas compram chupa-chupas e bebidas nas lojas árabes”, afirma. “E há muita segurança que é benéfica quer para árabes, quer para judeus.” Mostra-se igualmente optimista quanto às repercussões para os moradores judaicos, que representam agora 1 em cada 10 habitantes e residem maioritariamente em condomínios fechados, patrulhados por guardas armados. “Isto será visto como um modelo de coexistência. As pessoas viverão juntas, dentro de um sítio arqueológico activo onde há muitas oportunidades.”

Não é assim que Abd Yusuf, o proprietário corpulento de uma loja local, analisa a situação. “O negócio está péssimo!”, conta, sentado no meio das lembranças de Jerusalém que ali vende. “Antigamente, havia muitos turistas, mas agora não vem ninguém. Eles levam todos os turistas para as suas lojas”, acrescenta, referindo-se às concessões da Cidade de David. Depois, aponta para as fendas na parede. “Vi-me obrigado a substituir a minha porta três vezes, devido aos abalos de terra lá de baixo.”

Logo a seguir, subindo a rua, faço uma visita a Sahar Abbasi, uma professora de inglês que também trabalha como directora-adjunta no Centro de Informação Wadi Hilweh, uma organização palestiniana sediada numa loja modesta. “As escavações levantam muitos desafios”, afirma. “As nossas casas estão a ser danificadas e destruídas.” Segundo os seus cálculos, 40 casas foram afectadas, metade das quais com gravidade, e cinco famílias foram despejadas de habitações consideradas inseguras. “Como não conseguem controlar-nos de cima para baixo, começam a controlar-nos de baixo para cima”, resume Sahar Abbasi.

Certa manhã, perto de uma viela estreita por cima do túnel de Uziel, Arafat Hamad dá-me as boas-vindas ao seu pátio repleto de limoeiros. Barbeiro reformado, ele usa cabelo grisalho curto e um sorriso fácil que rapidamente se desvanece. “Construí esta casa em 1964, com espessos alicerces de betão, mas veja o que aconteceu no último par de anos”, diz, apontando para fendas largas que sobem até às janelas do primeiro andar. Levando-me a dar a volta até à empena da casa, o meu interlocutor aponta para pilhas de escombros. “Numa noite de Agosto, estávamos sentados no alpendre quando a casa começou a abanar”, recorda. “Conseguíamos ouvi-los a trabalhar lá em baixo, com maquinaria pesada. Quando púnhamos a mão no chão, sentíamos as vibrações. Fugimos de casa, refugiando-nos em casa dos vizinhos e depois ouvimos um estrondo. Vimos uma nuvem de poeira erguer-se do local onde antes ficava a nossa cozinha exterior.”

Do outro lado da rua, a vizinha de Arafat Hamad, uma anciã chamada Miriam Bashir, não se mostra contente por me ver. “Estou farta de jornalistas”, declara. “Só quero que me deixem em paz. Estamos perdidos. Não sabemos o que fazer!”

Passados poucos minutos, acalma-se e concorda em mostrar-me os danos causados nas paredes de sua casa. “As rachas começaram há três anos, mas revelaram-se mais evidentes no último ano e meio”, afirma. Quando me despeço de Miriam, junto do seu portão, ela sorri pela primeira vez. “Gostava de contar-lhe a nossa história de maneira sincera e clara. Somos gente pacífica que vive aqui e continuaremos a sê-lo, apesar dos danos.”

Quando falei com Doron Spielman, ele desvalorizou as preocupações dos moradores árabes. “Sim, andamos a fazer trabalhos debaixo das casas das pessoas, o que não é um problema se a engenharia for bem feita. E está a ser.” 

Três dias depois da minha visita aos palestinianos, Doron Spielman enviou-me um e-mail gélido a alertar-me para não criar uma plataforma para “as reivindicações de grupos com interesses especiais, motivações políticas e anti-israelitas”. Pediu-me que lhe fornecesse por escrito os pormenores de quaisquer “reivindicações desonestas” antes da publicação. As minhas tentativas para voltar a falar com ele ou com quaisquer outros funcionários da Cidade de David esbarraram num muro de silêncio. Yusuf Natsheh, da Waqf, não se mostrou tão reticente. Para si, as escavações e as tentativas para deslocar os palestinianos estão intimamente ligadas. “A arqueologia não deve ser um instrumento para justificar a ocupação”, diz.

Aquilo que jaz sob Jerusalém revela que a história da cidade é demasiado rica e complexa para caber numa única narrativa, seja ela judaica, cristã ou muçulmana. Helena não conseguiu apagar o seu passado pagão, tal como os romanos não foram capazes de aniquilar a rebelde capital da Judeia, nem os muçulmanos eliminaram todos os vestígios da odiada ocupação dos cruzados. Independentemente da identidade do governante mais contestado de todos os lugares, a evidência do seu passado subirá inevitavelmente até à superfície, desafiando qualquer história criada à medida de uma agenda política ou religiosa. 

“Todos os que governaram Jerusalém fizeram o mesmo: cada um construiu a sua torre e hasteou a sua bandeira”, diz Shlomit Weksler-Bdolah com uma gargalhada, avaliando este sítio venerável e violento numa perspectiva de longa duração. “Mas eu creio que ela é mais forte do que todos os que tentaram controlá-la. Ninguém consegue apagar por completo aquilo que existiu antes.”